domingo, 29 de setembro de 2024

Amor à camisola

Marcou golo. Golaço! Deslizou de joelhos pela relva assim assim em direcção a Cavadas, arrancou a bandeirola de canto do lado do Picotalho, fez um coração com as mãos para a câmara mais próxima, bateu no peito como tarzan, em cima do emblema magnífico, abraçou-se à camisola amarela e suada, beijou-a com exagerada paixão, puxou-a mais para si e para cima, no limite da admoestação arbitral, e... assoou-se-lhe copiosamente. É o Fafe! É o Fafe!

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Coração.

O perigo de ougar

Os anjos não têm sexo. Quer-se dizer: ougaram e caiu-lhes a pirângula - como se dizia em Fafe.

P.S. - Hoje é Dia dos Arcanjos. Miguel, Rafael e Gabriel.

Povo que lavas no rio

Vamos então falar de tanques. Dos tanques públicos e lavadouros oficiosos de Fafe, pelo menos daqueles que eu conheci e de que ainda me lembro. Havia os muito concorridos tanques da Rua de Baixo, servindo também a Granja, ali nas imediações da Esquiça e da velha Sacor. Para roupas de maior porte, havia os tanques do Matadouro, nos limites da Rua do Maia com a Ponte do Ranha, aproveitando a água e mesmo ao lado do "rio" onde eram lavadas as vísceras e espancadas as tripas e a sola dos animais abatidos, e era um cheiro a sangue e merda que só visto. Um pouco acima, nem meio quilómetro, creio que na mesma ribeira, havia a poça-tanque da Ponte de Pardelhas. No outro extremo da vila antiga, havia os tanquinhos do Bairro da Fábrica de Ferro, que na verdade tinha tudo. Havia o tanque de Santo Ovídio, de que eu soube apenas de passagem. Tornando ao centro, havia a poça do Santo, do Santo Velho, logo a seguir ao casarão brasonado e à capela e antes dos campos de milho onde hoje medram as traseiras da Escola Secundária. E não quero acreditar que zonas tão povoadas como o Retiro, a Cumieira ou a Recta não dispusessem também dos seus tanques ou lavadouros, mas não os sei. Não me lembro deles, pelo menos neste momento, e isto não é uma investigação, levantamento ou trabalho etnoarqueológico, antes pelo contrário.
A minha mãe frequentava diariamente a poça do Santo, ali à mão de semear, e deslocava-se amiúde ao Matadouro, "ao rio", era assim que se dizia, carregada da cabeça aos pés, para as grandes barrelas sazonais. Éramos pelo menos cinco em casa, mãe e quatro filhos, às vezes também a Mila, às vezes também os meus avós, tios e primos e outros parentes de Basto, só a roupa de nós todos já era uma sacada, um fardo. Ainda por cima, a minha mãe tinha a mania de oferecer-se para lavar "umas pecinhas" de alguma vizinha mais velhinha, adoentada ou recém-regressada da maternidade. E houve mesmo uma altura em que, por necessidade, a minha mãe lavou oficialmente para fora, para uma ou duas famílias "ricas", mas nem por isso largou de mão a vizinhança mais pobre e aflita.
Era duro. Eu ia com a minha mãe e bem via. Era mesmo muito duro! Tão duro que eu, preguiçoso por idade e por feitio, fazia tudo para "ajudar". Mas não me deixavam. Nem a minha mãe nem as outras lavadeiras, sobretudo estas. Diziam-me, entre cantigas e caralhadas, que os meninos do sexo masculino não podiam lavar roupa. Se os meninos do sexo masculino lavassem roupa - dizia o mulherio -, quando fossem homens não lhes crescia a barba, ó terrível maldição, e davam em maricas!...
A mim, confesso, nem me aquecia nem me arrefecia, aquilo da barba. Eu já estava por tudo. Faltavam-me dois ou três meses para entrar no seminário, e logo que lá chegasse - também me diziam - iriam capar-me sem dó nem piedade! Então olha, perdido por um, perdido por mil...

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Rios. Por isso aqui torno. O rio Vizela começa em Fafe e depois faz o rio Ave que depois faz o mar, a começar por Vila do Conde. Isto é, Fafe desagua no oceano Atlântico. Haverá quem não me acredite, mas ninguém pode fugir à verdade, que é só uma: o mar começa mesmo em Fafe.

O que eu andei pra aqui chegar

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 28 de setembro de 2024

A sorte do Benfica foi a baleia

Jonas era profeta com escritório em Israel e Deus mandou-o a Nínive passar umas gáspeas aos assírios, que eram maus como as cobras e de uma crueldade bíblica para com inimigos e povos vencidos em geral. Jonas acagaçou-se com os perigos da demanda e tentou desobedecer a Deus, fugindo, disfarçado de Hercule Poirot, numa viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo. Bons tempos! Deus levou a mal tamanha manifestação de cobardia e diletantismo, caiu-lhe em cima com uma tempestade de criar bicho e atirou-o borda fora. Jonas foi engolido por uma baleia e por lá se acomodou durante três dias e três noites. Ao fim da terceira noite, isto é, ao quarto dia, depois do pequeno-almoço, a baleia deu à Costa da Caparica e o resto da história é bem conhecido: Jonas assinou pelo Benfica e em cinco épocas e muitas lesões fez 183 jogos e marcou 137 golos. O que convenhamos.

Jonas, o pistoleiro, pendurou as botas aos 35 anos e com as costas num frangalho. Tipo raro este Jonas, que também me incomodou bastante. Estimo-lhe as melhoras.
Por outro lado. Hermann Melville, autor do romance "Moby Dick", morreu no dia 28 de Setembro de 1891, aos 72 anos. Dois interesses muito especiais do meu pai: clássicos da literatura mundial e o Benfica, Deus lhe perdoe.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

À babuge

Foto Hernâni Von Doellinger

Sardinhas de Setembro

Eu costumava ter pena das pessoas que comem sardinhas assadas pelos santos populares, no mês de Junho. Deixei-me disso, porque, depois dos meus sucessivos avisos, só cai nessa quem quer. Por aquela maré do ano, as sardinhas geralmente não prestam, são secas, caras e amiúde do dia anterior, pelo menos, quando não (mal) descongeladas. Mas as pessoas gostam, e eu realmente não tenho nada com isso. Posso é informar que boas, boas andam elas agora, agora mesmo, em Setembro, hoje, e dou-lhes de vida, se correr bem, mais dois meses, quem quiser que aproveite.
Aquilo dos antigos de que as melhores sardinhas são as dos meses sem "r" e que pelo São João pinga a sardinha no pão, não liguem, os antigos, a verdade é só uma, fartavam-se de dizer asneiras e mandar encaixilhar. Não. A melhor época para comer sardinhas assadas estamos nela, Setembro e Outubro e às vezes até Novembro - as sardinhas são analfabetas graças a Deus, não diferenciam vogais de consoantes nem lês de rês. E até metem raiva, como diria o meu sogro no tempo dele e delas. Sardinhas "do nosso mar", mais torneirinhas, de olho esperto e a esvaírem-se no seu próprio "azeite".
Sexta-feira, cá em casa, é dia de sardinhada para dois, dia santo. Já cá estão, vivinhas da silva, como se ainda rabiassem, acomodadas debaixo de um pano molhado, à espera de serem assadas por quem sabe, isto é, eu. Sardinhas de prata e com mar dentro, salada de pimento assado, vermelho e carnudo, azeitonas pretas e azedas, broa fresca e vinho tinto, mais nada. E não servimos para fora.

(Este textinho publiquei-o faz há oito dias no meu blogue Tarrenego! Hoje, a minha mãe e eu, o nosso tema de conversa foram as sardinheiras e outras vendedeiras que paravam no Santo Velho antigo, e por isso torno a eles, ao textinho e ao Santo. E logo ao jantar, sim, outra vez sardinhada, como manda a sapatilha. Porque hoje é sexta-feira.)

Novo aeroporto de Lisboa é em Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger
Foi no final do ano passado. A notícia saiu no insuspeito tablóide britânico The Sun e portanto só pode ser verdade: Fafe é "a cidade mais barata de Portugal". Pelo menos, para inglês ver. Quem me alertou para a magnífica novidade foi o Pedro Dantas, que está lá na Velha Albion e sempre atento a estas extraordinarices. De acordo com o bem informado artigo, que, nem de propósito, confunde o Palacete dos Dantas com a Igreja Românica de Arões, Fafe, "uma cidade pouco conhecida em Portugal", ficou em primeiro lugar num ranking de barateza turística elaborado por uma entidade alegadamente chamada Porto Travel Guide. Mais de cem cidades portuguesas terão sido "analisadas por especialistas", e Fafe ganhou, à frente de Oliveira de Azeméis, Famalicão, Ovar e Amarante, só para se ter uma ideia.
E o que é que Fafe tem? Pois, para além da igreja e do palacete levados ao engano, Fafe tem a Casa do Penedo e a Casa do Santo Velho, na minha rua, e "um enorme parque aquático ao ar livre", embora os indígenas prefiram refrescar-se "no reservatório local chamado Barragem de Queimadela". Para além disso, garante o indesmentível The Sun, Fafe tem "comida e bebida baratas", "restaurantes baratos e hotéis económicos". É pouquinho? Mas é de boa vontade.
Isto aqui vai ser outra vez o fim do mundo, vamos ficar a nadar de camones. E convém que parem por aí os estudos uns atrás dos outros que só dão despesa e não vão a lado nenhum. Nem Portela, nem Portela + 1, nem Portela + 2, nem Montijo, nem Alcochete, nem Santarém, nem Pegões, nem Rio Frio, nem Poceirão, nem Beja, nem Monte Real, nem Alverca. Nada disso. O novo aeroporto de Lisboa só pode ser em Fafe! Em Fafe, mais exactamente na freguesia de Golães, cumprindo-se enfim a viperina profecia da má-língua de outros tempos.
Ó gente da minha terra, abaixaide-vos! Vai vir charters...

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! e, depois, aqui, no dia 20 de Novembro de 2023. Hoje é Dia Mundial do Turismo. Por falar nisso, o Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe está marcado já para a próxima semana, de 4 a 6 de Outubro, no Parque da Cidade.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Um nobel para o Quinzinho da Farmácia

Hoje é Dia Internacional do Farmacêutico e amanhã é Dia Nacional do Farmacêutico, quer-se dizer, Portugal é um atraso de vida, é oficial, está atrasado um dia em relação ao resto do mundo, mas não é isso que aqui interessa. Importante é: hoje e amanhã são dias do farmacêutico de um modo geral e vem-me à memória, grata, o Quinzinho da Farmácia. O nosso Quinzinho da Farmácia, que, sendo farmacêutico e sobremaneira autodidacta, era o melhor médico do mundo, o médico privativo e gratuito dos pobres de Fafe, o verdadeiro médico de família ainda os médicos de família não tinham sido inventados.
Em caso de fanico arrevesado ou maleita repentina, primeiro ia-se ao Quinzinho, que tratava toda a gente por tu e tinha uma voz arrastada e grossa por baixo de um bigode em forma de bigodinho e lá em cima uns óculos muito cómicos de tirar e pôr que me faziam rir. Era uma espécie de rastreio, uma primeira opinião, que até podia ser definitiva. O Quinzinho, que me apresentou à Pasta Medicinal Couto e mais do que uma vez salvou as minhas desgraçadas amígdalas de irem ao corte, observava cada caso minuciosamente e decidia. Se o assunto fosse da sua competência e não ultrapassasse os seus saberes, a questão ficava ali mesmo remediada sem outras alcavalas senão o preço geralmente módico dos medicamentos logo usados ou aviados para consumo doméstico, e apenas quando tal era necessário. Aos casos mais bicudos, que lhe chegavam frequentemente, às vezes em pressurosos carros de praça que se acotovelavam à porta da Farmácia Moura, impedindo o trânsito na Rua Montenegro, mesmo em frente aos Mercadinhos, o Quinzinho reencaminhava-os na hora para os médicos encartados ali das redondezas, não raramente sugerindo este ou aquele clínico, consoante as sintomatologias averiguadas, ou então despachava-os com urgência directamente para o hospital. E a engrenagem funcionava. Eu estou em crer que o homem merecia um nobel! Da medicina, da química, da física, da economia, da literatura - o Quinzinho ensinava bulas a analfabetos -, da paz, da compaixão, não sei bem, mas um nobel de certeza, isso é que eu sei!
E sabeis que mais? Gosto de pensar que foi a partir do nosso Quinzinho que os ingleses inventaram, muitos anos mais tarde, em 1994, o Protocolo de Manchester. E essa é que é essa.

P.S. - Publicado no dia 23 de Setembro de 2023. Hoje é Dia Internacional do Farmacêutico ou Dia Mundial do Farmacêutico. Amanhã, em honra de São Cosme e São Damião, é Dia Nacional do Farmacêutico.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A fauna do Jardim do Calvário


A Câmara de Fafe chama a atenção para "as espécies arbóreas e arbustivas do Jardim do Calvário". E faz muito bem. A autarquia informa que colocou etiquetas "às espécies mais emblemáticas", placas informativas "que permitem realizar um percurso interpretativo da flora existente" naquele histórico e às vezes aprazível parque de lazer. As árvores e os arbustos do Jardim do Calvário são, desta maneira, elas próprias e eles próprios, diz o Município, "uma exposição de carácter permanente". A entrada, desta vez, é livre - acho eu.
Isto no que respeita à flora. Lamentavelmente, a louvável iniciativa, creio que se trata de uma iniciativa, apresenta-se mais uma vez manca, quero dizer, omissa em relação à fauna do Jardim do Calvário, que, admito, poderá não ser propriamente um serengueti, mas também não é nada de deitar fora, tinha até crocodilos, não sei se ainda tem, crocodilos aliás noctívagos e bastante barulhentos, já escrevi aqui, aduzindo provas irrefutáveis, e se não acreditam em mim, perguntassem ao Mecas ou a quem lhe foi das relações, gente assim mais de fiar do que eu...

domingo, 22 de setembro de 2024

Eu vi Cubillas!


Eu vi! Eu vi Cubillas. Eu vi Cubillas jogando futebol. Teófilo Juan Cubillas Arizaga, o prodígio peruano, vi-o com os meus próprios olhos, vi-o da minha cor, uma só, azul e branco, vi-o pequeno, delicado, elegante, inesperado, repentista, amiúde sublime, fulminante, Lionel Messi antes de ser inventado, uma brisa ligeira e redolente deslizando quase invisível sobre o relvado. Cubillas era um sorriso em andamento. Sim, um sorriso - genuíno, dir-se-ia que infantil, maroto. Cubillas e a bola estavam-se prometidos desde o princípio dos tempos, sabiam-se de cor e salteado, eram um em dois perfeito, acto de amor consumado, puro gozo, prova viva da bondade dos deuses.
Eu vi Cubillas. Vi-o aqui à porta de casa, em Guimarães, fomos de Fafe o tio Américo, o tio Zé da Bomba e eu, de propósito para ver Cubillas, com merenda aprazada talvez no Batista da Cruz d'Argola. Podia ser que também víssemos o "nosso" Quim na baliza do FC Porto, mas foi Tibi quem tomou conta, se bem me lembro desse mês de Março de 1974, ainda o cravo estava fresco e nunca mais. Deu empate zero-zero e Cubillas falhou um penálti, mas isso o que é que importa?
É. Eu vi jogar Teófilo "Nene" Cubillas! Percebem a grandeza do que digo? Compreendem a minha incontida emoção? Talvez não, infelizes, e é pena. Aos incréus, aos que não tiveram a sorte que eu tive, aos que não viram nem foram ensinados, aos que não sabem do que falo, admito a ignorância e a dúvida: viste o Cubillas, e quê?, pensarão, coitados, e estão no seu direito. Mas mesmo a esses eu gostaria de tentar explicar. Reparem, por favor. Em toda a minha vida fui, por vontade própria e em meu perfeito juízo, a somente quatro concertos: Andràs Schiff (com as Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach), Paco de Lucía, Rolling Stones e Bob Dylan. Quatro e apenas quatro, e uma vida inteira: Schiff com Bach, Lucía, Stones e Dylan. E portanto Cubillas.

P.S. - O Vitória Sport Clube, Vitória de Guimarães, foi fundado no dia 22 de Setembro de 1922. Foi com o Vitória que eu aprendi o futebol de primeira divisão. Os quase dois anos no Liceu de Guimarães deram-me para isso: a meio da semana ia comprar o bilhete numa loja ali perto do Toural, creio que na Rua de Santo António, e no domingo, logo a seguir ao almoço, punha-me à boleia, em Fafe, encostado à Farmácia Sousa Alves, como nos dias em que ia vadiar para as aulas. O regresso a casa, depois do jogo, era quando Deus quisesse...

sábado, 21 de setembro de 2024

Fafenses excelentíssimos

Foto Hernâni Von Doellinger
O Canivete que vendia jornais, o Palhaço que fazia autópsias, o Cesteiro que esteve nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, o Paredes que também era Neiva de mãos enormes e falso susto para crianças, o Landinho eterno Menino, o Landinho do Club que tinha uns testículos muito compridos e era primo de quem fosse importante mesmo que fosse estrangeiro, o Piu, o Chico Cereja, o Sandim que levava os filmes de carrinho, o Tónio da Legião, o Dr. Antunes.

A Rosa do Piroco (Senhora Rosa do Mato!, corrigia-me a minha mãe), o Zé de Castro poeta e cauteleiro, o Chupiu, o Manel do Campo, o Luisinho com o "criado" atrás, o Zé Cão, o Roda Forte cauteleiro, o Pai Zé cauteleiro e gasolineiro, o Meireles de Antime, o Malhado decilitrador premiado e competente arranjador de guarda-chuvas, o Clemente que construía pipas e escadas e era tão pequenino que eu nunca percebi onde cabia tanto tabaco e aguardente, o gigante Barnabé e o mano, o Rates artista da bola, o poeta Augusto Fera, o Álvaro da Dinâmica, o carteiro Aristides, o Zé Sacristão, o Sr. Ferreira do Hospital, o 17 da Bomba, meu avô.
O Sr. Arcipreste, o Maló que era de Fafe em dias certos e cantava fanhosa e desalmadamente o "despedi-me e fui para longe" na esquina da minha rua, o Quinzinho da Farmácia que era o melhor médico do mundo, o Rui que era irmão do Renato e ardinava o Comércio do Porto, o Pedro e o Norte Desportivo, o Guia e a língua portuguesa, o Zegolina e a má-língua, o Batata, o Miguel Chichilim, o Fiu, o Chichirini, o Neca do Hotel, o Zé Manco, o Zé Manquinho, o Sibino, o Sr. Augusto Paredes, o Jerónimo Barbeiro, o Zé Bastos, o Chester faz-tudo, o Nélson Fafe e a alma do teatro, o Sr. Saldanha e a Bandeira Nacional.
Na música: os Bacalhaus, os Custódio, os Gandarelas, os Betas, os Silvas, os Maciéis. Nos bombeiros: o comandante Luís Mário, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Quintos, os Ferreiras e os Nogueiras, os Moleiros e os dos Santo, mestres também de filosofias de carne e osso e do jogo do pau.
O Joãozinho da Loja Nova que era um partidão e nem assim, o Joãozinho Summavielle e o meio fininho ao balcão do Peludo de costas voltadas para a televisão, o engenheiro Mário Valente doente da bola e fazedor do que Fafe é, o Albano das Águas esperto que eu sei lá, o Armindo Alves que era a Banda de Revelhe, o Mário Chanato, o Zé do Registo, o Fernando da Sede, o Sr. Avelino do Café, o Flórido engraxador, o Belinho, o Baptista do Asilo, o Nelinho da SIF, o Guarda-Fios, o Miguel do Zé da Menina, o Miguel Cantoneiro, o Chaparrinho, o Nelo Chapeleiro, o Manel da Pinta, o Nelinho Barros, o Hugo Alfaiate, o Chico da Libânia, o Toninho Nacor e a Dona Isabel, o padre Barros, o padre Zé, o Bilinho e o Bergiga meus companheiros de infância, o inesquecível Berto Dantas.
E, ainda por cima, o grande Zé Manel Carriço, provavelmente o homem mais extraordinário que conheci em toda a minha vida.
A todos e outros que tais, os meus respeitos. Muito agradecido por serem a minha memória.

Aqui há uns anos soube que foi feito um "Dicionário dos Fafenses" ilustres. A lista oficial, estou quase certo, não será exactamente esta, a minha, posto que incompletíssima. Mas lá está. A ilustreza é um conceito deveras relativo. Como certos e determinados pronomes...

P.S. - Publicado originalmente no dia 30 de Março de 2014, no meu blogue Tarrenego!, e aqui no dia 4 de Agosto de 2022. Entretanto, nestes dois anos de Fafismos, fui particularizando alguns destes meus heróis fafenses em textinhos com nome próprio. E acrescentei outros. Quem quiser ver, é só chamar por eles. Hoje é Dia Mundial da Gratidão.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Um longo caminho

Foto Hernâni Von Doellinger

Dona de casa, dona de quê?

Vieram as calças, e ela nada. Os movimentos libertários, o divórcio, o voto, a canasta, os empregos, os carros, os cigarros, as gravatas, os sapatos de salto baixo e os sapatões também vieram, e ela nada. Em casa, sempre em casa, de uma virgindade absoluta em relação ao amantíssimo esposo e demais, bordava, falava francês e tocava piano. Ouvia os discos pedidos e lia Corín Tellado. E dava alpista ao canário. E regava os vasinhos, ela própria uma flor de estufa, no larguinho da vila antiga. E compunha almofadinhas e peluches e corações por sobre o delicado leito conjugal. Muito cor-de-rosa, muita renda na roupa interior que só ela sabia, muito tafetá, muitos lacinhos e sabonetinhos. Tanto pó de talco e perfume! Queimou uma vez um sutiã, é verdade, mas foi sem querer, passando a ferro, quando a serviçal lhe faltou. Tirando isso, nada. Parecia doença. Crónica. As vizinhas, que nem lhe conheciam o nome, chamavam-lhe, por graça, Crónica Feminina.

P.S. - A "Lei da Igualdade" foi aprovada, em Portugal, no dia 20 de Setembro de 1979. As mulheres passariam a ter garantia legal de igualdade com os homens em oportunidades e tratamento no trabalho e no emprego.

O lugar da mulher

Lá vão ligeiros, marido e mulher conversando pela rua, ele à frente e ela um passo atrás, coisa de antigos. Têm uma filha. Casou. Lá vai ela jovem e ligeira conversando pela rua com o marido a estrear, ela atrás, o homem um passo adiante, porque o respeito é muito bonito. Na minha rua, meus vizinhos, palavra de honra, em pleno século XXI.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Gaspar: o recordista passou por aqui

Foto Zerozero
Gaspar, que defendeu as cores da AD Fafe na época de 1976/77, é o mais jovem guarda-redes de sempre a estrear-se na primeira divisão do futebol português. Fê-lo aos 16 anos, na baliza do Atlético, na temporada de 1966/67. E o recorde não se me afigura fácil de bater.
Internacional júnior por Portugal, Gabriel Gaspar estava já no SC de Braga quando, na recta final do campeonato de 76/77, veio emprestado para Fafe, para substituir o velho Antenor, que se lesionara. E foi a nossa sorte. Recebemos um grande guarda-redes para o lugar de um guarda-redes grande.
Gaspar, no treino e em jogo, era impressionante. A par de Quim, terá sido certamente o melhor guarda-redes que eu vi defender as balizas da AD Fafe. No final da temporada foi embora, evidentemente, mas antes ainda teve tempo de luzir a grande altura na nossa primeira meia-final da Taça de Portugal, contra o FC Porto, no Estádio das Antas, numa quarta-feira à noite de todas as memórias, os jogadores em campo a estrearem um equipamento futurista, de encher o olho, tipo "Espaço: 1999", e nós ali em peso no Superior Norte, orgulhosos, barulhentos e com uma pontinha de fé.
Perdemos brilhantemente por 3-0, com 1-0 ao intervalo, para nós, os das bancadas, foi praticamente um empate, pelo menos um empate, e viemos para casa todos contentes, com a honra intacta, ainda orgulhosos, ainda barulhentos e ainda com uma pontinha de fé, ai se não fosse aquele penálti...
Gaspar fez um jogaço, só não defendeu o impossível. No jornal A Bola, o jornalista Alfredo Barbosa fazia título de página inteira, a duas linhas: "Uma exibição memorável do guarda-redes Gaspar".
O FC Porto, treinado por José Maria Pedroto, alinhou com Torres, Rodolfo (Gabriel), Teixeira, Freitas e Murça; Octávio, Celso e Oliveira (Ailton); Seninho, Duda e Gomes. Uma equipa de champions, como hoje se diria.
O Fafe, orientado por Nelo Barros, apresentou-se com Gaspar, Lopes, Teixeira, Castro e Leitão; Manuel Duarte, Romão e Valença; Cartucho, Edvaldo e Jorge. Tomaram muitos, hoje em dia, uma equipa assim na primeira liga. E foi bonito de ver o Leitão todo o jogo à procura do supersónico Seninho, mas só lhe acertava de vista.
No ano seguinte, já sem Gaspar, haveríamos de repetir a façanha, a meia-final da Taça, contra o Sporting, em nossa casa, e outra vez o caralho do penálti, mas isso agora são outros quinhentos...

Ó que boas, ó que boas!...

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Era fresca e doce

No Verão da minha terra, no Verão antigo, umas abençoadas senhoras andavam pela caloraça das feiras e romarias vendendo copos de água de mina adoçada com açúcar amarelo e um remoto gosto a limão. Não era limonada, atenção, era exactamente o que eu digo: água fresca com duas ou três colheres de açúcar e talvez uma casca ou rodela de limão. E não havia gelo. Na vila de Fafe, às quartas-feiras, dia de mercado semanal, pelos 16 de Maio ou pela Senhora de Antime, a "mina" era a bica da poça do Santo, do meu Santo Velho, que ficava ali à beira e era só comodidade. Em cima da cabeça, as despachadas senhoras, equilibristas que remédio, levavam uma rodilha e por cima da rodilha, consoante o uso dos sítios, uma bilha de barro ou um cântaro de lata revestido a cortiça, para conservar a frescura natural. Anunciavam "Fresca e doce!", a água, e desatavam a fugir, de socos na mão e pés descalços, mal se precatavam da presença, ainda que distante e distraída, do perigosíssimo fiscal da Câmara. E o povo, coitadinho, morria ali à sede. Ou então metia-se no vinho, que era o mais certo.
Fafe funcionava assim. Eu, que nunca provei pirolito, por falta de coragem para assaltar o Banco, que era apenas um e por isso se dizia com letra maiúscula e ficava entalado entre o Martins Relojoeiro e o Nelo da Electra, eu, que só sabia dos gelados nas mãos dos outros, bebi uma ou duas vezes um daqueles copinhos, evidentemente mais em conta e decerto prenda extraordinária já não sei de quem nem porquê. E quereis saber? Era realmente fresca e doce, a água, como dizia a publicidade popular, e, palavra de honra, soube-me pela vida!

Já "quentes e boas" eram as castanhas, assim chamadas derivado à própria cor. No último Inverno por acaso até só foram quentes, às vezes nem isso, de resto apresentaram-se geralmente uma boa merda - secas, bichosas, bolorentas até. Mas ao que interessa: o pregão era, e ainda é, "Quentes e boas!", ou, como se dizia em Fafe, "Castanhas assadas a vapor, ó que boas, ó que boas!..."
Quereis saber mais? Quem as vendia, às castanhas, ali no Santo Velho à beira do tasco do Zé Manco, era a Maria Barraca, que morava com as Ferreira Leite, isto antes de juntar dinheiro para abrir uma lojinha de plásticos e outras utilidades caseiras, uma portinha apenas, ou bocado mais abaixo, um pouco antes do Ponto Final, mas do outro lado, encostada ao casarão do ricaço e benemérito encartado Zé de Freitas que desapareceu não sei para onde e hoje em dia parece que é o supermercado do Aldi. O casarão. Quanto à Maria Barraca, casou-se. Tarde, era o que constava, mas decerto muito a tempo.

Naquele mesmo correr, no terreiro do Santo face à estrada para o Picotalho, aproveitando a passagem obrigatória do povo em barda que trabalhava na Fábrica do Ferro, montavam banca também a Mocha e a D. Filomena, sardinheiras de categoria, e a Marrequinha da Recta, que curtia e vendia tremoços. Os tremoços da Marrequinha gozavam de muita fama e tinham um segredo. Dizia-se que eram a especialidade que eram porque a boa senhora lhes mijava regularmente durante a demolha.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Monitorização da Água.

Fontes & fontes

Fonte baptismal, fonte de vida, fonte luminosa, fonte de alimentação, fonte de ignição, fonte da juventude, fonte de inspiração, fonte de transpiração, Fontes de Onor, Fonte Arcada, Fonte da Telha, Fonte das Sete Bicas, Fonte do Bastardo, Fonte do Santo, Fonte da Cana, Maria da Fonte, José Fonte, Fontes Pereira de Melo, Fontes Rocha, Fontes de Alencar, Adios rios adios fontes.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Monitorização da Água.

Outonando

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Nada na mão, nada na manga

Não sei se foi pelos 16 de Maio ou pela Senhora de Antime, talvez fosse num dia qualquer. Uma vez, um artista hipnotizador e decerto ilusionista veio dar um espectáculo ao nosso Cinema e eu, que era mocico, não vi, porque era preciso pagar bilhete. E era uma bonita tarde de sol. Para chamar povo como no Poço da Morte dos 16 de Maio e da Senhora de Antime, o artista hipnotizador e talvez ilusionista fez cá fora, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, o famoso número de conduzir um carro de olhos vendados, naquele bocado entre a esquina do Santo Velho e o ateliê do Zé Manel Carriço, exactamente nesse sentido, que era permitido na altura, nem cem metros sempre em linha recta, assim também eu, foi o que então pensei, e no entanto ainda hoje não sei conduzir. O número terá sido feito cá fora de mais a mais porque lá dentro decerto não daria jeito, cheguei também a essa conclusão aqui atrasado, quando percebi que o Teatro-Cinema de Fafe, apesar de realmente glorioso, é muito mais pequeno do que eu o supunha no meu tempo. Esperei pelas horas à sombra, no passeio em frente, encostado à casa-mãe dos Summavielles, como já lhe chamei. No final, os ilustres que pagaram para entrar disseram-me à saída que aquilo não prestou. Felizmente para eles, a saída era de graça...
Em Fafe apareciam de vez em quando uns fenómenos assim, e até nos quiserem impingir espectáculos de luta livre nos antigos Bombeiros, com cartazes sugestivos, os sensacionais Tarzan Taborda, José Luís, Carlos Rocha e tudo, vindos directamente do Coliseu dos Recreios, do Parque Mayer e do Pavilhão dos Desportos de Lisboa. Eu conto falar proximamente de mais algumas dessas extraordionarices fafenses, antigas, na linha do artista hipnotizador e talvez ilusionista armado em cego que nos veio enganar numa bonita tarde de sol. Os fafenses de hoje em dia não fazem ideia da sorte que têm com a programação que lhes colocam ao dispor, e digo isto apenas por inveja retroactiva e sem ponta de cinismo.

P.S. - David Copperfield, famoso mágico e ilusionista norte-americano, nasceu no dia 16 de Setembro de 1956, chamando-se David Seth Kotkin. Também conhecido como Luís de Matos de Metuchen, Copperfield nunca veio a Fafe, e o prejuízo é dele.

domingo, 15 de setembro de 2024

Maior e vacinado

Foto Hernâni Von Doellinger

Acreditam que ainda tenho comigo e em plena actividade o meu primeiro, e único, boletim de vacinas? As vacinas, naquele tempo, em Fafe, apanhavam-se no velho casarão em frente à Escola Conde Ferreira, na Rua Montenegro, com a escadaria mesmo ao lado da caixa do Mudo, engraxador e sportinguista de alto gabarito, irredutível fiscal no Campo da Granja e depois no Estádio, hoje chamar-lhe-iam steward, palermas, e era também exímio tocador dos sinos da Igreja Matriz, especializado em concertos para casamentos, baptizados e sobretudo funerais, pago à peça, portanto por fora. Era um extra. O Mudo. Quanto ao histórico casarão, ali funcionavam ou funcionaram, não sei se coincidindo, o Centro de Saúde, os Serviços Municipalizados de Água e Electricidade, também não estou certo de que se chamassem exactamente assim, e a "cantina" ou o sítio da sopa para os meninos mais pobres da escola. Aquele tempo era porreiro porque podia-se dizer "vácina" sem que nos ralhassem pessoas que, relativamente a gramática e língua portuguesa em geral, só fazem ideia de emojis. Eu continuo a dizer "vácina" e "vácinas" e graças a Deus tenho-me dado muito bem.
O Centro de Saúde era de certeza um sítio maravilhoso porque trabalhavam lá o Aníbal Carriço, que sobreviveu à guerra cheio de balázios e escrevia nos jornais, tinha tudo para ser meu herói, e a Getinha, que era minha vizinha no Santo e gostava muito de mim e eu gostava muito dela. Quando andou na Escola de Condução Fafense para tirar carta, e não sei se concluiu, eu acompanhava a vanguardeira Getinha nas aulas, sentado no banco de trás do então inevitável Carocha amarelo e preto, às voltas sem sentido pelo centro da vila só para a má-língua ver, a contorcer-me por todos os lados, enjoadíssimo, porque eu enjoava abundantemente a andar de carro, mas era por uma boa causa e com autorização da minha mãe, depois de fazer os deveres: uma menina de bem, uma donzela, nunca entraria sozinha na viatura de um cavalheiro, por mais cavalheiro que o cavalheiro fosse e ainda que o cavalheiro fosse o instrutor e a viatura fosse de instrução, olha o respeito! Quer-se dizer, eu, inocente guardador de virgindades, era ali uma espécie de pau-de-cabeleira, mas de uma espécie muito rara certamente, uma espécie talvez descontextualizada, abstrusa, porque a vida depois dá muitas voltas e até é de rir, às vezes, e de chorar, outras, o que acontece às pessoas e com as pessoas, mas isso já não é para aqui chamado. A querida Getinha era uma mulher extraordinária.
Tornando, então, às vacinas e ao velho boletim. A minha primeira vacina registada, perpetrada evidentemente em Fafe, foi uma "Anti-Poliomielítica Morta ou Viva", até parece dos filmes de cobóis, tem a data de 15 de Dezembro de 1965, lembro-me muito bem dela, e a mais recente foi-me aplicada ainda no outro dia, 23 de Maio, em Matosinhos, onde moro, porque, embora possa não parecer, eu levo isto das vacinas muito a sério. Covid e gripe à parte, a próxima, se não for antes, está já agendada para 2034, isto é, o Serviço Nacional de Saúde, que eu tanto estimo, atribuiu-me pelo menos mais dez anos de vida, só tenho de apresentar-me no dia certo. Eu por acaso já não contava com semelhante bónus, nem sei sequer se o mereço ou justifico, mas, cá está, é a prova de que as vacinas realmente funcionam.

P.S. - Hoje é Dia do Serviço Nacional de Saúde.

O dia em que envelheci

Sei muito bem o dia em que envelheci. Foi de repente. Sei o ano, sei o mês, sei o dia e até sei a hora, mas tanta exactidão não vem aqui ao caso. Sei o local e sei as circunstâncias. Foi no Hospital de Gaia, numa consulta de medicina do sono, creio que a coisa se chamava ou chama assim. A dado passo da bateria de exames e do minucioso inquérito, a médica perguntou-me, surpreendentemente: - Quando era novo, o Sr. Américo já sentia este cansaço?..
Eu ia caindo de cu. Primeiro. Esta mania de me tratarem pelo meu primeiro nome, Américo, nas consultas e, em geral, em todos os serviços públicos ou privados que exigem a competente apresentação de credenciais. Não sei, chamam-me Américo e eu, que estou tão habituado a chamar-me Hernâni, procuro sempre outro indivíduo ao meu lado, no meu próprio lugar. Sinto-me outra pessoa, um estranho de mim mesmo. Tratar-me por Américo é um privilégio que está reservado ao meus companheiros da escola primária, em Fafe, e mesmo com esses poucos que ainda se lembram de mim nunca sei se é comigo que estão a falar quando falam comigo. O Bergiguinha chama-me Américo com todo o direito, mas diz que chama Américo a todos os homens da minha família. Segundo. "Quando era novo", disse ela. Quando era novo?! Porra, eu ainda sou novo, tentei corrigir gentilmente a senhora doutora, atirando ao ar duas ou três larachas e apanhando-as, a todas, sem deixar cair, disparando-me da marquesa, acto contínuo, num acrobático salto encarpado, com duas piruetas à retaguarda.
Mas não adiantou. Pelo contrário. A doutora insistia, parecia-me agora que com algum prazer, com uma certa maldade, "quando era novo" para aqui, "quando era novo" para ali, "quando era novo" acima, "quando era novo" abaixo, e quem sou eu para contrariar o veredicto da medicina, a sábia decisão da ciência?
E foi assim. Nesse dia, naquele preciso momento, fiquei velho para toda a vida, por indicação médica e sem remédio. Eu acabara de fazer 41 anos.

P.S. - Hoje é Dia do Serviço Nacional de Saúde.

Em memória da burra do Reigrilo

Foto Tarrenego!
Vou directo ao assunto: a corrida de jericos faz falta. Faz. Uns 16 de Maio sem corrida de jumentos é como orelheira de porco sem sal ou como, não vamos mais longe, o lago do Jardim do Calvário sem crocodilos. Quer-se dizer, não prestam para nada. Mas ainda no outro dia olhei para os destaques do programa das nossas Feiras Francas, felizmente de regresso à vida após o pico da pandemia, e o que vi anunciado foi a "corrida de cavalo a passo-travado", assim chamada, com hífen e tudo. Apenasmente e, ainda por cima, prova desportiva estigmatizada por essa denominação assaz amaricada, "passo-travado" com hífen, só faltava mesmo dizer-se que as cavalgaduras também vão de minissaia e salto alto. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm e em Fafe. Parece impossível. Quer-se dizer: vim-me embora, e agora não há mais asnos na terra, é isso?...
Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa amadora, com montadores e montadas da terra e arredores, que mediam forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta. Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia, ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e os donos irremediavelmente de focinho no chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícia, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas, os cavalos não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, e se calhar às vezes não havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
O Reigrilo tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos "16 de Maio", na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.

Pois agora nada. E nem sei se os camarários doutores da mula ruça acabaram com aquilo de propósito para enxotar dali os nossos ciganos, os bons e honrados ciganos de Fafe que também marcavam o ponto com os seus burros atletas. Não sei, palavra de honra que não sei, mas veio-me agora à cabeça essa terrível dúvida. E tenho a certeza de que a malta nova havia de se divertir à brava com a corrida de asnos. Mas ao que eu vinha: ignoro o que se passa com Fafe, que lhe deu de repente para inventar tradições, como se as não tivesse, verdadeiras, antigas, genuínas e únicas. Fafe perdeu o sentido. Fafe da segunda década do século XXI tem uma linha de montagem de "novas" tradições, trabalha a todo o vapor, borbulha de "cosmopolitismo", e se calhar está a fazer bem, embora o povo não saiba ou não faça caso. Eu vejo as "iniciativas", eu vejo as fotografias oficiais e assassinas, e na plateia - apenas duas ou três filas mal vestidas, as filas - estão lá só e sempre os quinze do costume, bem vestidos. Então onde está Fafe?
Por outro lado, dá-me pena que a minha terra (ou quem manda na minha terra) tenha vergonha da Justiça de Fafe. Dá-me pena que Fafe tenha vergonha dos seus burros. Como se alguém que de momento pode e manda quisesse varrer para debaixo do tapete de pelúcia a memória (e a história) mais terra-a-terra de Fafe, "para não parecer mal" aos senhores de fora e para parecer bem na televisão. Enfim, uma jericada...

P.S. - Publicado aqui originalmente no dia 11 de Agosto de 2022 e replicado a respeito dos últimos "16 de Maio". Hoje, há quem diga, é Dia Mundial dos Cavaleiros. Entretanto, a Justiça de Fafe foi finalmente indultada pela inteligência local e, do oito ao oitenta, é agora a nova sala de visitas da cidade, é por lá que tudo passa, é lá que tudo se passa, a estátua apadrinha tudo e todos, e eu só quero aplaudir.

sábado, 14 de setembro de 2024

Maestro Ilídio Costa homenageado

Foto Meloteca
O maestro e compositor Ilídio Costa vai ser homenageado em Vila Nova de Cerveira, no próximo dia 22 de Setembro, no arranque do XVII Festival de Bandas de Música. É de amanhã a oito dias, no centro histórico de Cerveira, com cinco bandas convidadas. Ilídio Costa foi maestro da Banda de Revelhe, de Fafe, durante 31 anos.

O bom ladrão

Fafe, algures pelos finais da década de sessenta do século passado. Na sala de aula da agora desaparecida Escola da Feira Velha, no meio da parede, por cima do quadro negro, um Cristo crucificado. Carmona à direita da cruz, Salazar ironicamente à esquerda. Eu, que naquela altura já tinha umas luzes bíblicas, nunca percebi qual destes dois era o bom ladrão...

P.S. - Hoje é Dia da Santa Cruz.

E depois levaram-n'O a passear...

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Ui, sexta-feira 13!...

Em Fafe, com estas coisas não se brinca. Sexta-feira 13. Sexta-feira, dia 13 de Setembro de 2024. Seis mais um é sete, mais três é dez, mais dois é doze, mais zero é doze, mais dois é catorze, mais quatro é dezoito, noves fora nove, mais quatro é treze. Ui, treze, confirma-se! Concentremo-nos somente no ano: dois mais zero é dois, mais dois é quatro, mais quatro é oito, menos cinco é três. É claro: três! E agora no mês: três mais nove é doze, noves fora três, vezes três é nove, menos seis é três. Três, estão a ver?! Três, eu avisei! Mais revelador ainda: o contrário de 2024 é 4202, juntemos-lhe mais 798 e dá exactamente 5000. Cinco mil certos! O que é extraordinário. Cinco mais zero é cinco, mais zero é cinco e mais zero é cinco, mais sete é doze, noves fora três. Três. Adicione-se-lhe 4997 e dá 5000, exactamente 5000. Treze mais três é dezasseis, noves fora sete, menos quatro é três. Três. Três mais 5000 é 5003, noves fora oito, menos cinco é três. Três outra vez. Enfim, 13/9/24. Um mais três é quatro, mais nove é treze, noves fora quatro, mais dois é seis, mais quatro é dez, noves fora um. Um. Hum... Isto realmente anda tudo ligado. Um mais doze é treze, um mais dois é três. Treze e três, uma desgraça nunca vem só, quod erat demonstrandum.
Repito: em Fafe, com estas coisas não se brinca.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Ana Moura à moda de Fafe


Já há programa das festas para o Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe, de 4 a 6 de Outubro próximo, com Ana Moura como prato principal. Mais informação, aqui.

O que é preciso é dar ao dedo!

Foto CLDS Fafe / Expresso de Fafe
Há que tempos que eu não via uma coisa assim: uma mulher, ainda nova, a fazer malha num transporte público. Descontraída, com um sorriso nos lábios e manuseando habilmente o frenético par de agulhas, como num duelo, ia dando forma ao novelo de lã que, aos arranques, se lhe esvaía do colo. Era uma camisola, pareceu-me. E, a cena, um delicioso anacronismo. O metro do Porto é sítio para tudo, já lhes digo, principalmente para tudo o que meta telemóvel, bisnagas amaciadoras e calhamaços do José Rodrigues dos Santos. Mas fazer tricô é que eu nunca tinha visto. E gostei.
Passaram-se dois dias. Num jardim fronteiro à praia de Matosinhos, um jovem casal gozava o sol de fim de Verão e aproveitava para ensinar a filhita a andar de bicicleta. O pai acompanhava a menina em correrias, dando-lhe as instruções elementares, mas a mãe sentou-se. Sentou-se, abriu a bolsa, rapou de um pequeno embrulho que eu primeiro não distingui e, com a agilidade de um experimentado bonecreiro, ela começou a bater-se com quatro-agulhas-quatro, tantas quantas são precisas para tricotar meias de lã. Era o que ela fazia, uma meia. E percebi.
Percebi que isto não é só gosto, moda ou revivalismo, terapia ocupacional. É sobretudo precisão. Voltámos ao pior do tempo antigo. O Portugal democrático, da Europa, das auto-estradas, das universidades e do século XXI é afinal igual ao Portugal fascista e "orgulhosamente só", poeirento e obscurantista do tempo em que a minha mãe, por necessidade, fazia todas as minhas camisolas e as camisolas dos meus irmãos. (E que categoria que elas eram! Tenho uma comigo vai para quarenta anos, acreditam?)
Por outro lado, lembrei-me, pode estar exactamente aqui a salvação do País. Permitam-me que lance o desafio: porque não transformar o tricô num desígnio nacional? Porque não começarmos todos a fazer malha para fora? Porque não pôr este país de desempregados e falidos a dar ao dedo de norte a sul e ilhas, elas e eles, e apostar na internacionalização e exportação em barda das nossas peças de lã? Sim, porque não? Afinal, o que é que as natas e os pastéis de Belém são mais do que os barretes, os camisolões, os carapins e os coturnos genuinamente made in Portugal?...

P.S. Hoje é Dia Mundial do Croché. Por falar em dar ao dedo, os entrançados de palha de Fafe já estão devidamente certificados. Tratou disso o Município, e fez ele muito bem.

Para a agenda

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Flûte de Portugal

O Três Marias, o Casal Garcia, o Magos e até o "champanhe", doméstico ou de alterne, eram à taça, prova rainha. Agora deu-lhes para o flûte. Ou flauta. Pfff...

P.S. - Publicado em Setembro de 2022.

Faltou àjaulas...

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Comida, carros, gajas e... motorizadas

Nós, os do Norte, somos regularmente criticados por estarmos sempre a falar de comida. O que não é exacto nem justo! Na verdade, nós, os do Norte, somos tão capazes de manter conversas interessantes e profundas sobre gajas e carros como o resto da população portuguesa, seja de que região for. Para além disso, se formos de Fafe, ninguém nos bate numa boa discussão sobre motorizadas...

P.S. - A final do primeiro Campeonato Mundial de Speedway realizou-se no Estádio de Wembley, em Londres, no dia 10 de Setembro de 1936.

Na pole position

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Óculos sem bateria

É desagradável. Pousar os óculos e depois não saber onde. E precisar deles para os procurar. E pegar no telemóvel para lhes ligar, obrigando-os a darem sinal de si. E então lembrar-me de que nunca pus os óculos a carregar.

P.S. - Publicado no dia 20 de Setembro de 2022. Hoje é Dia Europeu da Reciclagem de Pilhas. Em Fafe, que liga tanto às efemérides de bem parecer, a festa há-de ser de arromba, eléctrica, certamente na Praça da Justiça, junto à estátua de que antes os doutores da Câmara tinham vergonha e agora serve-lhes de pau para toda a colher - e eu acho muito bem! 

domingo, 8 de setembro de 2024

Pardentro, pardentro! Já tocou!

Foto Hernâni Von Doellinger
Alegria, alegria a sério era aquilo: chegar à escola e a "empregada" mandar-me embora. Ordenava, porque naquele tempo as "empregadas" é que mandavam nas escolas primárias, repito, ordenava: - Vai já para casa, diz à tua mãe que a senhora professora está doente. E ordenava com o braço estendido e no fim do braço estendido tinha uma mão estendida com um dedo estendido que não admitia discussão e queria dizer "rua!"...

(Também poderia querer dizer "Salazar! Salazar! Salazar!", mas sem dedo. Naquele tempo, insisto, as "empregadas" é que mandavam nas escolas. Mandavam nos alunos, mandavam nos pais e mandavam nos professores. Mas mandavam tanto na escola como na rua - o melhor era fugir-lhes. Lembro-me especialmente de uma "empregada", a Dorzinhas, se não estou em erro, que vim a conhecer na Escola da Feira Velha e que era a verdadeira delegada escolar de Fafe. A seguir ao presidente da Câmara, ao comandante da Legião Portuguesa, ao regedor de pistolete à cinta e eventualmente ao Miguel Cantoneiro, a Dorzinhas era a autoridade local. Parece que a estou a ver, estatura meã, seca de carnes, morena, cabelo curto, despachada de pernas e de boca, severa, especialista em orelhas e cachaços, com todo o ar de solteirona, e se calhar não, e às tantas nem se chamaria Dorzinhas e era uma excelente pessoa.)

Mas então, rua! O coração rebentava-me pela boca mal saía o portão, aos gritos e aos saltos - Não há escola!, não há escola!, não há escola!, Rua Montenegro fora, enervando desnecessariamente o pobre Baptista do Asilo, que desatava às cabeçadas contra o gradeamento carcerário, e eu festejando efusivamente a dor de barriga da professorinha, dando a boa nova aos colegas retardatários, que vinham ao contrário e faziam logo ali meia-volta-volver e também saltavam e gritavam - Não há escola!, não há escola!, não há escola!...
(Alegria ingénua, pura, intensa, física. Era evidentemente uma manifestação de profunda catarse, embora eu na ocasião não o soubesse, porque ainda não tínhamos chegado a essa palavra, catarse. "Não há escola!, não há escola!, não há escola!..." era de certeza a antítese do "Pardentro, pardentro! Já tocou!" que gritávamos, em dias menos afortunados, desgostosos mas sempre aos saltos, em anticlímax, mal a sineta anunciava o fim do recreio e a hora de voltar à sala, antítese, estou em crer, mas eu também não fazia ideia, também ainda não tínhamos chegado a essoutra palavra, nem tão-pouco a anticlímax, que me lembre, mas foi para aqui que me deu hoje...)
Não há escola! Para trás, que se faz tarde! Virávamos costas ao casarão da sopa, passávamos a Casa de Santa Zita, que caducou, a Cafelândia, que é um banco, a Rosindinha Catequista, que desapareceu, o Largo, que estreitou, a Loja Nova, que morreu de velha, o Peludo, que acabou, o Cinema, que é outra coisa, a Aurorinha Maia, que era um vulcão e mudou de ares, a Padaria, que se foi, a Quiterinha, que é só memória, as Grilas, que Deus tem, o Funileiro, que já não há, quer-se dizer, alarmávamos a vila inteira - Não há escola!, não há escola!, não há escola!, eu chegava a casa, no Santo Velho, esbaforido e feliz, e a minha mãe, por tradição, enfiava-me logo à entrada duas ou três galhetas derivado àquele "espectáculo todo" e "para aprender". A nossa mãe era, como agora se diz, uma mãe muito táctil.

Aqui que a criançada não nos ouve, a verdade é esta: melhor do que ter escola (porque, agora a sério, escola é bom!), só mesmo não ter escola. Ao longo da minha vida aconteceram-me outros momentos extraordinários, episódios marcantes, memoráveis, como, por exemplo, o nascimento do meu primeiro pentelho ou a descoberta do tesão, mas, palavra de honra: nada se compara com aqueles dias gloriosos em que chegava à Escola Conde Ferreira e me mandavam para trás. Nada. E quem mos dera outra vez, embora Fafe já lá não esteja...

P.S. - Publicado no passado dia 24 de Janeiro, a propósito do Dia Internacional da Educação. Hoje é Dia Internacional da Alfabetização e Dia Internacional da Literacia.

A peita

Peita. Dádiva ou promessa com o fim de subornar, suborno, antigo tributo pago pelos que não eram fidalgos - é o que dizem os dicionários. E peitar, seguindo esta linha de raciocínio, será, então, subornar com peitas, corromper, aliciar com dádivas e promessas. Talvez. Mas peita, naquele tempo, pelo menos em Fafe, era mais que um simples suborno e muito menos que um simples suborno. Até podia ser pagamento de favores, reais ou imaginários, simulacro de cunha, mas ia para além e aquém disso. Não era corrupção tal como hoje a entendemos e usamos, era, isso sim, uma manifestação quase folclórica de uma certa subalternidade social mansamente aceite e assumida pelo pé-descalço, resquícios decerto medievais do tal imposto popular, numa gratidão imensa e sem sentido pelos de cima. Enfim, sabujice e lambe-botismo em todo o seu esplendor, os pobres davam aos ricos, não sei explicar de outra maneira, e assim funcionava o regime.
O meu avô, por exemplo. O meu avô da Bomba gostava muito de ser doente e adorava ir ao Porto "ao especialista". Era uma coisa constada. Íamos "ao especialista" como se fosse uma romaria, uma excursão familiar na catrel de três velocidades do meu padrinho Américo. Íamos, mas todos com a perfeita noção da solenidade do momento e da compostura que se exige numa ida "ao especialista" e ainda por cima ao Porto. Era um cardiologista na Rua de Sá da Bandeira, que por acaso também era médico do poeta Pedro Homem de Mello, que nós conhecíamos da televisão a preto e branco, e eu ficava muito emocionado por estar ali à beira daquela grande figura, na sala de espera, a cores, mas evidentemente sem abrir o bico, para não destoar e às tantas até "incomodar" o meu avô. O meu avô da Bomba, e este era um ponto de que toda a família estava avisada e o resto de Fafe também, "incomodava-se do coração".
Quando ia "ao especialista", o Bô da Bomba levava-lhe sempre um bom quilinho da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Sr. Abreu do Talho, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Era a peita, o regalo, é claro que o meu avô não podia ir ao Porto com consulta marcada e aparecer "ao especialista" de mãos a abanar...
As peitas aos médicos eram, aliás, aparentemente consensuais e obrigatórias, e creio saber que hoje em dia ainda há quem por aí as pratique. E não se pense que se tratava de um pagamento de consulta em géneros. Não. Era um pagamento em cima do pagamento em dinheiro vivo, pagas e não bufas, um extra, uma gratificação, uma gorjeta de mãos largas, sei lá bem por que carga de água. Em Fafe havia um médico muito famoso por receber peitas, tantas e tantas, material de luxo, belas peças de caça, dúzias de ovos caseiros, salpicões, presuntos, cabos de cebolas, rasas de milho ou feijão, frangos, capões, coelhos, cabritos, mortos e vivos, e não sei se também porcos, peitas, tantas e tantas, dizia eu, que o senhor doutor aceitava alegremente e depois vendia, inclusive aos açougueiros locais, tudo passado a patacos. Isso, o médico rico fazia negócio com as esforçadas oferendas dos seus doentes pobres, tinha até uma "criada" destinada quase exclusivamente a esse ofício. Toda a gente sabia do cambalacho, na vila e nos arredores. Alguém de bolsos mais abonados andava com desejos de uma perdiz de escabeche, precisava de um coelho-bravo para dar ao patrão, queria um pato à moda antiga para uma tainada das tais, não tinha nada que enganar, era só ir ao médico...

A peita, para ser considerada e aceite como tal, deveria ser praticada de chapéu na mão e espinha vergada, balbuciando-se no acto da entrega, reverente e agradecido, muitos "obrigados!", diversos "desculpe por ser pouquinho!", um singelo e envergonhado "semos probes!", e já à porta, sempre andando às arrecuas, um derradeiro e definitiva "desculpe"...

O Natal era uma época especialmente porreira para as peitas. Consoada não é só o banquete de Natal, a reunião da família à mesa, na noite de 24 para 25 de Dezembro. Consoada é também a prenda que se dá a alguém pelo Natal, dias antes, e esse uso da palavra era então muito comum em Fafe.
Nas férias de Natal, era costume os meninos da escola primária levarem a consoada, isto é, a peita a casa das professoras ou professores. Uma oferta simples, chocolates, rebuçados, alguma mercearia essencial, como se fosse para o Banco Alimentar, um gesto bonito, dir-se-ia, se não estivesse desde logo ferido de uma profunda injustiça social. Havia aqui, no exercício da peita escolar, qualquer coisa de insensato, algo de paradoxal, uma gritante subversão de valores - afinal, os miúdos éramos sobretudo filhos de operários, caixeiros de baixo salário, pequenos lavradores aflitos, tarefeiros incertos, proletários de uma forma geral, e os professores, apesar do infinito desprezo de Salazar, eram professores, quer-se dizer.
Havia professoras ou professores que levavam a mal e tomavam de ponta os alunos que não lhes dessem nada. Havia professoras ou professores que aceitavam simpaticamente o mimo e entregavam às crianças uns docinhos para a troca. Havia professoras ou professores que agradeciam muito o gesto, mas pediam aos meninos que voltassem a levar as coisinhas para casa, onde faziam muito mais falta. E havia o meu professor e a esposa do meu professor.
O meu professor, melhor dito, o meu excelentíssimo professor era o Toninho da Cafelândia, o Professor Correia, que morava, se não me engano, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, ali logo nas redondezas do Jardim do Calvário e do Tribunal. Fui lá uma vez levar a peita. Talvez um quilo de açúcar, do melhor, talvez um quilo de arroz, do melhor, ajeitados não em cartuchos normais, cinzentos, grosseiros, mas nuns cartuchos coloridos, alegres, finos, eventualmente até com fitinhas. A minha mãe caprichou.
Toquei a campainha e fui acolhido pela esposa do meu professor. Perguntou-me quem é que eu era, não precisei de explicar muito, sabia de nós, da nossa situação, a senhora agradeceu sinceramente os meus dois cartuchos, pegou neles com um sorriso, pediu-me para esperar um bocadinho à porta e foi lá dentro. A casa tinha umas escadas. A esposa do meu professor voltou num lampo e, quando voltou, vinha mais carregada do que quando foi. Trazia nas mãos, para me dar, um saquinho com rebuçados e um saco com quatro cartuchos dentro, talvez arroz, talvez açúcar, mas eram outros os cartuchos e a dobrar, para eu entregar à minha mãe e que lhe dissesse muito obrigado e que lhe mandava cumprimentos.
A boa senhora solucionara facilmente o paradoxo. E eu, todo contente, aprendi a lição da gentileza e da generosidade, do respeito pela dignidade do pobre que dá.

Por outro lado, convém não esquecer, o assunto aqui era a peita. A peita, de uma forma geral. A peita, isto é, a mama, a grandessíssima mama.

P.S. - Publicado originalmente no passado dia 24 de Junho.

A Lugo, a Tui, a Vigo e a Santiago de Compostela

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 7 de setembro de 2024

Em extinção? Era bom!

Hoje é Dia Internacional do Abutre. E quem diz abutre, diz usurário, agiota, especulador, onzeneiro, ganancioso, interesseiro, avarento, agarrado, mesquinho, somítico, explorador, aproveitador, intrujão, chupista. Quem fala em risco de extinção, certamente não conhece Portugal...

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Until the fat lady sings

Foto Município de Fafe
Já não há na ópera senhoras gordas como havia antigamente. Agora as senhoras da ópera são magras, elegantes, bem feitas, geralmente bonitas e algumas até são boas como o milho. A mim, que sou melómano e purista, faz-me uma certa diferença, desconcentra-me, desorienta-me o foco.
Por outro lado, Luciano Pavarotti, único e indivisível. O grande Pavarotti, o divo excêntrico e bon vivant, o famoso tenor italiano que popularizou mundialmente a ópera e morreu, faz hoje anos, no dia 6 de Setembro de 2007. E sabeis que mais? Em miúdo eu imaginava o nosso Cinema, o belíssimo Teatro-Cinema de Fafe, como uma pequena sala de ópera, um São Carlos à nossa moda. E ainda imagino.
Mas, infelizmente, uma coisa é o parêntese do meu sonho e outra bem diversa a exigência da realidade. Portanto, a ópera passou outro dia por Fafe e apresentou-se no Pavilhão Multiusos. E li que foi uma enorme enchente de povo e um considerável sucesso artístico. Fiquei contente de saber. A ópera, já dizia o Evaristo do Pátio das Cantigas, é música própria para operários, e só é pena que estejam tantas fábricas a fechar.

Requinte é na capital, como daquela vez. O São Carlos rebentando pelas costuras, o público, conhecedor, finíssimo, profundamente lisboeta, num delírio de palmas compassadas e gritos comedidos (os chamados gritinhos): - Bravo!, bravo!, bravo!...
O touro, um Miura rondando os 650 quilos, assomou à boca de cena e agradeceu, composto e patriótico: - Gracias, muchas gracias!...

P.S. - Continua a todo o vapor o programa de celebração do centenário do Teatro-Cinema de Fafe. Este mês, João Baião, cinema, teatro para bebés e Moonspell (esgotado).

Manda beijinhos

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Precisa de dinheiro?...

Metido sorrateiramente na caixa de correio da porta de casa, um prospectozinho 21x10 em couchê fatela escrito dum lado só. Pergunta, em letras garrafais, vermelhas, "Precisa de dinheiro?" e, ainda enorme mas a preto, "Tem imóvel?"... E passa a explicar, em caracteres mais recatados: "Mesmo com penhoras, dívidas fiscais ou problemas bancários, temos a solução! Contacte-nos. Resolvemos em 48 horas. Análise gratuita". Seguem-se dois números de telemóvel, e mais nada, nem um nome, uma morada, uma marca, pois, como diz o Evangelho, "Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita, a fim de que a tua esmola fique em segredo" (Mateus 6:3-4). Ó almas caridosas e secretas! Ainda há gente boa, graças a Deus...

A caridade tem dias

Fé, esperança e caridade. A fé move montanhas. A esperança é a última a morrer. A caridade tem dias.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Caridade.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Da pornografia às artes performativas

Foto Hernâni Von Doellinger
Riscado da lista de pagamentos da Capital Europeia da Cultura 2012, o Teatro Jordão está para ali, com todo o aspecto de abandonado e esquecido, a um mês de fazer 75 anos. É mais uma triste metáfora do desgraçado país que somos. Já li sobre reabilitações, orquestras sinfónicas, bandas, academias, artes dramáticas e visuais, universidades, estudos, anteprojectos, projectos - e nada. Tretas e mais metáforas. Havia umas obras marcadas para terem início em 2013 e eu não sei porquê mas não acredito nelas. Já não há metáforas que aguentem. Não sei o que Guimarães pensa ao certo do caso, mas a mim parece-me que o azar do Jordão é a vizinhança: o mau-olhado do Centro Cultural Vila Flor que lhe fica resvés e come tudo, tudo, tudo, como o Sebastião da ancestral cantiga.
Também não sei o que o Teatro Jordão significa realmente para os vimaranenses e se a cidade reivindica a preservação física da velha sala de espectáculos. Sei o que o Jordão significa para mim, mas a minha memória vai para além das pedras. A casa pode vir abaixo, que as recordações daqui não saem.
De Fafe, ia-se ao cinema a Guimarães. "Chove em Santiago", o filme de Helvio Soto sobre os últimos dias do governo de Salvador Allende e o golpe militar no Chile, vi-o pela primeira vez no Jordão de casa cheia e a explodir de repente numa enorme manifestação antifascista, comício de ignição espontânea, de raiva, o pessoal de pé em cima das cadeiras, de punhos cerrados e erguidos, com uma única e cada vez mais vociferada palavra de ordem - Filhos da puta! Filhos da puta!! Filhos da puta!!!
Andávamos ainda com o fogo do 25 de Abril no rabo e ninguém nos aturava. Bons tempos aqueles, havia sonhos.
O "Jordáohe", como se chama em "Guimaráes", tinha um excelentíssimo restaurante nos fundos e foi também o cinema dos meus primeiros filmes pornográficos. Era a novidade. A pornografia acabara de chegar a Portugal, com a bendita liberdade, que afinal é sempre um pau de dois bicos. Devo esclarecer, por falar nisso, que os filmes pornográficos do Jordão faziam muito mal aos intestinos, pior do que garrafão de vinho doce bebido de uma assentada. Nos intervalos era um ver se te avias para ir à retrete, filas imensas de braguilhas aflitas à porta das sentinas, porque os urinóis para o caso em apreço não serviam.
Quando me internacionalizei, um ou dois anos depois, em França, pude verificar que com os estrangeiros, muito mais batidos na matéria, a coisa funcionava de maneira diferente. Para além de cada qual poder escolher o lugar que quisesse na sala praticamente às moscas, não era preciso esperar pelo intervalo nem ir à casa de banho para esgalhar o pessegueiro - era ali mesmo, à Lagardère. Já se sabe: os castiços dos franceses, toujours en avance...

Já agora: ao contrário do que muito boa gente pensa que sabe, incluindo alguns figurões com alegadas responsabilidades literárias, "Chove em Santiago", célebre verso de abertura de um belíssimo poema de Federico García Lorca, não se refere a Santiago do Chile, mas a Santiago de Compostela. À minha querida Santiago de Compostela, pela qual o poeta e dramaturgo andaluz também se enamorou.
Lorca publicou em 1935 um pequeno livro a que deu o nome de "Seis Poemas Galegos". Em galego o escreveu e o poema mais conhecido do opúsculo é exactamente este:

Madrigal á cibdá de Santiago

Chove en Santiago,
meu doce amor.
Camelia branca do ar
brila entebrecida ô sol.

Chove en Santiago
na noite escura.
Herbas de prata e de sono
cobren a valeira lúa.
Olla a choiva po-la rúa,
laio de pedra e cristal.
Olla no vento esvaído,
soma e cinza do teu mar.

Soma e cinza do teu mar,
Santiago, lonxe do sol;
ágoa da mañán anterga
trema no meu corazón.


Agora para os mais distraídos. O texto supra, como é de norma referir, publiquei-o em Outubro de 2013 no meu blogue Tarrenego! Entretanto, o Teatro Jordão foi finalmente recuperado e reabilitado, como bem merecia. E foi inaugurado em Fevereiro de 2022. Ali funcionarão, suponho, a Escola de Artes Performativas e Artes Visuais da Universidade do Minho e a Escola de Música do Conservatório de Guimarães. Pelo menos. Por outro lado, e este é o nosso pretexto, Salvador Allende foi eleito presidente do Chile no dia 4 de Setembro de 1970.

September morning

Foto Hernâni Von Doellinger

Tocavam sempre duas vezes

Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A sit...