terça-feira, 30 de julho de 2024

Zé Cão, boxevista olímpico e invicto

Guardo gratíssimas recordações de São Clemente de Silvares. No Ademar, tasco praticamente gourmet e tão caro quanto excelente, às vezes escusado, com a ramadinha à porta e lá dentro o vinho de categoria a refrescar no poço, eu costumava encontrar o Zé Cão, que tinha trabalhado com o meu pai na Fábrica do Ferro e era o homem mais alto do mundo. Pelo menos era o homem mais alto de Fafe e arredores, e não há mundo melhor do que aquele, isso ainda hoje me parece. O Zé Cão, sentado, os joelhos batiam-lhe nos queixos. Era altíssimo, pele e osso, vagaroso, comovido, desengonçado, gentil, decilitrado, só, pobre, criança em corpo descomunal, com uns sapatões de palhaço e sempre agarrado à caneca de verde tinto, que naquelas mãozonas mingava até parecer uma xícara de casinha de brincar. Mãos hirsutas, nodosas e honestas. O Zé Cão era um homem com zê grande.
O Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gosta de se meter com toda a gente, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas idas ao Porto, ao Royal e ao Derby, velhos cafés de putas na Rua Chã, quase em frente um do outro, e o bom do Zé ia lá para aliviar o tesão a preço combinado, e uma famosa ocasião teve mesmo de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério, na parte de cima da Ponte de Luís I, ali ao pé, discutindo exactamente por causa das senhoras. E o Zé Cão ganhou. Ganhou, evidentemente, nem podia ser de outra maneira, o Zé Cão era nosso. E a piada a espremer da historieta era tão-só fazer o Zé Cão dizer "boxevista", isto é, "bocsvista" ou "boquessevista". A mando do Valença, o Zé Cão dizia, e tornava ao combate, e fazia os gestos como foi, e disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, e era um campeão sem sair do seu canto, desajeitado, quase caindo, porém olímpico e ainda invicto, a lutar por merecer mais um quartilho de verde tinto que uma alma caridosa fizesse o favor de lhe pagar...
O Zé Cão lutava um faz-de-conta tão escangalhado e convincente que parecia mesmo que estava no ringue a enfrentar-se ao peso-pesado cubano Teófilo Stevenson, por exemplo, o maior "boxevista" amador de todos os tempos, dando-se o devido desconto ao sentido da palavra "amador" em certos países naquela altura. Stevenson - triplo campeão do mundo e medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Munique 1972, Montreal 1976 e Moscovo 1980 - sempre recusou tornar-se profissional, por opção ou imposição, Havana é que sabe, rejeitando os sucessivos contratos de milhões de dólares com que os EUA lhe iam acenando. Morreu em 2012, infelizmente sem se ter tirado a limpo se ele era de facto melhor do que Muhammad Ali, como alguns puristas defendiam e ainda defendem.
Lembro-me tão bem. O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom, que era dele que eu vinha falar. E acabo de pensar que nem é nada Zé Cão: para os devidos e legais efeitos, passa doravante a ser Zecão, de Zeca grande, tão grande como o seu imenso coração. E também lhe ponho uma medalha ao peito. De ouro, pois então, Zecão!

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