quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Eu tinha uma abençoadora

Foto Hernâni Von Doellinger
Gosto que me digam "Até amanhã, se Deus quiser". Gosto. Gosto que me digam "O Senhor te abençoe". Gosto. Gosto que me digam "Vai com Deus". Gosto. Acredito em bênçãos, mas execro as benzeduras. Como acredito na oração, mas dispenso as rezas. Acredito. Dispenso intermediários, agentes, representantes, vendedores e empresários - eu e Deus é assunto nosso, ligação directa. Dispenso também os novos profetas e as novas profetisas, o Facebook, o Instagram, o Twitter, as e os influencers, as mensagens em cadeia e às vezes a opinião da Fernanda Câncio no DN. Dispenso.
Gosto de pedir a bênção, gosto que me abençoem. Eu pedia a bênção beijando a mão aos meus avós da Bomba e aos meus avós de Basto. Pedia a bênção ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Eu até pedia a bênção ao senhor abade!
E fiquei traumatizado para toda a vida, como diria o outro que disse Foucault.
Gosto tanto de ser abençoado, que a minha mãe já sabe: as nossas despedidas só estão completas quando ela me diz "O Senhor te abençoe! Fica com Deus!", e eu digo "Obrigado!", sem saber onde meter as mãos e as lágrimas. Pelo sim e pelo não, tusso.

Gosto de bênçãos, acredito nas bênçãos. Porque sim, e não por respeito ou porque me ensinaram ou obrigaram em pequenino. Sou interesseiro. Preciso de bênçãos como de pão para a boca, as bênçãos fazem-me tanta falta como o ar que respiro, como água no autoclismo. Sou abençoado por ter um amigo que há anos me abençoa com a sua fraternidade sem juros e não acredita em bênçãos, e o que é que isso interessa? Pelo contrário, a Senhora Dona Maria Amélia, que ali vai no retrato, ligeira quanto podia, abençoava-me todos os dias cerca das sete e meia da manhã. Eu madrugava de propósito para encontrá-la na minha caminhada diária pela marginal Matosinhos-Porto.
A minha abençoadora das 7h30 vinha de Gondomar e àquela hora já estava prestes a apanhar o(s) autocarro(s) de regresso a casa. Não consigo imaginar a que horas é que ela saía da cama. Tinha as pernas vergadas pela idade, talvez 84 anos, não sabia bem, e pela vida, dez filhos, nem todos mansos, muito trabalho e desgostos mais do que a conta. Via-me, levantava o braço direito e dizia-me, num largo e comovente sorriso, "Bom dia, vá com Deus!"
E eu ficava pronto. Claro que a Senhora Dona Maria Amélia dizia "Bom dia, vá com Deus!" a toda a gente. A maioria não ligava, ignorava-a ou sorria-se dela, pior para eles e mais sobrava para mim.

Quando os meus, família ou amigos, saem cá de casa, digo-lhes sempre, à porta, "Vai com cuidado!", e repito quantas vezes forem precisas até obter uma resposta. Um "Sim!" ou um "Tá bem..." sossegam-me. Digo "Vai com cuidado!" porque vi muito A Balada de Hill Street e, por outro lado, sinto que não tenho estatuto para dizer "Vai com Deus!" Mas eles sabem que, nas entrelinhas do coração, o que lhes estou realmente a dizer é "O Senhor te abençoe, vai com Deus!" e, sobretudíssimo, "Até amanhã, se Deus quiser"...

Eu sempre fui muito dado a amizades improváveis com velhas senhoras mais ou menos esdrúxulas. Desde pequeno, em Fafe. As Grilas, as Turicas, as duas Milinhas do Santo Velho, a Modista e a Vaqueiro, para não ir mais longe, fazem parte do melhor da minha vida.
A minha abençoadora das 7h30 era outra que tal, mas desapareceu-me. Os nossos horários desirmanaram-se, coisas da vida, e já não nos encontramos há quase três anos, para meu grande desgosto e prejuízo, porque as bênçãos, já disse, fazem-me falta. Sem ter perguntado, soube que a boa senhora nunca mais foi vista às horas do costume nos sítios do costume, entre Matosinhos e a Foz. Não sei dela, e está aí outra vez o Natal. Primeiro fiquei preocupado, mas depois resolvi pensar que a Senhora Dona Maria Amélia terá aproveitado para meter um longo período de férias, porque isto de desejar o bem dos outros também cansa. É isso, a minha abençoadora está de férias num sítio bem bom, reservado só para pessoas de categoria. O novo ano é já para a semana e ela voltará, mais forte do que nunca, à moda dos jogadores de futebol após lesão, para me abençoar outra vez como manda a sapatilha. Se Deus quiser.

Sem comentários:

Enviar um comentário

O circo chegava e a vila espertava

Foto Hernâni Von Doellinger Circo que é circo tem nome de circo. Ponto. Nome com pozinhos de perlimpimpim, nomes exóticos, inventados à la m...