Foto Hernâni Von Doellinger |
sábado, 31 de dezembro de 2022
quinta-feira, 29 de dezembro de 2022
O que é preciso é Benfica!
Vou contar esta em homenagem ao saudoso Zé Maria Sapateiro, benfiquista dos sete costados e conceituado crítico de funerais. E, sendo Fafe uma terra de jornais e jornalistas, conto-a no dia em que o Diário de Notícias, de Lisboa, faz 158 anos.
Uma vez, o estado-maior da Controlinveste de má memória descia no elevador do Edifício JN do Porto e eu também. Eu era um dos prescindíveis do jornal 24horas, excesso de bagagem, mas ainda não sabia. Entrei a meio caminho para ir a casa comer a sopa. Ir num pé e vir no outro, porque o trabalho esbordava. Disse boa tarde, mas ninguém me ligou. Eu sou alto e falo grosso. Mas quê, aquela gente não ouve, não vê nem pensa para além do umbigo de cada qual. Iam todos entretidos na galhofa, preparando mais uma leva de despedimentos. A maior de todas. Eram os filhos do Joaquim Oliveira, acolitados por um ou dois administradores anónimos limitados e pelo então director de publicações, João Marcelino. E era exactamente Marcelino o animador de serviço, exibindo a capa do Diário de Notícias daquele dia. Dizia o também director do DN - "O que é preciso é isto: mete-se aqui este vermelhinho e está o assunto resolvido, é só vender".
João Marcelino referia-se à foto do Benfica que dominava a primeira página do DN. Isso. Haja Benfica e pronto! O nosso Zé Maria Sapateiro não teria dito melhor...
Isto é. O Diário de Notícias saiu à rua pela primeira vez no dia 29 de Dezembro de 1864. E, mais ou menos à rasca, anda às voltas até hoje. Quanto a Oliveira e seus asseclas, continuaram a despedir e a destruir jornais e lares, com uma perseverança digna de registo. João Marcelino é actualmente uma das vedetas residentes do Canal 11, televisão da Federação Portuguesa de Futebol.
Uma vez, o estado-maior da Controlinveste de má memória descia no elevador do Edifício JN do Porto e eu também. Eu era um dos prescindíveis do jornal 24horas, excesso de bagagem, mas ainda não sabia. Entrei a meio caminho para ir a casa comer a sopa. Ir num pé e vir no outro, porque o trabalho esbordava. Disse boa tarde, mas ninguém me ligou. Eu sou alto e falo grosso. Mas quê, aquela gente não ouve, não vê nem pensa para além do umbigo de cada qual. Iam todos entretidos na galhofa, preparando mais uma leva de despedimentos. A maior de todas. Eram os filhos do Joaquim Oliveira, acolitados por um ou dois administradores anónimos limitados e pelo então director de publicações, João Marcelino. E era exactamente Marcelino o animador de serviço, exibindo a capa do Diário de Notícias daquele dia. Dizia o também director do DN - "O que é preciso é isto: mete-se aqui este vermelhinho e está o assunto resolvido, é só vender".
João Marcelino referia-se à foto do Benfica que dominava a primeira página do DN. Isso. Haja Benfica e pronto! O nosso Zé Maria Sapateiro não teria dito melhor...
Isto é. O Diário de Notícias saiu à rua pela primeira vez no dia 29 de Dezembro de 1864. E, mais ou menos à rasca, anda às voltas até hoje. Quanto a Oliveira e seus asseclas, continuaram a despedir e a destruir jornais e lares, com uma perseverança digna de registo. João Marcelino é actualmente uma das vedetas residentes do Canal 11, televisão da Federação Portuguesa de Futebol.
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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022
O homem-rã
O homem-rã apareceu à tona em câmara lenta e saiu da água com toda a calma do mundo, perante o evidente embaraço do casal de patos-bravos que faz segurança municipal à propriedade. Vestia um blusão cor-de-laranja que dizia nas costas Bombeiros Voluntários de Fafe, BVF, passou por um bando de turistas inesperadamente japoneses e acabadíssimos de descarregar no novo terminal de cruzeiros de Calvelos, sorriu para os flaches e continuou naquele andar cómico até ao bar da Barragem. Entrou no bar, saltou para cima de um banco, depois saltou para cima do balcão e mandou vir, com uma nota de cinco euros na mãozinha verde e imperativa: - Coach!, coach!
P.S. - Hoje é Dia do Salva-vidas. No Brasil.
terça-feira, 27 de dezembro de 2022
Como os melões
Os anos são como os melões. Mas ao contrário. Só depois de fechados é que se sabe se foram bons.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2022
O Natal comove-me e o caldo de couves também
Agora que o Natal já foi, vamos então ao que interessa.
E foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais igualmente a alma. E, como num filme de reprise, destes próprios para a quadra, como se diz, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Quem me dera lá, sem a sonsice da idade e este medo tolo de desviver ou pelo menos desmemoriar, quem me dera lá, quem me dera lá! E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, uma vagarosa lágrima descompondo-me escandalosamente a cara. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
Quer-se dizer, o Natal comove-me e o caldo de couves também. No ano seguinte foi canja e não chorei. Conclusão: a canja não puxa ao sentimento. Ou então o vinho seria pataqueiro...
Eu gosto do Natal. Isto é, eu não gosto do Natal, mas a minha mulher e o meu filho gostam muito do Natal, e portanto eu gosto do Natal. Temos de ser uns para os outros se queremos manter acesa a lareira da felicidade familiar, ou o radiador a óleo ou o aquecimento central, cada um governa-se conforme pode. E cá em casa o Natal começa cedo: este ano, por exemplo, começou faz hoje oito dias, e coube-me a mim a honra de abrir a época, introduzindo de surpresa uma cassete (sim, uma cassete) de música jingle bells na portinhola do rádio da cozinha. Play, pause, ff, rew, stop, em grande estilo, uma e outra vez, e dezenas de vezes, e centenas de vezes, pelo menos até passar o Dia de Reis, já no próximo ano, se por acaso a velha fita não rebentar antes e por acaso até rebentou, paz à sua alma. Quanto ao pinheiro, ornamentações afins, enfeites diversos e iluminações correlativas, já estão no activo desde meados de Novembro! O 13.º mês é gasto em amperes...
Gosto do Natal, dizia, mas o Natal incomoda-me, perplexa-me, e era precisamente por aqui que eu deveria ter começado, antes que me passe o espanto. Porque, não sei se sabiam, o Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24. A única certeza religiosa e cientificamente homologada é que o Natal é em Dezembro, e no entanto a cantiga diz que "em Maio pode ser"...
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Não acredito na Popota nem na Leopoldina, mas também nunca acreditei no Pai Natal, embora que o há há, ou que o ho ho, e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus sim, diz-me respeito, e ainda hoje acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera, em França, provavelmente para nos doer menos, e doeu ainda mais. Em França é onde nascem os meninos, e acho lamentável que o meu pai tenha sido dado à troca...
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas bêbadas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, o almoço ou jantar com os amigos de uma vez por ano, o generoso pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar à porta do supermercado, os sorrisos de orelha a orelha, os votos de, os programas de televisão marca Uaitecristmas, as greves nos hospitais, nos tribunais e outras que tais, as inundações, as estradas que desaparecem engolindo pessoas, o circo, muito circo, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, os nossos senhores bispos muito incomodados com a eutanásia enquanto escondem a pedofilia debaixo da sotaina, a comida, a comida, a comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
No Natal de aqui há cinco ou seis anos, não vai assim tanto tempo, lembro-me de que até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. E a verdade é só uma: o vinho era realmente bem bom! Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves à moda da minha terra, da minha infância. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um cibo de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória era o futuro.
Gosto do Natal, dizia, mas o Natal incomoda-me, perplexa-me, e era precisamente por aqui que eu deveria ter começado, antes que me passe o espanto. Porque, não sei se sabiam, o Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24. A única certeza religiosa e cientificamente homologada é que o Natal é em Dezembro, e no entanto a cantiga diz que "em Maio pode ser"...
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Não acredito na Popota nem na Leopoldina, mas também nunca acreditei no Pai Natal, embora que o há há, ou que o ho ho, e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus sim, diz-me respeito, e ainda hoje acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera, em França, provavelmente para nos doer menos, e doeu ainda mais. Em França é onde nascem os meninos, e acho lamentável que o meu pai tenha sido dado à troca...
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas bêbadas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, o almoço ou jantar com os amigos de uma vez por ano, o generoso pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar à porta do supermercado, os sorrisos de orelha a orelha, os votos de, os programas de televisão marca Uaitecristmas, as greves nos hospitais, nos tribunais e outras que tais, as inundações, as estradas que desaparecem engolindo pessoas, o circo, muito circo, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, os nossos senhores bispos muito incomodados com a eutanásia enquanto escondem a pedofilia debaixo da sotaina, a comida, a comida, a comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
No Natal de aqui há cinco ou seis anos, não vai assim tanto tempo, lembro-me de que até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. E a verdade é só uma: o vinho era realmente bem bom! Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves à moda da minha terra, da minha infância. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um cibo de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória era o futuro.
E foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais igualmente a alma. E, como num filme de reprise, destes próprios para a quadra, como se diz, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Quem me dera lá, sem a sonsice da idade e este medo tolo de desviver ou pelo menos desmemoriar, quem me dera lá, quem me dera lá! E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, uma vagarosa lágrima descompondo-me escandalosamente a cara. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
Quer-se dizer, o Natal comove-me e o caldo de couves também. No ano seguinte foi canja e não chorei. Conclusão: a canja não puxa ao sentimento. Ou então o vinho seria pataqueiro...
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quinta-feira, 22 de dezembro de 2022
O milagre das pombas
Foto Hernâni Von Doellinger |
E todas as manhãs acontece o extraordinário: por alturas da Rotunda da Anémona, fronteira municipal, as pombas saem-lhe da cartola, materializam-se do nada, fazem-lhe bando por cima da cabeça e acompanham-no em revoadas dançarinas até à distribuição geral, no charco mais ocidental do Parque da Cidade, à porta da abandonada Kasa da Praia. As pombas reconhecem o seu benfeitor? Identificam o saquinho? Vão apenas ao cheiro? Serão, por assim dizer, o Espírito Santo em pessoa? Não sei - mas aquilo comove-me. Espanta-me. Fosse em Fátima, e seria certamente milagre.
Servido o festim, o cuidador de pássaros volta para casa pelo mesmo caminho, sempre com uma pequena reserva de pão e de milho no fundo do saco, prevenindo emergências que as há. Pomba tresmalhada ou retardatária, gaivota de asa caída ou manca ou qualquer outra ave freelance também têm direito à sua dose individual, no respeito do espaço de cada qual. É. Os solitários entendem-se...
Pois durante a pandemia, pela menos, o gentil alimentador da passarada desapareceu-me da vista. E a mim fez-me diferença, porque eu dava-lhe valor. Fui também, no meu tempo de miúdo, em Fafe, um razoável pensador de galinhas e coelhos, e portanto havia ali qualquer coisa que me dizia respeito, que me enternecia e, verdade seja dita, também me abria o apetite, e vinha-me à cabeça o franguinho guiado pela minha avó de Basto na panela de ferro apurando ao borralho.
Felizmente o senhor das pombas voltou, e em grande forma. Uma sorte para ele, para os pássaros e também para mim, que estou sempre a ligar umas coisas às outras e sou tão dado a nostalgias, e se for à mesa melhor...
E muitas propriedades
Ai que saudades que eu tenho dos bons velhos votos de um feliz Natal e um ano novo cheio de propriedades. Era outra fartura...
quarta-feira, 21 de dezembro de 2022
Eu tinha uma abençoadora
Foto Hernâni Von Doellinger |
Gosto de pedir a bênção, gosto que me abençoem. Eu pedia a bênção beijando a mão aos meus avós da Bomba e aos meus avós de Basto. Pedia a bênção ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Eu até pedia a bênção ao senhor abade!
E fiquei traumatizado para toda a vida, como diria o outro que disse Foucault.
Gosto tanto de ser abençoado, que a minha mãe já sabe: as nossas despedidas só estão completas quando ela me diz "O Senhor te abençoe! Fica com Deus!", e eu digo "Obrigado!", sem saber onde meter as mãos e as lágrimas. Pelo sim e pelo não, tusso.
Gosto de bênçãos, acredito nas bênçãos. Porque sim, e não por respeito ou porque me ensinaram ou obrigaram em pequenino. Sou interesseiro. Preciso de bênçãos como de pão para a boca, as bênçãos fazem-me tanta falta como o ar que respiro, como água no autoclismo. Sou abençoado por ter um amigo que há anos me abençoa com a sua fraternidade sem juros e não acredita em bênçãos, e o que é que isso interessa? Pelo contrário, a Senhora Dona Maria Amélia, que ali vai no retrato, ligeira quanto podia, abençoava-me todos os dias cerca das sete e meia da manhã. Eu madrugava de propósito para encontrá-la na minha caminhada diária pela marginal Matosinhos-Porto.
A minha abençoadora das 7h30 vinha de Gondomar e àquela hora já estava prestes a apanhar o(s) autocarro(s) de regresso a casa. Não consigo imaginar a que horas é que ela saía da cama. Tinha as pernas vergadas pela idade, talvez 84 anos, não sabia bem, e pela vida, dez filhos, nem todos mansos, muito trabalho e desgostos mais do que a conta. Via-me, levantava o braço direito e dizia-me, num largo e comovente sorriso, "Bom dia, vá com Deus!"
E eu ficava pronto. Claro que a Senhora Dona Maria Amélia dizia "Bom dia, vá com Deus!" a toda a gente. A maioria não ligava, ignorava-a ou sorria-se dela, pior para eles e mais sobrava para mim.
Quando os meus, família ou amigos, saem cá de casa, digo-lhes sempre, à porta, "Vai com cuidado!", e repito quantas vezes forem precisas até obter uma resposta. Um "Sim!" ou um "Tá bem..." sossegam-me. Digo "Vai com cuidado!" porque vi muito A Balada de Hill Street e, por outro lado, sinto que não tenho estatuto para dizer "Vai com Deus!" Mas eles sabem que, nas entrelinhas do coração, o que lhes estou realmente a dizer é "O Senhor te abençoe, vai com Deus!" e, sobretudíssimo, "Até amanhã, se Deus quiser"...
Eu sempre fui muito dado a amizades improváveis com velhas senhoras mais ou menos esdrúxulas. Desde pequeno, em Fafe. As Grilas, as Turicas, as duas Milinhas do Santo Velho, a Modista e a Vaqueiro, para não ir mais longe, fazem parte do melhor da minha vida.
A minha abençoadora das 7h30 era outra que tal, mas desapareceu-me. Os nossos horários desirmanaram-se, coisas da vida, e já não nos encontramos há quase três anos, para meu grande desgosto e prejuízo, porque as bênçãos, já disse, fazem-me falta. Sem ter perguntado, soube que a boa senhora nunca mais foi vista às horas do costume nos sítios do costume, entre Matosinhos e a Foz. Não sei dela, e está aí outra vez o Natal. Primeiro fiquei preocupado, mas depois resolvi pensar que a Senhora Dona Maria Amélia terá aproveitado para meter um longo período de férias, porque isto de desejar o bem dos outros também cansa. É isso, a minha abençoadora está de férias num sítio bem bom, reservado só para pessoas de categoria. O novo ano é já para a semana e ela voltará, mais forte do que nunca, à moda dos jogadores de futebol após lesão, para me abençoar outra vez como manda a sapatilha. Se Deus quiser.
domingo, 18 de dezembro de 2022
Isaías, profeta e avançado-centro
Isaías era profeta. Filho de Amoz, nasceu por volta de 765 a.C., acompanhou os reinados de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias, uma linha média de se lhe tirar o chapéu quando disposta em 4-4-2 losango, casou com uma mulher conhecida apenas pelo nome de Profetisa, nome que o marido lhe pôs, e tiveram dois filhos: Sear-Jasube e Maer-Salal-Hás-Baz. Está-se a ver, portanto, aonde é que os brasileiros e a Luciana Abreu vão buscar os nomes para os seus rebentos.
Isaías escreveu um livro para a Bíblia chamado especificamente Livro de Isaías para não ser confundido com o Deuteronómio. A crítica não lhe foi favorável. Diversos especialistas descrêem que a obra tenha um único autor, Isaías ele próprio, vendo-a, antes, como um trabalho a várias mãos e de diferentes épocas, coligido eventualmente no ano 400 a.C, ou até mais tarde. Isaías seria assim uma espécie de escritor dos nossos dias, nome de capa, escritor do que já foi escrito. Por outros.
Amuado com semelhante desmerecimento público, Isaías deixou-se de profecias, abandonou o reino de Judá e veio jogar futebol para Portugal, em 1987. Começou pelo Rio Ave, brilhou no Boavista e foi para o Benfica, onde fez cinco épocas, 178 jogos e 71 golos, ganhou dois campeonatos e uma Taça. Passou pelo Coventry City, de Inglaterra, e tornou cá em 1999, para representar o Campomaiorense. Regressou ao Brasil em 2000 e pendurou as botas em 2003.
Ficaram célebres os seus dizeres numa por acaso flash interview: "Ouvi a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma, escutai a lei do nosso Deus, povo de Gomorra."
Isaías escreveu um livro para a Bíblia chamado especificamente Livro de Isaías para não ser confundido com o Deuteronómio. A crítica não lhe foi favorável. Diversos especialistas descrêem que a obra tenha um único autor, Isaías ele próprio, vendo-a, antes, como um trabalho a várias mãos e de diferentes épocas, coligido eventualmente no ano 400 a.C, ou até mais tarde. Isaías seria assim uma espécie de escritor dos nossos dias, nome de capa, escritor do que já foi escrito. Por outros.
Amuado com semelhante desmerecimento público, Isaías deixou-se de profecias, abandonou o reino de Judá e veio jogar futebol para Portugal, em 1987. Começou pelo Rio Ave, brilhou no Boavista e foi para o Benfica, onde fez cinco épocas, 178 jogos e 71 golos, ganhou dois campeonatos e uma Taça. Passou pelo Coventry City, de Inglaterra, e tornou cá em 1999, para representar o Campomaiorense. Regressou ao Brasil em 2000 e pendurou as botas em 2003.
Ficaram célebres os seus dizeres numa por acaso flash interview: "Ouvi a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma, escutai a lei do nosso Deus, povo de Gomorra."
O Natal é bonito por causa de histórias assim.
sábado, 17 de dezembro de 2022
A vida era uma fotonovela
Recuemos. À década de oitenta do século passado e ao cimo da mui portuense Rua de 31 de Janeiro, onde havia uma casa de jogos de máquinas de flippers e afins que tinha uma cave com um altifalante fanhoso que, de uns quantos em quantos minutos, gritava cá para fora a curiosa frase "Mudança de modelo". Lá em baixo parece que havia umas raparigas muito jeitosas e nuas a fazerem não sei o quê e umas cabinas individuais e sebentas com ranhura para a clientela meter a moeda como nas velhas jukeboxes de feira e espreitar por um vidro e fazer também não sei o quê. Sei muito pouco do assunto porque, palavra de honra, nunca lá pus os pés. Ou se calhar pus, lembro-me vagamente da situação, não juraria em tribunal, mas isso também não vem ao caso.
Informei-me. "Mudança de modelo", logo a seguir ao ding-dong de uma campainha de aeroporto, queria dizer, por exemplo, que a morena mamuda passava a pasta à loura pernalta e ia para os bastidores ler a Corín Tellado, e assim sucessivamente e vice-versa, mas decerto queria dizer também que os clientes tinham de fechar a braguilha e limpar as mãos o mais rapidamente possível e dar a vez a outros, que eram mais que as mães, sobretudo no intervalo de almoço. O speaker de serviço dizia "Mudaaaança de modeloooo" com um garbo só comparável ao do mestre-de-cerimónias do Circo Merito quando anunciava na Feira Velha a sensacional "Maribelaaaa no seu rrrrrola-rolaaaa". Eu gostava: "Mudaaaança de modeloooo"! Parava em frente para ouvir, uma e outra vez, até à hora de voltar ao trabalho. E ria-me. Quase quarenta anos depois, leio e ouço a moderna lengalenga da "mudança de paradigma". "Mudança de paradigma" acima, "mudança de paradigma" abaixo. "Mudança de paradigma" para aqui, "mudança de paradigma" para ali. E também me faz rir, confesso, mas não me arrebita. Falta-lhe sustância, ao paradigma...
Já agora, sobre Corín Tellado, espanhola que se chamava Maria del Socorro Tellado Lopez e morreu em 2009, aos 82 anos. Escritora, autora mais lida na língua de Cervantes logo atrás do próprio, publicou mais de quatro mil romances cor-de-rosa ao longo de uma carreira de quase 56 anos, vendendo acima de 400 milhões de exemplares, o que lhe valeu a entrada no Guiness em 1994. Em Portugal, e pelo menos em Fafe, a senhora Corín Tellado ficou famosa pela melosíssima revista de fotonovelas a que emprestava o nome. As revistas eram disputadas, partilhadas, emprestadas, trocadas, rompiam-se de mão em mão, iam de casa em casa como a Sagrada Família mas com outros interesses. A televisão era a RTP e o mais parecido com uma telenovela era o TV Rural do engenheiro Sousa Veloso, "despeço-me com amizade até ao próximo programa". Na rádio, o "Simplesmente Maria", folhetim radiofónico, chegou à Renascença apenas em Março de 1973, e o país desfez-se em lágrimas, como se houvera inundações. Já disse: era assim em Portugal e pelo menos em Fafe. A parte de Fafe do rés-do-chão, da esfregona e da costura. A parte de Fafe de que sou. Era triste mas era isto: a vida era uma fotonovela.
Informei-me. "Mudança de modelo", logo a seguir ao ding-dong de uma campainha de aeroporto, queria dizer, por exemplo, que a morena mamuda passava a pasta à loura pernalta e ia para os bastidores ler a Corín Tellado, e assim sucessivamente e vice-versa, mas decerto queria dizer também que os clientes tinham de fechar a braguilha e limpar as mãos o mais rapidamente possível e dar a vez a outros, que eram mais que as mães, sobretudo no intervalo de almoço. O speaker de serviço dizia "Mudaaaança de modeloooo" com um garbo só comparável ao do mestre-de-cerimónias do Circo Merito quando anunciava na Feira Velha a sensacional "Maribelaaaa no seu rrrrrola-rolaaaa". Eu gostava: "Mudaaaança de modeloooo"! Parava em frente para ouvir, uma e outra vez, até à hora de voltar ao trabalho. E ria-me. Quase quarenta anos depois, leio e ouço a moderna lengalenga da "mudança de paradigma". "Mudança de paradigma" acima, "mudança de paradigma" abaixo. "Mudança de paradigma" para aqui, "mudança de paradigma" para ali. E também me faz rir, confesso, mas não me arrebita. Falta-lhe sustância, ao paradigma...
Já agora, sobre Corín Tellado, espanhola que se chamava Maria del Socorro Tellado Lopez e morreu em 2009, aos 82 anos. Escritora, autora mais lida na língua de Cervantes logo atrás do próprio, publicou mais de quatro mil romances cor-de-rosa ao longo de uma carreira de quase 56 anos, vendendo acima de 400 milhões de exemplares, o que lhe valeu a entrada no Guiness em 1994. Em Portugal, e pelo menos em Fafe, a senhora Corín Tellado ficou famosa pela melosíssima revista de fotonovelas a que emprestava o nome. As revistas eram disputadas, partilhadas, emprestadas, trocadas, rompiam-se de mão em mão, iam de casa em casa como a Sagrada Família mas com outros interesses. A televisão era a RTP e o mais parecido com uma telenovela era o TV Rural do engenheiro Sousa Veloso, "despeço-me com amizade até ao próximo programa". Na rádio, o "Simplesmente Maria", folhetim radiofónico, chegou à Renascença apenas em Março de 1973, e o país desfez-se em lágrimas, como se houvera inundações. Já disse: era assim em Portugal e pelo menos em Fafe. A parte de Fafe do rés-do-chão, da esfregona e da costura. A parte de Fafe de que sou. Era triste mas era isto: a vida era uma fotonovela.
P.S. - Hoje é Dia Internacional Contra a Violência Sobre Trabalhadores do Sexo.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2022
Um grande igualmente e uma boa continuação
n
na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na
na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022
E Portugal era em Fafe
Portugal era em Fafe e eu tinha muito orgulho nisso. Portugal era um largo e situava-se na Rua José Ribeiro Vieira de Castro, como quem desce, à esquerda, entre a esquina do Toninho Nacor, o tasco antigo, e o Lombo, por assim dizer e com vossa licença. Morava ali gente de categoria e até havia uma "cabine". A "cabine", segundo me explicaram, guardava e distribuída electricidade. Era uma espécie de almazém. A importância de Portugal, o país inteiro, ser em Fafe meteu-se-me em mim, em pequeno, e eu tinha a compenetrada mania de que era mais do que os outros, os que não eram de Fafe. Esta minha inclinação notou-se particularmente no meu tempo de seminário, onde eu sempre achei que era mais fino do que os outros. Os meninos das outra terras, e tantas eram, de Viana do Castelo até abaixo de Braga, detestavam este meu armanço e, para mal dos seus pecados, só muito tarde da vida é que compreenderam que realmente eu era mais fino do que eles. Mas eles não tinham culpa, coitados, era apenas azar. Ninguém escolhe onde nasce, e a verdade é só uma: eles não nasceram em Fafe e portanto não tinham Portugal.
Pois Portugal ainda lá está, em Fafe, que é o seu sítio. O Largo de Portugal. Volvidos tantos anos, não sei se mantém os seus poderes intocados, os poderes que eu sei que Portugal tinha. A envolvência - isto é, Picotalho, Cavadas e tudo - foi escangalhada pelo progresso, que passa ali ao lado armado em auto-estrada a mais de mil à hora. Questão de urbanismo. Os portugalenses serão também certamente outros, gentes de maiores posses e novos saberes. Mas a "cabine" continua, firme e hirta, como castelo altaneiro, quero crer que ainda e sempre ligada ao negócio do retalho energético, alta tensão, perigo de morte. Viva Portugal! Viva Fafe! Abençoada terra que tem um país inteiro num largo dentro de si.
Pois Portugal ainda lá está, em Fafe, que é o seu sítio. O Largo de Portugal. Volvidos tantos anos, não sei se mantém os seus poderes intocados, os poderes que eu sei que Portugal tinha. A envolvência - isto é, Picotalho, Cavadas e tudo - foi escangalhada pelo progresso, que passa ali ao lado armado em auto-estrada a mais de mil à hora. Questão de urbanismo. Os portugalenses serão também certamente outros, gentes de maiores posses e novos saberes. Mas a "cabine" continua, firme e hirta, como castelo altaneiro, quero crer que ainda e sempre ligada ao negócio do retalho energético, alta tensão, perigo de morte. Viva Portugal! Viva Fafe! Abençoada terra que tem um país inteiro num largo dentro de si.
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Consoada
Compareceram todos e respectivas: o Sr. Moura, o Sr. Bragança, o Sr. Almeida, o Sr. Maia, o Sr. Castelo Branco, o Sr. Guimarães, o Sr. Paredes, o Sr. Abrantes, o Sr. Monchique, o Sr. Évora, o Sr. Braga, o Sr. Lamego, o Sr. Leiria, o Sr. Almada, o Sr. Faro, o Sr. Viana, o Sr. Beja, o Sr. Moura e o Sr. Baião. Eram um grupo bastante homogéneo e deveras representativo. Inesperadamente apareceu também o Sr. Antunes, e respectiva. Ele é preciso ter lata...
segunda-feira, 12 de dezembro de 2022
sexta-feira, 9 de dezembro de 2022
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022
O pecado original
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2022
Atrás de Mário Soares
Uma vez era campanha eleitoral e saí do trabalho, na tripeiríssima Rua de Santa Catarina, para apanhar o autocarro 37 no Largo dos Lóios. E quando cheguei à Avenida dos Aliados, que é a meio caminho, esbarrei num enorme ajuntamento que rodeava e seguia um Carocha de tecto de abrir. Era muito povo, agitando bandeiras e gritando palavras de ordem tão desordenadas que eu não percebia o que as pessoas diziam. Aproximei-me, chamado pela curiosidade ou não sei mais por quê, furei pelo meio daquele fervor todo e consegui chegar ao carro. Quem é que lá estava de cabeça de fora e braço pré-presidencial em aceno à multidão? Mário Soares em pessoa. Era ele!
Eu fiquei a um metro do homem. E deixei-me ficar. O Volkswagen careca andava devagar. E eu deixei-me ir. Mas só percebi depois, muito depois. O cortejo desceu à Praça, subiu a Rua dos Clérigos, passou pelos Leões e pelo Hospital de Santo António, entrou na Rua D. Manuel II e quando dou fé Mário Soares está em frente ao Palácio de Cristal. O esquisito, o inexplicável, é que eu também lá estava. A um metro do homem. Eu fui atrás dele e não sabia.
Foi no ano de 1986 e é a história que eu costumo contar quando quero explicar o que é o carisma. Carisma é aquilo: aquele íman, aquele poder sobre as massas, mesmo sem abrir a boca, aquela força invisível que uns poucos têm de aglutinar e empolgar tudo e todos à sua volta, até a mim, que sou um cínico e já tinha andado atrás de Soares pelo menos outra vez, em Fafe, do Largo para o Grémio da Lavoura e, por falta de espaço para tanta gente, do Grémio novamente para o Largo.
A Vida, que me tem sido tão boa, concedeu-me vinte anos mais tarde, nas Presidenciais de 2006, a prenda extraordinária de poder acompanhar no terreno, profissionalmente, a última verdadeira campanha eleitoral de que Portugal deve ter memória. E com Mário Soares, que se borrifava cada vez mais para os soundbites, para os assessores de imprensa e até para o seu ausente director de campanha, que ele frequentemente não sabia muito bem quem era. Em vez de apelar ao voto, em vez de criticar a concorrência, Soares contava histórias, contava História em pequenos auditórios vagamente frequentados, falava de António Sérgio, de Álvaro Cunhal, de Agostinho da Silva, de Camilo Castelo Branco (lembro-me, em Famalicão), de Antero de Quental. Contava Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, José Régio, Almada Negreiros, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Carlos Queiroz, Adolfo Casais Monteiro, Manuel da Fonseca, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos Oliveira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Natália Correia, Alexandre O'Neill, David Mourão-Ferreira, Alberto Lacerda, Ruy Belo, amigos ou conhecidos em graus diversos. E eu regalado. O meu jornal, que era o estrambólico 24horas, mandara-me à procura das proverbiais gafes e partes gagas do velho leão, então já com uns bem vividos 82 anos. Eu consolei-me com o resto.
P.S. - Mário Alberto Nobre Lopes Soares nasceu no dia 7 de Dezembro de 1924.
Eu fiquei a um metro do homem. E deixei-me ficar. O Volkswagen careca andava devagar. E eu deixei-me ir. Mas só percebi depois, muito depois. O cortejo desceu à Praça, subiu a Rua dos Clérigos, passou pelos Leões e pelo Hospital de Santo António, entrou na Rua D. Manuel II e quando dou fé Mário Soares está em frente ao Palácio de Cristal. O esquisito, o inexplicável, é que eu também lá estava. A um metro do homem. Eu fui atrás dele e não sabia.
Foi no ano de 1986 e é a história que eu costumo contar quando quero explicar o que é o carisma. Carisma é aquilo: aquele íman, aquele poder sobre as massas, mesmo sem abrir a boca, aquela força invisível que uns poucos têm de aglutinar e empolgar tudo e todos à sua volta, até a mim, que sou um cínico e já tinha andado atrás de Soares pelo menos outra vez, em Fafe, do Largo para o Grémio da Lavoura e, por falta de espaço para tanta gente, do Grémio novamente para o Largo.
A Vida, que me tem sido tão boa, concedeu-me vinte anos mais tarde, nas Presidenciais de 2006, a prenda extraordinária de poder acompanhar no terreno, profissionalmente, a última verdadeira campanha eleitoral de que Portugal deve ter memória. E com Mário Soares, que se borrifava cada vez mais para os soundbites, para os assessores de imprensa e até para o seu ausente director de campanha, que ele frequentemente não sabia muito bem quem era. Em vez de apelar ao voto, em vez de criticar a concorrência, Soares contava histórias, contava História em pequenos auditórios vagamente frequentados, falava de António Sérgio, de Álvaro Cunhal, de Agostinho da Silva, de Camilo Castelo Branco (lembro-me, em Famalicão), de Antero de Quental. Contava Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, José Régio, Almada Negreiros, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Carlos Queiroz, Adolfo Casais Monteiro, Manuel da Fonseca, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos Oliveira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Natália Correia, Alexandre O'Neill, David Mourão-Ferreira, Alberto Lacerda, Ruy Belo, amigos ou conhecidos em graus diversos. E eu regalado. O meu jornal, que era o estrambólico 24horas, mandara-me à procura das proverbiais gafes e partes gagas do velho leão, então já com uns bem vividos 82 anos. Eu consolei-me com o resto.
P.S. - Mário Alberto Nobre Lopes Soares nasceu no dia 7 de Dezembro de 1924.
Senhor, estou pronto para o Natal!
Estou preparadíssimo para o Natal: "Quo Vadis", "As Sandálias do Pescador", "A Bíblia", "Barrabás", "Ben-Hur", "Os Dez Mandamentos", "A Túnica", "A Última Tentação de Cristo", "Jesus de Nazaré", "Jesus Cristo Superstar", "A Paixão de Cristo", "Spartacus", "Demétrio, o Gladiador", "Sansão e Dalila", "O Sinal da Cruz", "O Evangelho Segundo São Mateus" - venham, que eu estou à espera. "Sozinho em Casa" um, dois, três, quatro, cinco, "Grinch" um, dois, três, "O Amor Acontece", "O Amor Não Tira Férias", "Regresso ao Futuro" um dois, três quatro, cinco, "Tubarão" um, dois, três quatro, cinco e seis cabeças, "Parque Jurássico" um, dois, três, "Momento da Verdade", "O Último Tango em Paris", "Garganta Funda" ou "O Diabo na Carne de Miss Jones", eu aguento.
E, se quiserem, mandem também "Sete Noivas para Sete Irmãos", "A Máscara do Ranger", "E Tudo o Vento Levou", "Um Violino no Telhado", "Música no Coração", "O Feiticeiro de Oz", "Citizen Kane", "O Prisioneiro de Alcatraz", "Cinema Paraíso", "As Pontes de Madison County", "A Ponte do Rio Kwai", "O Expresso de Von Ryan", "Mamma Mia!", "Os Canhões de Navarone", "Rambo" um, dois, três, quatro, cinco, "Doze Indomáveis Patifes", "O Bom, o Mau e o Vilão" ou até "A Vida de Brian". Nosso Senhor é como o Sol, quando nasce é para todos, e mais vale ficar solteiro que casar sem ter dinheiro.
E, se quiserem, mandem também "Sete Noivas para Sete Irmãos", "A Máscara do Ranger", "E Tudo o Vento Levou", "Um Violino no Telhado", "Música no Coração", "O Feiticeiro de Oz", "Citizen Kane", "O Prisioneiro de Alcatraz", "Cinema Paraíso", "As Pontes de Madison County", "A Ponte do Rio Kwai", "O Expresso de Von Ryan", "Mamma Mia!", "Os Canhões de Navarone", "Rambo" um, dois, três, quatro, cinco, "Doze Indomáveis Patifes", "O Bom, o Mau e o Vilão" ou até "A Vida de Brian". Nosso Senhor é como o Sol, quando nasce é para todos, e mais vale ficar solteiro que casar sem ter dinheiro.
terça-feira, 6 de dezembro de 2022
Do normal ou do bô?
Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Eu e os meus irmãos tivemos bó e bô vezes dois, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos, em Basto, uma, muito velhinha, que uma vez deu-me uma batata assada no borralho. Bô queria também dizer bom: binho bô; bô moço; estás bô? Depois, se calhar por soar a parolo, bô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Mas quem caralho teve a ideia?...
Para mim, e defendo-o de graça há muitos anos, o Minho começa em Fafe e acaba em Santiago de Compostela. E a Galiza também. Isto é: Galiza e Minho são-me o mesmo, chamem-lhe o que quiserem, mas Minho decerto fica-lhe melhor derivado ao rio que nos une. Somos a cara chapada uns dos outros, os minhotos e os galegos destes limites, labregos envernizados, crescemos das mesmas raízes, aprendemos de uma literatura comum, padecemos ainda hoje do mesmo ancestral atraso de vida, desfrutamos do mesmo amor à comida e à bebida, à água benta e à festa, partilhamos a maneira de falar, cheia de "ches", de "inhas" e de "inhos", de "xes" em vez de "ses", de "bes" em vez de "ves", não raro falamos até a mesma língua, consoante os sítios e a idade, debitamos caralhos atrás de caralhos como não há memória de tanto caralhar noutras latitudes deste mundo e de outros.
Em Fafe e nas terras de Basto chegadas a Fafe falava-se esse conversar comum quando eu era pequeno, aprendi-o naturalmente com os meus avós maternos, em Passos, Cabeceiras, com a minha mãe e com os meus tios. A querida tia Margarida ainda hoje o usa a cotio, com uma graça que me encanta e comove, e eu dou-lhe serventia da língua para fora sempre que posso, e agora posso quase sempre.
Imaginem então a minha alegria com o que se passou um destes dias, numa das nossas habituais saltadas ao lado do Minho a que outros chamam Galiza. Foi assim. Como de costume, aproveitámos para atestar o depósito do carro. "Gasóleo", digo eu ao senhor gasolineiro. E o senhor gasolineiro, nunca tal nos tinha acontecido, pergunta-me sem mais nem menos, como se anunciasse pipa nova: - Normal ou do bô?...
Caralho! "Do bô", o senhor gasolineiro perguntou-me se o gasóleo era "do bô", palavra de honra, "do bô", perguntou, como fosse a minha avó, o meu avô, a minha mãe ou a tia Margarida a perguntar-me. E eu fiquei tão contente, tão criança, de repente tão outra vez abraçado ao avental da minha mãe a cheirar tão bem a sabão e felicidade, a casa, a nós, fiquei tão...
Por outro lado, era normal e fedia. Mas o senhor gasolineiro perguntou se era "do bô", foi o que ele disse, e disse tão bem, e eu gostei tanto. "Do bô", caralho!...
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segunda-feira, 5 de dezembro de 2022
A importância da Justiça de Fafe
Foto Tarrenego! |
Encontro de espíritos
Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito da coisa, o espírito do amor, o espírito geométrico, o espírito da lei, o espírito do senhor, o espírito al negro, o espírito de porco e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...
domingo, 4 de dezembro de 2022
sábado, 3 de dezembro de 2022
O amor é como o jantar, arrefece
Casámos de branco, os dois, ou cuidavas que eu me ficava? Tu parecias uma princesa de conto de fadas e eu parecia o Américo Tomás de visita a Fafe para inaugurar um chafariz. Mas que belo par de jarras - diziam os convidados -, serão da Vista Alegre? E os néscios dos teus progenitores inchados de orgulho, "Vista Alegre, estás a ver António, estou farta de te dizer, não há nada como o branco", rejubilava a sonsa da tua mãe, e o teu pai, burro como um sino, que me desculpe o sino, "Fresquinho, se for fresquinho não digo que não, Maria"...
Vinte anos, como tão redondamente dizia Patxi Andión, embora ele realmente dissesse veinte años. Dávamo-nos bem, Glória, parecíamos mesmo um casal: eu não me metia contigo e tu não te metias comigo. Que bem que vivíamos um sem o outro. Éramos um exemplo. O cuidado que eu tinha com o estore, de manhã, para não te incomodar. Os vagares com que eu andava pela casa, em pezinhos de lã, por causa dos calos e porque dizias que a minha presença te fazia corrente de ar. Fui ou não fui ao workshop de reeducação para mijadores sem ponto de mira que tanto me recomendaste? Íamos ou não íamos todos os anos aquele domingo de Agosto à Póvoa de Varzim fazer as nossas ricas férias? Tu sabes, devias saber que eu nunca te enganei, Glória, palavríssima de honríssima, desculpa-me o superlativo absoluto sintético em dose dupla, mas já estou por tudo. Fui-te fiel como só um bacalhau seco e posteriormente demolhado pode ser. Dei-te vinte anos da minha vida e tu recambias-mos resumidos e empacotados em dezassete sacos de plástico que me obrigaste a pagar e colocaste na parte de fora da porta de casa. Dezassete? Não mereço vinte, para ser conta certa? Eu sei que as coisas já não estavam como antigamente, esfriaram, mas não será essa a evolução natural de vida de casados? O amor funciona a coração e não a gás, Glória, o amor não é chama eterna como o filme do George Cukor com o Spencer Tracy e a Katharine Hepburn, vai arrefecendo como o jantar, e deixa-me tomar nota desta, que é muito boa...
Vinte anos de uso e nem me levaste à troca. E isso é o que mais me magoa, Glória. Dizes que me mandas embora porque eu não presto e não porque encontraste melhor. Não faças assim, Glória, ao menos põe-me os cornos, ainda estás a tempo, faz-me esse favor, dá-me essa alegria, põe-me os cornos. Se não for por mim, que seja pelos nossos queridos filhos, coitadinhos, que vamos desgraçar para o resto da vida deles com esta tão unilateral quanto politraumatizante separação. O quê? Não temos filhos? Pois não, desculpa, Glória, às vezes entusiasmo-me um bocadinho.
Vinte anos, como tão redondamente dizia Patxi Andión, embora ele realmente dissesse veinte años. Dávamo-nos bem, Glória, parecíamos mesmo um casal: eu não me metia contigo e tu não te metias comigo. Que bem que vivíamos um sem o outro. Éramos um exemplo. O cuidado que eu tinha com o estore, de manhã, para não te incomodar. Os vagares com que eu andava pela casa, em pezinhos de lã, por causa dos calos e porque dizias que a minha presença te fazia corrente de ar. Fui ou não fui ao workshop de reeducação para mijadores sem ponto de mira que tanto me recomendaste? Íamos ou não íamos todos os anos aquele domingo de Agosto à Póvoa de Varzim fazer as nossas ricas férias? Tu sabes, devias saber que eu nunca te enganei, Glória, palavríssima de honríssima, desculpa-me o superlativo absoluto sintético em dose dupla, mas já estou por tudo. Fui-te fiel como só um bacalhau seco e posteriormente demolhado pode ser. Dei-te vinte anos da minha vida e tu recambias-mos resumidos e empacotados em dezassete sacos de plástico que me obrigaste a pagar e colocaste na parte de fora da porta de casa. Dezassete? Não mereço vinte, para ser conta certa? Eu sei que as coisas já não estavam como antigamente, esfriaram, mas não será essa a evolução natural de vida de casados? O amor funciona a coração e não a gás, Glória, o amor não é chama eterna como o filme do George Cukor com o Spencer Tracy e a Katharine Hepburn, vai arrefecendo como o jantar, e deixa-me tomar nota desta, que é muito boa...
Vinte anos de uso e nem me levaste à troca. E isso é o que mais me magoa, Glória. Dizes que me mandas embora porque eu não presto e não porque encontraste melhor. Não faças assim, Glória, ao menos põe-me os cornos, ainda estás a tempo, faz-me esse favor, dá-me essa alegria, põe-me os cornos. Se não for por mim, que seja pelos nossos queridos filhos, coitadinhos, que vamos desgraçar para o resto da vida deles com esta tão unilateral quanto politraumatizante separação. O quê? Não temos filhos? Pois não, desculpa, Glória, às vezes entusiasmo-me um bocadinho.
Presentes de Natal 3
Ele: - Presente de Natal porreiro era um par de sapatos, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par que cornos?
Ela: - Não queres antes um par que cornos?
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022
Ser pobre é perigoso e pode até ser fatal
Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O jornal Público anunciava no tempo da troika e de Passos Coelho: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escrevia e escreve em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.
Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Pediam-nos a nós, porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.
Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira. Era só atravessar a estrada, mesmo em frente.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Aqui há anos sugeri que o Governo de Pedro Passos Coelho copiasse tão peregrina ideia para o seu tempo: um carimbo na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974 que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa. E só peço que, quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha misericordiosa dose de "alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar também os caixotes de cartão. É que as noites estão cada vez mais frescas.
Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Pediam-nos a nós, porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.
Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira. Era só atravessar a estrada, mesmo em frente.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Aqui há anos sugeri que o Governo de Pedro Passos Coelho copiasse tão peregrina ideia para o seu tempo: um carimbo na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974 que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa. E só peço que, quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha misericordiosa dose de "alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar também os caixotes de cartão. É que as noites estão cada vez mais frescas.
Para quem não sabe ou não se lembra. No casarão onde era servida a sopa às crianças pobres da escola de Fafe, em condições sem condições nenhumas, funcionaram também, que me lembre e não sei se coincidindo, o centro de saúde e os serviços municipalizados de água e electricidade. Fui lá uma vez, para ver como era. E não gostei.
Presentes de Natal 2
Ele: - Presente de Natal porreiro era paz no mundo e comida para todas as crianças, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um pacote de Sugus? De framboesa...
Ela: - Não queres antes um pacote de Sugus? De framboesa...
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022
Comi 243 sardinhas assadas!
Foto Hernâni Von Doellinger |
Sempre sardinhas aqui do nosso mar, mais pequenas mas mais saborosas, e vou buscá-las praticamente ao barco. Elas não se cansam a esperar por mim. Eu é que espero por elas, vivinhas que até metem raiva. E este ano as sardinhas foram outra vez excelentíssimas - abençoado defeso, que no-las devolveu à moda antiga.
Os antigos diziam que Maio, Junho, Julho e Agosto são os melhores meses para comer sardinha assada, mas não são. Como eu costumo lembrar, os antigos sabiam tudo e morriam muito. As sardinhas daqueles meses, dos meses sem "r", apesar de geralmente comestíveis e até agradáveis, ainda não estão maduras. A lengalenga popular é engodo para apedeutas. Eu também aprecio a novidade, mas, em bom rigor, as melhores sardinhas estão guardadas para Setembro e Outubro, aguentando-se às vezes até Novembro. Eu monitorizo-as sexta a sexta, e faço por parar ainda em bom, prevenindo o indesejável porém fatal desgosto. Foi o que fiz mais uma vez. Parei. Agora, sardinhas assados, só para o ano. E entretanto arquivo na memória um gosto bom que faço render contando histórias de crescer água na boca. Assim que tal, Abril ou Maio, os meus amigos do mar hão-de avisar-me para a urgência da retoma...
Uma vez, na peixaria da Dona Augusta, seria exactamente mês de Abril aqui há uns anos, uma senhora perguntava se "As sardinhas..." e foi logo interrompida pela minha peixeira, que lhe respondeu "Estão muito boas, as sardinhas ainda estão boas". Por acaso não estavam, naquele ano de colheita medíocre, lembro-me bem, mas a peixeira tem de fazer pela vida. Eu trouxe biqueirão.
Já experimentaram, decerto já, tirar a cabeça aos biqueirões, abri-los pela barriga retirando-lhes a espinha, que sai muito facilmente, temperar estas "costeletas" com sal, pimenta preta moída na hora, limão e um quase-nada de alho picado, e deixá-los neste preparo aí umas quatro horas, duas para cada lado? E depois passá-los por ovo e pão ralado e fritá-los sem deixar queimar? E fazer entretanto um arrozinho de bacalhau com trocinhos de tronchuda? Arroz carolino, já se sabe, que se transforma com o peixinho num verdadeiro manjar de deuses. Mas decerto já experimentaram.
Dica: as espinhas saem ainda mais facilmente se os biqueirões forem do dia anterior. Mas, para mim, peixe ou é do dia ou já não é peixe. Em miúdo, muito gostava eu de ouvir às peixeiras de Fafe o pregão "É da biba, olha a bibinha", e ficava-se logo também a saber que as sardinhas nesse dia seriam mais caras. Mas eram "como prata". Nós comíamos as sardinhas acomodados às três pancadas ao lado do assador, no nosso quintal da casa de pedra da Rua do Assento. Seriam poucas as sardinhas, mas a verdade é que davam para partilhar com os vizinhos e ninguém ficava com fome.
Dica: as espinhas saem ainda mais facilmente se os biqueirões forem do dia anterior. Mas, para mim, peixe ou é do dia ou já não é peixe. Em miúdo, muito gostava eu de ouvir às peixeiras de Fafe o pregão "É da biba, olha a bibinha", e ficava-se logo também a saber que as sardinhas nesse dia seriam mais caras. Mas eram "como prata". Nós comíamos as sardinhas acomodados às três pancadas ao lado do assador, no nosso quintal da casa de pedra da Rua do Assento. Seriam poucas as sardinhas, mas a verdade é que davam para partilhar com os vizinhos e ninguém ficava com fome.
Hoje tenho a sorte de morar em Matosinhos, a dois passos do porto de pesca e da lota. O mais das vezes trago para casa peixe vivo, literalmente vivo, que os pescadores dos barcos pequenos estão a acabar de entregar. O que me levanta alguns problemas, operacionais e... de consciência. Um dia eu e uma solha metemo-nos numa luta cujos pormenores não conto nem quero lembrar. Ganhei, mas portei-me mal. E só à mesa é que me perdoei.
Descobri recentemente que a minha peixeira, que é a melhor peixeira do mundo, a impagável Dona Augusta, tem pelo menos um cliente que vem propositadamente de Fafe. Encontrei outro dia o Toni, que, contou-me, todas as terças-feiras vem buscar peixe para o sobrinho e, já agora, para o meu amigo Tónio Cá Te Espero, que tem tasco de categoria na Recta, que parece que se chama Taberna do Cates, ali à beira de virar para a casa da minha irmã, e de momento, felizmente, também da minha mãe. E eu, palavra de honra, quase me comovi ao saber disto.
E agora, quer-se dizer. Não sei se repararam lá em cima, mas eu não como sardinhas assadas por ocasião dos santos populares. Não como, porque geralmente não são das nossas, nem frescas. Não como, porque não gosto de balbúrdias, por um lado, nem de me meter em filas, por outro. Não como enfim, por uma questão de princípio, devido à indecência do preço a que costumam ser vendidas nesses dias. É. A procura estraga a oferta. Pelo São João, já há alguns anos, alugo um jacto particular, pego na mulher e vamos ao Maine, EUA, comer lagostas à ganância. Sempre nos fica mais em conta do que as sardinhas...
P.S. - Hoje é Dia da Restauração. Aqui fica a minha singela homenagem ao sector.
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Presentes de Natal
Ele: - Presente de Natal porreiro era um emprego, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de meias?
Ela: - Não queres antes um par de meias?
quarta-feira, 30 de novembro de 2022
terça-feira, 29 de novembro de 2022
Tito, o imperador da bola
Já lá vão mil novecentos e cinquenta e dois anos, e lembro-me como se fosse hoje. Tito e as suas legiões romanas derrubaram a segunda muralha de Jerusalém. Lá dentro, os judeus à rasca fugiram para a primeira muralha, mas os romanos, copiando o Porto de muitos séculos depois, construíram uma circunvalação, cortando vazas aos sitiados e todas as árvores num raio de quinze quilómetros, o que foi imediatamente considerado como um escândalo ambiental. A circunvalação de Tito era também conhecida como muralha de cerco, mais uma vez plagiando por antecipação a Invicta, mas sem mal afamado bairro. Tito era o filho mais velho de Vespasiano e foi imperador entre 79 e 81. A mãe de Tito chamava-se Domitila, a Maior, para se diferenciar da filha Domitila, a Menor, irmã de Tito.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à guerrilha e à fundação e presidência da antiga Jugoslávia, enfim voltando-se para o futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, disse adeus às armas e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, dinheiro a sério, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Frequentava Fafe regularmente. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga, a não ser que olhem para o Bruno César que andou até há pouco pelo Penafiel. Mas em bom!
Tito, na área, era imperial. Fino. Franco-atirador. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem abertos.
Mas à conclusão: Tito, o outro, Josip Broz Tito, mais conhecido como Marechal Tito, guerrilheiro e estadista, proclamou a constituição da República Socialista Federativa da Jugoslávia no dia 29 de Novembro de 1945, faz hoje anos. Por outro lado: em Fafe, nos anos cinquenta, sessenta e pelo menos setenta do século passado havia uma magnífica equipa de futebol popular chamada Os Embaixadores da Bola. Os rapazes representavam, se não me engano, a clientela do velho Café Peludo e também não tenho bem a certeza do "Os"...
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à guerrilha e à fundação e presidência da antiga Jugoslávia, enfim voltando-se para o futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, disse adeus às armas e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, dinheiro a sério, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Frequentava Fafe regularmente. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga, a não ser que olhem para o Bruno César que andou até há pouco pelo Penafiel. Mas em bom!
Tito, na área, era imperial. Fino. Franco-atirador. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem abertos.
Mas à conclusão: Tito, o outro, Josip Broz Tito, mais conhecido como Marechal Tito, guerrilheiro e estadista, proclamou a constituição da República Socialista Federativa da Jugoslávia no dia 29 de Novembro de 1945, faz hoje anos. Por outro lado: em Fafe, nos anos cinquenta, sessenta e pelo menos setenta do século passado havia uma magnífica equipa de futebol popular chamada Os Embaixadores da Bola. Os rapazes representavam, se não me engano, a clientela do velho Café Peludo e também não tenho bem a certeza do "Os"...
In vino veritas, in aqua planing
Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Vade Retro, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas?...
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas?...
segunda-feira, 28 de novembro de 2022
Não quer dizer nada
- Este ano o Silva não vem...
- Vem, vem! Vem todos os anos!
- Mas o Silva morreu em Março...
- E o que é que isso tem a ver?
- Vem, vem! Vem todos os anos!
- Mas o Silva morreu em Março...
- E o que é que isso tem a ver?
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O Landinho, o nosso Menino
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Foto Tarrenego! |
domingo, 27 de novembro de 2022
Uma cunha por Luís Marques Mendes
De acordo com a constituição, o mais alto magistrado da nação deve medir para cima de 1,73 m, considerada a altura média dos portugueses homens. Se o mais alto magistrado da nação for por acaso uma mais alta magistrada da nação, então basta medir para cima de 1,62 m, considerada a altura média das portuguesas mulheres. Luís Marques Mendes, que é homem do sexo masculino, mede 1,61 m calçado e, há quem diga e quem me dera, aspira à presidência da república. Nesse caso, eu sou por ele, e só por ele. Aproveitando a maré política, defendo até, a este propósito, uma revisão constitucional por medida. Uma revisãozinha, vá lá. Coisa de doze ou treze centímetros...
O ano da morte do Menino Jesus
O Menino Jesus morreu. Tinha 84 anos e era Maio de 2012. O corpo foi encontrado por acaso, rodeado de solidão e lixo, na casa onde resolvera fechar-se ninguém soube dizer-me há quanto tempo. As autoridades sanitárias, que não têm culpa do nome que lhes puseram nem da gramática que lhes deram, suspeitam que o óbito terá ocorrido pelo menos cinco dias antes da macabra descoberta. Azar do caraças: dois dias a mais. Ao terceiro safou-se o Outro.
Estão a ver? Estão a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos como agora se usam, mas eram à boca-de-sino? O senhor que apanhava o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à Baixa do Porto? Estão a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um bocado extraordinário como o Outro.
O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Viveu sempre com a mãe, mas a mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só fazem falta às criancinhas criancinhas, erro crasso. Quando passou a viver sozinho, durante mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver até ao fim. Ali mesmo, em Nevogilde, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade do Porto, zona de ricos.
Sou pobre, mas passava lá quase todos os dias. Vi uma vez uma equipa da polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e em risco. Acredito que têm salvo muitas vidas e só peço que se lembrem de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca se abriu.
O Menino Jesus morreu no ano de 2012 e continua a morrer por aí. O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e "rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho. Já basta o que basta, morrer já deve ser fodido que chegue. E tenho de confessar que não sei se o Menino Jesus tinha exactamente 84 anos. Os jornais do dia seguinte decerto deram a idade certa do homem, porque às vezes falam verdade nas notícias pequenas. Ou então morreu apenas mais um octogenário.
Estão a ver? Estão a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos como agora se usam, mas eram à boca-de-sino? O senhor que apanhava o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à Baixa do Porto? Estão a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um bocado extraordinário como o Outro.
O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Viveu sempre com a mãe, mas a mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só fazem falta às criancinhas criancinhas, erro crasso. Quando passou a viver sozinho, durante mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver até ao fim. Ali mesmo, em Nevogilde, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade do Porto, zona de ricos.
Sou pobre, mas passava lá quase todos os dias. Vi uma vez uma equipa da polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e em risco. Acredito que têm salvo muitas vidas e só peço que se lembrem de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca se abriu.
O Menino Jesus morreu no ano de 2012 e continua a morrer por aí. O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e "rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho. Já basta o que basta, morrer já deve ser fodido que chegue. E tenho de confessar que não sei se o Menino Jesus tinha exactamente 84 anos. Os jornais do dia seguinte decerto deram a idade certa do homem, porque às vezes falam verdade nas notícias pequenas. Ou então morreu apenas mais um octogenário.
sexta-feira, 25 de novembro de 2022
Ó prima, ó rica prima!
Foto Hernâni Von Doellinger |
As Erdinger são infelizmente uma raridade nas prateleiras dos hipermercados. Descubro muito às vezes meia dúzia delas, e vêm logo todas comigo para casa. Mas há um certo sítio, uma esplanada num certo parque junto ao ex-rio mais poluído da Europa, onde costumo marcar encontro com elas e elas não costumam falhar. Parece traição à Pátria, logo eu que saí de Fafe tão bem treinado, mas este abençoado local é exactamente em Leça do Balio, o berço desse verdadeiro monumento nacional e património material da humanidade que é a Super Bock.
Para beber a Erdinger em casa como manda o figurino, até tive de comprar um copo, caro, enorme, bojudo e cheio de curvas, e é destas redondezas que eu falo. Estou a pensar vendê-lo, ao copo. As minhas primas que me perdoem, mas começam a estar muito acima das minhas posses. E não é que volte para os braços da Super Bock, não. Vou mesmo para a água, e da torneira, pelo menos enquanto não a vierem cá cortar. Portanto, adeus ó primas, ó ricas primas!
quinta-feira, 24 de novembro de 2022
O Papa que escangalhou o presépio
Joseph Ratzinger tinha 85 anos quando, em 2012, resolveu escangalhar o presépio. Tirou a vaca e o burro, porque - dizia o então papa e actual contrapapa - no local do nascimento de Jesus "não havia animais". Portanto também não havia ovelhinhas, o que quer dizer que também não houve pastorinhos do deserto. Sobravam, isso sim, os três reis magos. Gente fina, vinho de outra pipa. Reis. E magos (porque o champanhe ainda não tinha sido inventado). Esses, é certo, estiverem lá, em representação de toda a humanidade - segundo Bento XVI. Estiveram os reis magos e os anjos cantadores.
Eu por acaso até era mais dado a acreditar no burro e na vaca do que na mirabolante história de Gaspar, Melchior e Baltasar, uma boa linha média para quem jogue em 4-3-3, mas que se há-de fazer? Mais de dois mil anos a aquecerem o Menino com os respectivos bafos e é este o pagamento que o burrinho e a vaquinha recebem.
Sempre atento às verdadeiras e mais urgentes necessidades do mundo e da cristandade, Ratzinger, o reaccionário e intriguista, resolveu escangalhar o presépio. Estaria no seu direito. Mas no meu não mexe! Tarrenego!
Eu por acaso até era mais dado a acreditar no burro e na vaca do que na mirabolante história de Gaspar, Melchior e Baltasar, uma boa linha média para quem jogue em 4-3-3, mas que se há-de fazer? Mais de dois mil anos a aquecerem o Menino com os respectivos bafos e é este o pagamento que o burrinho e a vaquinha recebem.
Sempre atento às verdadeiras e mais urgentes necessidades do mundo e da cristandade, Ratzinger, o reaccionário e intriguista, resolveu escangalhar o presépio. Estaria no seu direito. Mas no meu não mexe! Tarrenego!
Ora então. O Natal cá em casa já está montado e só presépios temos sete. Todos com vaquinhas e burrinhos, como aprendi em Fafe e nem consigo imaginar que Deus pudesse ter vindo ao mundo de outra maneira. Claro que é uma despesa muito grande em penso e uma canseira desgraçada com a limpeza diária das instalações, mas, sejamos justos, o Natal também é só mês e meio por ano...
quarta-feira, 23 de novembro de 2022
terça-feira, 22 de novembro de 2022
A mijinha do maestro
Nos grandes concertos sinfónicos, o maestro sai sempre no final de cada peça para ir à casinha mudar a água às azeitonas. Depois volta para as palmas, para as vénias e para as flores, sorridente e aliviado. E os músicos? Os músicos protestam batendo nas estantes e continuam em palco de perninhas apertadas e, quem sabe, a urinarem-se por elas abaixo...
P.S. - Hoje é Dia do Músico, pelo menos no Brasil.
segunda-feira, 21 de novembro de 2022
domingo, 20 de novembro de 2022
Velocidade furiosa, em Arões vamos supor
Há um novo perigo nas estradas portuguesas, e não falo de trotinetas. Há uma novo perigo nas estradas e são as cadeiras de rodas. Cadeiras de rodas eléctricas. As cadeiras. As cadeiras é que são eléctricas, as rodas não, são rodas normais, mas parece-me mal dizer cadeiras eléctricas de rodas, que é o que elas são realmente. Então, elas andam aí, são cada vez mais e cada vez mais metediças. Ainda no outro dia me apareceu uma disparada a atravessar, vamos um supor, a EN 206, em Arões, após a saída de Paçô Vieira, e só não acabou em desastre porque um de nós travou a tempo e não foi o condutor da cadeira. Cujo, aliás, agradeceu a sorte com um enorme sorriso (vá lá!) e não tinha capacete nem piscas.
As novas máquinas do asfalto alcançam a furiosa velocidade de 12 km/hora, o que não é brincadeira nenhuma para atravessar uma estrada nacional, fora de passadeira e saídas do nada. Ainda por cima está na moda o tuning, que transforma algumas delas em verdadeiras bombas, como a daquele brasileiro que uma vez foi apanhado pela polícia a mais de 60km/hora, depois de ter artilhado a sua cadeira de rodas com um motor de motorizada.
Creio que se impõe uma análise série e aprofundada ao fenómeno, em sede de. Sim, em sede de. Convoquem-se então os rapazes e eles que ajeitem uma comissão governamental e multidisciplinar com amplos poderes para remodelar o Código da Estrada, alterando, nomeadamente, a legislação referente às escolas de condução e introduzindo a especialidade de cadeiras de rodas. A sinalética de trânsito vigente terá de ser também revista e actualizada, não sendo de desprezar a possibilidade de implementar corredores específicos para cadeiras de rodas na rede de auto-estradas nacional. Com isenção de pagamento de portagens, evidentemente.
P.S. - Hoje é Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada.
As novas máquinas do asfalto alcançam a furiosa velocidade de 12 km/hora, o que não é brincadeira nenhuma para atravessar uma estrada nacional, fora de passadeira e saídas do nada. Ainda por cima está na moda o tuning, que transforma algumas delas em verdadeiras bombas, como a daquele brasileiro que uma vez foi apanhado pela polícia a mais de 60km/hora, depois de ter artilhado a sua cadeira de rodas com um motor de motorizada.
Creio que se impõe uma análise série e aprofundada ao fenómeno, em sede de. Sim, em sede de. Convoquem-se então os rapazes e eles que ajeitem uma comissão governamental e multidisciplinar com amplos poderes para remodelar o Código da Estrada, alterando, nomeadamente, a legislação referente às escolas de condução e introduzindo a especialidade de cadeiras de rodas. A sinalética de trânsito vigente terá de ser também revista e actualizada, não sendo de desprezar a possibilidade de implementar corredores específicos para cadeiras de rodas na rede de auto-estradas nacional. Com isenção de pagamento de portagens, evidentemente.
P.S. - Hoje é Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada.
Pica, 6 - Fareja, 0
Fafe tem nomes que são um mimo, uma primeirinha. Uma terra que tem um lugar chamado Pica e uma freguesia chamada Fareja só pode ser uma grande terra. E Fafe é realmente. Gosto de contar esta minúscula história: em pleno Verão de 2014, por acaso em dia de apuramento para a Liga dos Campeões, Pica e Fareja, equipas de futebol, fizeram um jogo-treino, e o resultado, sendo contundente, não significa nada por aí além, a não ser que dá para rir: Pica, 6 - Fareja, 0.
E era isto. Mas é preciso que se note: para quem é de Fafe, como eu sou, Fareja e Pica são nomes absolutamente normais, corriqueiros, que só fazem confusão ao jornalista ou ex-jornalista Nuno Azinheira, que chamou Fajães a Fareja, e a uns caralhos de fora que não conseguem passar pela tabuleta da Pica sem lhe meter a cedilha...
E assim fica aqui solenemente assinalado o dia do princípio da toléria. Começa hoje, se não me engano, o Mundial do Catar, isto é, o Mundial da vergonha, de todas as vergonhas e mais duas ou três, a não ser que Portugal venha de lá campeão.
Uma boa trancada
No monte de São Jorge havia o Pionono, assim com maiúscula, é justo que se diga. Já aqui contei. Pionono era nome próprio, sítio, geografia. "Vou ao Pionono". Ia-se ao Pionono. E o Pionono era naquele tempo muito mais do que um acomodado cabeço, crescia sem fim à vista, misterioso, palpitante, labiríntico, agigantava-se floresta, cenário de filme, de livrinho de aventuras, de fantasia e crime. Ao Pionono ia-se aos pinheiros pelo Natal, ia-se esgaçar umas pernadas de carvalho para o trono da cascata do Santo António, ia-se aos fentos ou ao mato para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem conseguir então alcançar, coitadinho, o que ela quereria dizer.
O Pionono hoje é casas e está bem. Uma rua a descer mas pouco para quem vem e, a mesma, a subir mas pouco para quem vai. À merda. Monte é que... viste-lo?
E faz falta. Os montes fazem muita falta. Principalmente derivado às coisas boas da vida. Quer-se dizer. Adaptando livremente a caricatura de António Lobo Antunes, o meu particular e indesmentível Nobel, nem é homem nem é nada quem nunca deu uma boa trancada no monte. E eu já.
O Pionono hoje é casas e está bem. Uma rua a descer mas pouco para quem vem e, a mesma, a subir mas pouco para quem vai. À merda. Monte é que... viste-lo?
E faz falta. Os montes fazem muita falta. Principalmente derivado às coisas boas da vida. Quer-se dizer. Adaptando livremente a caricatura de António Lobo Antunes, o meu particular e indesmentível Nobel, nem é homem nem é nada quem nunca deu uma boa trancada no monte. E eu já.
sábado, 19 de novembro de 2022
A deslocalização do homem-estátua
Porto, meados do mês de Novembro de 2022. Ao fim de 35 anos de inabalável serviço na ex-libríssima Praça da Liberdade, o homem-estátua chamou o fiscal da Câmara num pst! muito bem disfarçado. "Ó colega, isto aqui já não dá nada. Até o cavalo de D. Pedro IV leva mais do que eu ao fim do dia. Vou-me embora, se calhar para Fafe, fazer de pedregulho no Largo. Ou então dou o salto para o Brasil, há agora aquela vaga do Cristo Redentor, que fugiu por causa do Lula, e levo um guarda-sol e uma grade de cerveja. Lembras-te do Miguel Relvas? Sabias que sempre que os portugueses emigram têm uma visão universalista que lhes traz sucesso?", disse o homem-estátua ao fiscal camarário, por entre dentes e sem perder a pose. Era efectivamente um homem-estátua muito profissional e filósofo amiúde. "Além disso, estou farto de que me caguem em cima", acrescentou, descendo finalmente do banco de cozinha e arrumando os tarecos e o reumatismo em dois sacos plásticos do Pingo Doce do tempo em que os sacos plásticos eram de borla. "As pombas?", perguntou o fiscal da Câmara, que era um bocadinho lerdo, porém presto para as multas. "O quê?", perguntou o homem-estátua, que já nem se lembrava do que tinha acabado de dizer. "Cagam-lhe em cima, as pombas?", perguntou o fiscal da Câmara. "Os pombos. O Sócrates, o Cavaco, o Oliveira e Costa, o Salgado, o Rendeiro, o Dias Loureiro, o Duarte Lima, o Vara, o Durão Barroso, o Horta e Costa, o Carlos Costa, o António Costa, o Constâncio, o Centeno, o Cabrita, o Medina, o Vieira, o Berardo, o Miguel Alves, e estes são apenas os que eu distingo pela anilha e pelo cu, que de fronha são todos muito parecidos...", respondeu o homem-estátua, escarafunchando os bolsos à procura dos apontamentos e do manguito do Bordalo. Tinham sido realmente muitos anos de gesto suspenso e bico calado.
P.S. - Hoje é Dia Internacional do Homem.
Adeste infideles
Sabem: quando se acorda com aquela canção, aquela música na cabeça que nos embala o dia inteiro? Isso. Acordei com Adeste fideles na cabeça. Acordei e olhei para o rádio-relógio-despertador da mesinha-de-cabeceira - quatro da manhã. O habitualmente circunspecto rádio-relógio-despertador riu-se de mim, que eu bem vi. Fui à cozinha beber um copo de água e conferir o calendário - 19 de Novembro de 2022. O calendário riu-se de mim, tenho provas. Foda-se! Já nem o Natal é quando um homem quiser...
sexta-feira, 18 de novembro de 2022
Doentinhos, graças a Deus!
Foto Hernâni Von Doellinger |
Já agora. O meu rijo avô de Basto esteve doente uma única vez, se não me engano. E morreu. Com os pulmões vagarosamente estraçalhados pelos anos longínquos do trabalho nas minas e uma vida no aparelho da pedra.
Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Às vezes até penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Os Bombas, por definição, são entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas de galinha. Só estão bem quando estão doentes. Conhecem todas as doenças e os dois volumosos tomos da Farmacopeia Portuguesa por ordem alfabética, de cor e salteado, da frente para trás e de trás para a frente, índices e apêndices incluídos, automedicam-se e só precisavam da consulta e da assinatura do médico - "especialista!", sempre "especialista!", e "do Porto!" - para autenticar o internamento a troco de quilo e meio da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Senhor Abreu do Talho Novo, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Justificava-se a despesa dos unhas-de-fome: o internamento em hospital era a sorte grande, a realização de um sonho. Recorrente. Para que o povo soubesse que!
Os meus queridos avós da Bomba, ninguém me tira da ideia, não morreram da doença. Faleceram da mania.
P.S. - Hoje é Dia Europeu dos Antibióticos.
quinta-feira, 17 de novembro de 2022
quarta-feira, 16 de novembro de 2022
terça-feira, 15 de novembro de 2022
domingo, 13 de novembro de 2022
No tempo dos Antigos
Os Antigos sabiam tudo. No tempo deles é que era. Havia respeito, havia educação, bondade, sabedoria, paz, saúde e sobretudo velhice. Os Antigos merecem a letra grande, Antigos, como se fossem uma civilização, porque deveras são.
Os Antigos sabiam de laranjas - de manhã ouro, à tarde prata e à noite mata. Sabiam do tempo - em Abril, águas mil. Sabiam de horas e alturas - deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer. Sabiam de curas e maleitas - o vinagre e o limão meio cirurgião são. Sabiam de tubérculos e famulagem - não comas caldo de nabos nem o dês aos teus criados. Sabiam de presigos e segurança pública - sardinha sem pão é comer de ladrão. Sabiam de magustos e viagras - a castanha excita o coito e alimenta muito. Sabiam de proporções - bom comer: três vezes beber. Sabiam de criação e divindades - ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo. Sabiam de prestidigitação e utopias - mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Sabiam saltar a cerca - a galinha da vizinha é sempre melhor que a minha. E sabiam guardar um segredo - o corno é o último a saber.
Os Antigos morriam muito, mas morriam muito velhinhos, isto é, por volta dos cinquenta, sessenta anos.
Os Antigos não andavam por aí aos tiros. Andavam às pauladas, às facadas, às sacholadas - e aos tiros.
Os Antigos não matavam por dá cá aquele palha. Matavam por causa da água - e geralmente por causa do vinho. E às vezes por dá cá aquela palha, só para não darem parte de fraco.
Os Antigos não emprenhavam raparigas solteiras a torto e a direito. Os filhos de pai incógnito eram realmente mais que as mães, mas eram milagres, isso está provado.
Os Antigos não toleravam e até perseguiam os maricas, isto é, os paneleiros, porém consideravam razoável que o senhor padre fosse ao pito às moças da paróquia e brincasse com as pilinhas dos meninos da catequese.
Os Antigos sabiam muito de política e achavam que melhor que um Salazar só dois Salazares. Melhor ainda, um Salazar em cada esquina e o país de bico calado. Entre Salazar e Fátima, era a única dúvida que tinham os Antigos, e por isso resolveram apegar-se aos dois.
Os Antigos sabiam como fazer homens. Pegavam nos rapazes e mandavam-nos para a tropa, se possível para a guerra. Bater nos filhos fazia parte, e nas mulheres também.
Os Antigos sabiam o lugar da mulher. Em casa. Na cozinha. A fazer croché. E se saíam à rua, era marido à frente e mulher um passo atrás, como Deus ensinou e está na Bíblia. Ser marido era um posto.
Os Antigos respeitavam muito as esposas. Por isso iam às putas.
Os Antigos andam por aí. E estamos no tempo deles.
Os Antigos sabiam de laranjas - de manhã ouro, à tarde prata e à noite mata. Sabiam do tempo - em Abril, águas mil. Sabiam de horas e alturas - deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer. Sabiam de curas e maleitas - o vinagre e o limão meio cirurgião são. Sabiam de tubérculos e famulagem - não comas caldo de nabos nem o dês aos teus criados. Sabiam de presigos e segurança pública - sardinha sem pão é comer de ladrão. Sabiam de magustos e viagras - a castanha excita o coito e alimenta muito. Sabiam de proporções - bom comer: três vezes beber. Sabiam de criação e divindades - ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo. Sabiam de prestidigitação e utopias - mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Sabiam saltar a cerca - a galinha da vizinha é sempre melhor que a minha. E sabiam guardar um segredo - o corno é o último a saber.
Os Antigos morriam muito, mas morriam muito velhinhos, isto é, por volta dos cinquenta, sessenta anos.
Os Antigos não andavam por aí aos tiros. Andavam às pauladas, às facadas, às sacholadas - e aos tiros.
Os Antigos não matavam por dá cá aquele palha. Matavam por causa da água - e geralmente por causa do vinho. E às vezes por dá cá aquela palha, só para não darem parte de fraco.
Os Antigos não emprenhavam raparigas solteiras a torto e a direito. Os filhos de pai incógnito eram realmente mais que as mães, mas eram milagres, isso está provado.
Os Antigos não toleravam e até perseguiam os maricas, isto é, os paneleiros, porém consideravam razoável que o senhor padre fosse ao pito às moças da paróquia e brincasse com as pilinhas dos meninos da catequese.
Os Antigos sabiam muito de política e achavam que melhor que um Salazar só dois Salazares. Melhor ainda, um Salazar em cada esquina e o país de bico calado. Entre Salazar e Fátima, era a única dúvida que tinham os Antigos, e por isso resolveram apegar-se aos dois.
Os Antigos sabiam como fazer homens. Pegavam nos rapazes e mandavam-nos para a tropa, se possível para a guerra. Bater nos filhos fazia parte, e nas mulheres também.
Os Antigos sabiam o lugar da mulher. Em casa. Na cozinha. A fazer croché. E se saíam à rua, era marido à frente e mulher um passo atrás, como Deus ensinou e está na Bíblia. Ser marido era um posto.
Os Antigos respeitavam muito as esposas. Por isso iam às putas.
Os Antigos andam por aí. E estamos no tempo deles.
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