Casámos de branco, os dois, ou cuidavas que eu me ficava? Tu parecias uma princesa de conto de fadas e eu parecia o Américo Tomás de visita a Fafe para inaugurar um chafariz. Mas que belo par de jarras - diziam os convidados -, serão da Vista Alegre? E os néscios dos teus progenitores inchados de orgulho, "Vista Alegre, estás a ver António, estou farta de te dizer, não há nada como o branco", rejubilava a sonsa da tua mãe, e o teu pai, burro como um sino, que me desculpe o sino, "Fresquinho, se for fresquinho não digo que não, Maria"...
Vinte anos, como tão redondamente dizia Patxi Andión, embora ele realmente dissesse veinte años. Dávamo-nos bem, Glória, parecíamos mesmo um casal: eu não me metia contigo e tu não te metias comigo. Que bem que vivíamos um sem o outro. Éramos um exemplo. O cuidado que eu tinha com o estore, de manhã, para não te incomodar. Os vagares com que eu andava pela casa, em pezinhos de lã, por causa dos calos e porque dizias que a minha presença te fazia corrente de ar. Fui ou não fui ao workshop de reeducação para mijadores sem ponto de mira que tanto me recomendaste? Íamos ou não íamos todos os anos aquele domingo de Agosto à Póvoa de Varzim fazer as nossas ricas férias? Tu sabes, devias saber que eu nunca te enganei, Glória, palavríssima de honríssima, desculpa-me o superlativo absoluto sintético em dose dupla, mas já estou por tudo. Fui-te fiel como só um bacalhau seco e posteriormente demolhado pode ser. Dei-te vinte anos da minha vida e tu recambias-mos resumidos e empacotados em dezassete sacos de plástico que me obrigaste a pagar e colocaste na parte de fora da porta de casa. Dezassete? Não mereço vinte, para ser conta certa? Eu sei que as coisas já não estavam como antigamente, esfriaram, mas não será essa a evolução natural de vida de casados? O amor funciona a coração e não a gás, Glória, o amor não é chama eterna como o filme do George Cukor com o Spencer Tracy e a Katharine Hepburn, vai arrefecendo como o jantar, e deixa-me tomar nota desta, que é muito boa...
Vinte anos de uso e nem me levaste à troca. E isso é o que mais me magoa, Glória. Dizes que me mandas embora porque eu não presto e não porque encontraste melhor. Não faças assim, Glória, ao menos põe-me os cornos, ainda estás a tempo, faz-me esse favor, dá-me essa alegria, põe-me os cornos. Se não for por mim, que seja pelos nossos queridos filhos, coitadinhos, que vamos desgraçar para o resto da vida deles com esta tão unilateral quanto politraumatizante separação. O quê? Não temos filhos? Pois não, desculpa, Glória, às vezes entusiasmo-me um bocadinho.
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