P.S. - Hoje é Dia Nacional da Desburocratização.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Os desburocratas
Para quem não sabe ou não se lembra, informo que os Mercadinhos Montenegro foram o primeiro "supermercado" de Fafe. Apareceram como uma autêntica novidade. Havia lá de tudo como na farmácia - a Farmácia Moura, que lhe ficava em frente - e ainda por cima os seus donos faziam o favor de pagar os vales postais das pensões e reformas dos seus clientes mais pobres e amiúde analfabetos, livrando-os do incómodo e até da humilhação burocrática de uma ida ao banco ou aos Correios. Os "Mercadinhos" eram uma espécie benévola de loja do cidadão ou tesouraria popular. Primeiro com o Toninho da Luísa, depois com o Chico. Gente com olho para o negócio, certamente, mas sobretudo gente boa, solidária, decente - desburocratas antes do tempo.
A papelada do Sr. Armindo Bristol
Antigamente mandava-se a papelada para baixo, e quem tratava do assunto em Fafe, desburocratizando a vida dos mais pobres, era o Sr. Armindo Bristol, pai do Armindo Cinco-Coroas, príncipes do velho Picotalho e gente do melhor que possa haver em Portugal e no mundo inteiro. Meter os papéis era pedir a reforma. Sim, pedir, como se fosse uma esmola, e era - como se não fosse um direito. O Sr. Armindo pai, homem letrado e bom, vestia fato e sobretudo e despachava na mesa do tasco muito limpa e organizada em envelopes, folhas de papel de 25 linhas, folhas de papel selado, cédulas pessoais, bilhetes de identidade, cartões da Caixa, recibos, atestados médicos, provas de vida, recomendações do presidente da Junta, do regedor e do bufo da Pide, a bênção do senhor abade, selos dos Correios e estampilhas fiscais, uma caneca de verde tinto e quero crer que escrevia com caneta de tinta permanente.
O Sr. Armindo, figura excelentíssima que um dia espero contar melhor e mais minuciosamente, passou uma porrada de anos no sanatório e foi lá que se formou em desburocracia e ajuda aos outros. Quando tornou a casa, salvou o resto das vidas de milhares de fafenses desinformados, abandonados, assustados e analfabetos. Fez-se loja do cidadão. Serviço prestado a troco de um quartilho, por um punhado de moedas ou por uma nota de vinte, consoante as posses dos desgraçados requerentes e da previsão da tença a haver, ou então por nada, apenas por um obrigado, um Deus lhe pague, uma mãozada, ficamos assim e não se fala mais nisso, porque na nossa terra, naquele tempo, abundava quem não tivesse dinheiro sequer para assobiar em cuecas sem ir preso, e o Sr. Armindo sabia disso, conhecia o povo, um a um, e fazia caso.
P.S. - Hoje é Dia Nacional da Desburocratização.
quarta-feira, 30 de outubro de 2024
Quando o cancro era pecado
Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita. Evidentemente eu não posso dizer se Fafe era uma terra mais ou menos hipócrita do que as outras terras, porque eu só conhecia Fafe, mas que Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita, disso tenho a certeza absoluta, porque eu estava lá e não sou parvo. Provavelmente Portugal completo era um país um bocadinho hipócrita, se calhar inteiramente hipócrita, mas disso eu não sabia ainda, não fazia sequer ideia, porque, é como digo, eu estava em Fafe, e em Fafe desconhecia-se o mundo abaixo de Arões, sobretudo derivado àquilo de que Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita. Mas, verdade seja dita, éramos razoavelmente felizes e saudáveis.
Em Fafe, por exemplo, ninguém padecia de cancro. Porque em Fafe não existia a palavra cancro. Cancro. A palavra cancro não se dizia. O cancro era crime e castigo. Pecado e culpa. Vergonha, tabu. O cancro estava proibido. Dizia-se que Fulano ou Sicrana tinham - aqui baixando a voz ao nível do sussurro, do segredo ao ouvido, do cochicho maledicente, da coscuvilhice beata - um psdtrff. Um psdtrff, com sinal da cruz e tudo. Sim, estava no hospital, no Porto, com um psdtrff, muito malzinha ou malzinho, consoante fosse Sicrana ou Sicrano, Deus lhe perdoe. Muitos fafenses morreram, naquele tempo, com psdtrff, mas nunca ninguém morreu com cancro. E não havia Sicranes.
E mamas? Mamas, dizia-se. Havia mama e havia mamas em Fafe, embora não fosse geral, como já aqui informei com todo o rigor. Tanto quanto me lembro, predominava um certo convencimento de que as raparigas e mulheres de Fafe possuíam realmente mamas, porém nem todas queriam que isso se soubesse. Mas cancro e mamas ou mama é que nunca poderiam coincidir numa mesma frase: cancro da mama, vamos um supor, seria impossível, desde logo porque é obsceno, e a pornografia constava que era só em Guimarães, e, em todo o caso, como se viu, a palavra cancro não existia em Fafe. Psdtrff da mama, com todo o respeito, até admito que possa ter havia, mas eu nunca ouvi dizer, devo confessar.
E depois do cancro, a sida, a mesma hipocrisia, a mesma pequena hipocrisia, a mesma enorme ignorância. Ignorância e indizível maldade. Naquele tempo, o cancro esteve para a sida como João Baptista serviu para Jesus Cristo, mas não adiantou, ninguém acreditou, essa parte não vinha no catecismo de sacristia, rançoso e cruel, e bondade e compaixão eram apenas palavras da boca para fora. Como psdtrff ou, deixemo-nos de merdas, "doença prolongada"...
Assim eram as coisas nos bons velhos tempos, e eu limito-me a contá-las tal qual as sei. Fafe está aqui como mero pretexto, mais nada. Fafe é hoje uma terra completamente diferente e absolutamente igual. Porque Fafe, sendo talvez às vezes uma terra um bocadinho hipócrita, é com certeza e sempre uma terra do caralho. Quero dizer, do c******.
P.S. - Hoje é Dia Nacional de Prevenção do Cancro da Mama.
Em Fafe, por exemplo, ninguém padecia de cancro. Porque em Fafe não existia a palavra cancro. Cancro. A palavra cancro não se dizia. O cancro era crime e castigo. Pecado e culpa. Vergonha, tabu. O cancro estava proibido. Dizia-se que Fulano ou Sicrana tinham - aqui baixando a voz ao nível do sussurro, do segredo ao ouvido, do cochicho maledicente, da coscuvilhice beata - um psdtrff. Um psdtrff, com sinal da cruz e tudo. Sim, estava no hospital, no Porto, com um psdtrff, muito malzinha ou malzinho, consoante fosse Sicrana ou Sicrano, Deus lhe perdoe. Muitos fafenses morreram, naquele tempo, com psdtrff, mas nunca ninguém morreu com cancro. E não havia Sicranes.
E mamas? Mamas, dizia-se. Havia mama e havia mamas em Fafe, embora não fosse geral, como já aqui informei com todo o rigor. Tanto quanto me lembro, predominava um certo convencimento de que as raparigas e mulheres de Fafe possuíam realmente mamas, porém nem todas queriam que isso se soubesse. Mas cancro e mamas ou mama é que nunca poderiam coincidir numa mesma frase: cancro da mama, vamos um supor, seria impossível, desde logo porque é obsceno, e a pornografia constava que era só em Guimarães, e, em todo o caso, como se viu, a palavra cancro não existia em Fafe. Psdtrff da mama, com todo o respeito, até admito que possa ter havia, mas eu nunca ouvi dizer, devo confessar.
E depois do cancro, a sida, a mesma hipocrisia, a mesma pequena hipocrisia, a mesma enorme ignorância. Ignorância e indizível maldade. Naquele tempo, o cancro esteve para a sida como João Baptista serviu para Jesus Cristo, mas não adiantou, ninguém acreditou, essa parte não vinha no catecismo de sacristia, rançoso e cruel, e bondade e compaixão eram apenas palavras da boca para fora. Como psdtrff ou, deixemo-nos de merdas, "doença prolongada"...
Assim eram as coisas nos bons velhos tempos, e eu limito-me a contá-las tal qual as sei. Fafe está aqui como mero pretexto, mais nada. Fafe é hoje uma terra completamente diferente e absolutamente igual. Porque Fafe, sendo talvez às vezes uma terra um bocadinho hipócrita, é com certeza e sempre uma terra do caralho. Quero dizer, do c******.
P.S. - Hoje é Dia Nacional de Prevenção do Cancro da Mama.
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O cancro, entre "vencedores" e "vencidos"
Um dos títulos mais useiramente infelizes na nossa comunicação social são dois: "Fulano venceu o cancro" e "Sicrano derrotado pelo cancro". Os heróis e os falhados. Ultrapassa-se o cancro simplesmente porque se faz muita força, morre-se de cancro por indecente e má figura.
Ora, a realidade lá fora dos teclados e da tabela de vendas não é assim. Sobreviver ao cancro está muito pouco nas mãos de quem o padece. Depende de tantas e tantas variáveis exteriores ao doente e à "coragem" do doente, que só vou citar duas, dinheiro e médicos, e nada é garantido, e tudo se resume, no final, a tempo, sorte ou azar. Não há fortes e fracos, competentes e incompetentes, lutadores e cobardes. Não há vencedores nem vencidos nisto do cancro, assunto sério. É a vida.
Imagine-se o ridículo que seria levar o jargão jornalístico até às últimas consequências e, em casos de atropelamento, escrevermos, elogiando os sobreviventes, "Fulano venceu a motorizada", aos pontos obviamente, ou, injustiçando os mortos, "Sicrano derrotado pelo motociclo". Horrível, não é? Pois com o cancro também.
P.S. - Hoje é Dia Nacional de Prevenção do Cancro da Mama. Escrevi e publiquei este textinho de protesto no dia 10 de Maio de 2014, no meu blogue Tarrenego! Não é a primeira nem posso garantir que seja a última vez que o republico. É a minha luta contra a estupidez. E outra coisa: eu não alinho nessa moda nova de que o cancro é uma revelação, uma epifania, uma experiência transcendental, "o melhor que me aconteceu na vida". Não, perdoem-me a curteza de vistas, mas eu continuo a achar que o cancro é uma merda.
Ora, a realidade lá fora dos teclados e da tabela de vendas não é assim. Sobreviver ao cancro está muito pouco nas mãos de quem o padece. Depende de tantas e tantas variáveis exteriores ao doente e à "coragem" do doente, que só vou citar duas, dinheiro e médicos, e nada é garantido, e tudo se resume, no final, a tempo, sorte ou azar. Não há fortes e fracos, competentes e incompetentes, lutadores e cobardes. Não há vencedores nem vencidos nisto do cancro, assunto sério. É a vida.
Imagine-se o ridículo que seria levar o jargão jornalístico até às últimas consequências e, em casos de atropelamento, escrevermos, elogiando os sobreviventes, "Fulano venceu a motorizada", aos pontos obviamente, ou, injustiçando os mortos, "Sicrano derrotado pelo motociclo". Horrível, não é? Pois com o cancro também.
P.S. - Hoje é Dia Nacional de Prevenção do Cancro da Mama. Escrevi e publiquei este textinho de protesto no dia 10 de Maio de 2014, no meu blogue Tarrenego! Não é a primeira nem posso garantir que seja a última vez que o republico. É a minha luta contra a estupidez. E outra coisa: eu não alinho nessa moda nova de que o cancro é uma revelação, uma epifania, uma experiência transcendental, "o melhor que me aconteceu na vida". Não, perdoem-me a curteza de vistas, mas eu continuo a achar que o cancro é uma merda.
terça-feira, 29 de outubro de 2024
Corra, antes que esgote!
Foto Hernâni Von Doellinger |
Marisa Liz, Miguel Araújo e António Zambujo voltam a Fafe, em Dezembro, para o encerramento das comemorações dos 100 anos do Teatro-Cinema. Marisa Liz a 7, Miguel Araújo a 13, António Zambujo a 21. Cartaz de luxo.
E é extraordinário! O espectáculo de Marisa Liz "esgotou" logo após ter sido anunciado, como costuma acontecer naquelas terrinhas cómicas onde, há quem diga, os do costume abarbatam-se primeiro aos bilhetes e só depois colocam o restinho à venda, mas Fafe não é certamente assim, como, de resto, o Município se apressou a explicar.
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segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Festa da terceira idade
Hoje é Dia Mundial da Terceira Idade. Vamos fazer uma festa de arrebenta cá em casa, eu e a mulher. E à noute, antes de deitar, uma canjinha.
P.S. - Hoje é Dia Mundial da Terceira Idade.
Os livros estavam em boas mãos
P.S. - Publicado no passado dia 12 de Março, bibliotecas. Hoje é Dia da Biblioteca Escolar.
domingo, 27 de outubro de 2024
As horas, a toque de caixa
O mundo girava ao ritmo dos sinos da Igreja Nova e do apito da Fábrica do Ferro. Estávamos em Fafe e naquele tempo não me constava que houvesse outro mundo. A vida, as horas, os chamamentos, era tudo com norma, à tabela e a toque. Para a fé e para o trabalho, para a devoção e para a exploração - os sinos avisavam para a missa, o apito marcava a mudança de turnos, entradas e saídas de povo às revoadas na velha Companhia de Fiação e Tecidos de Fafe. Comia-se quando a igreja desse meio-dia. Aquelas eram as horas certas de Fafe. Oficiais.
Claro que havia quem destoasse, porque o mundo, para ser realmente mundo completo, e Fafe era, tem de ter de tudo, mesmo tolos e destoantes, senão o que é que seria de mim? E era também o caso daquele operário da Fábrica do Ferro que uma vez foi impedido de picar o ponto para pegar ao serviço, porque, disseram-lhe, passava um minuto da hora.
- Estás atrasado! Não ouviste o apito? - atirou o porteiro.
- O apito está adiantado, ainda faltam dois minutos. Olha, tenho e relógio acertado pela Emissora Nacional! - argumentou o operário.
- Então vai trabalhar para a Emissora Nacional... - mandou o porteiro.
Era assim a vida. Era assim o mundo. E o mundo era em Fafe, disso não há dúvidas.
P.S. - A Emissora Nacional era a actual RDP. Era a rádio nacional e rádio do regime. Os seus "pis" horários, antes dos noticiários, acertavam os relógios do país inteiro.
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sábado, 26 de outubro de 2024
Que puta de vida!
Foto Hernâni Von Doellinger |
Mas o Lopes. O Lopes é um bom caralho! Aqui atrasado ofereceu-me "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista", para mim, estais a ver a malandrice? Porque o Lopes parece que está sempre no gozo. O Lopes chama-se Luís Lopes, é jornalista, escritor, argumentista e fafense amador, tantas as vezes que me acompanhou nos meus periódicos e mais ou menos nocturnos regressos à terra. O seu primeiro livro, publicado pela Vega em 1997, tem por título "Que Puta de Vida!", e quem ainda não leu, não sabe o que anda a perder. É coisa que se lê num lampo ou, melhor dizendo, no tempo de uma gargalhada. Ou de um espirro. Alguns raros exemplares poderão ainda ser encontrados, creio, nas melhores casas da especialidade.
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sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Compras na net
Hoje é Dia de Compras na Net. Mas tenha muito cuidado! Olhe para os dois lados, atravesse a rua e vá ao Lidl.
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Fui de comboio prà guerra
Podem não acreditar, mas eu também fui de comboio para a guerra, e já a guerra tinha acabado. O comboio é que ainda não. Isto é, naquele tempo até nem era nada de extraordinário ir-se de comboio para a guerra, porque Fafe tinha comboio, mas aqui fica o registo, a nota pessoal. Deram-me, portanto, uma guia de marcha. Embarquei em Fafe num domingo à noite, quase ainda fim de tarde, bem bebido, e cheguei à Amadora na segunda-feira de manhã, sóbrio, a bater à porta da guerra mesmo à hora de abertura do expediente. Era um comboio sobrelotado e verde, quer-se dizer, a esbordar de magalas fardados e sonolentos. Fafe-Amadora, ligação rápida e praticamente directa, com os necessários sobressaltos na Trindade, São Bento e Campanhã, no Porto, e em Santa Apolónia e Rossio, em Lisboa. E de borla. A Pátria tratava-nos bem. Levava-se merendeiro de casa, evidentemente.
Eu fui à guerra e comi 21 gafanhotos de uma vez, uns atrás dos outros. Isso. Quando fiz 21 anos, num dia mais ou menos assim, comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me estou a queixar, embora tenha sido uma canseira andar a persegui-los e a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltinhos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, os insultos do tenente, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos no dia exacto e triste em que fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Mas os gafanhotos. Os gafanhotos eram absolutamente essenciais, alimentavam heróis em construção, forjavam homens de aço, oleavam máquinas de guerra que haveríamos de ser. Eram, repito, absolutamente essenciais, naturalmente curriculares. Os gafanhotos e a pancada.
P.S. - Hoje é Dia do Exército Português.
Mas os gafanhotos. Os gafanhotos eram absolutamente essenciais, alimentavam heróis em construção, forjavam homens de aço, oleavam máquinas de guerra que haveríamos de ser. Eram, repito, absolutamente essenciais, naturalmente curriculares. Os gafanhotos e a pancada.
O meu encontro gastronómico com os gafanhotos teve como cenário os bélicos campos e montes de Santa Margarida durante a chamada "semana maluca" dos Comandos, em que o dia é noite e a noite é dia, com horários e afazeres trocados, incluindo as refeições e a instrução, manobras ainda por cima abrilhantadas pelas famosas prova da sede, prova de choque ou prova de sobrevivência. Famosas e às vezes fatais. Quer-se dizer: pancada, pancada e mais pancada!
Assim eram os Comandos, tropa dita de elite para onde não fui voluntário, é preciso que se note. "Mais logo afocinharemos!", ameaçava o tenente por tudo e por nada, só porque lhe apetecia. E afocinhávamos. Passávamos a vida a afocinhar. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, mais de quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que uma vez por outra "as coisas correm mal". Há mortes, mesmo no intervalo da guerra. O treino não podia ser mais completo.
Assim eram os Comandos, tropa dita de elite para onde não fui voluntário, é preciso que se note. "Mais logo afocinharemos!", ameaçava o tenente por tudo e por nada, só porque lhe apetecia. E afocinhávamos. Passávamos a vida a afocinhar. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, mais de quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que uma vez por outra "as coisas correm mal". Há mortes, mesmo no intervalo da guerra. O treino não podia ser mais completo.
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor palerma. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana, e eu cheio de saudades de Fafe e da namorada no Porto.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche decerto marchariam melhor. Pelo menos parece ser esse o entendimento da nossa Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, que anunciou em Junho de 2021 a autorização para a produção, comercialização e utilização na alimentação em Portugal de sete espécies de insectos - duas de gafanhotos, duas de grilos, duas de larvas e um besouro.
Por aquela altura, no meu breve tempo de Comandos, eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com o trágico David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro Juca Chaves (1938-2023) e que, se bem me lembro, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando!...
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche decerto marchariam melhor. Pelo menos parece ser esse o entendimento da nossa Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, que anunciou em Junho de 2021 a autorização para a produção, comercialização e utilização na alimentação em Portugal de sete espécies de insectos - duas de gafanhotos, duas de grilos, duas de larvas e um besouro.
Por aquela altura, no meu breve tempo de Comandos, eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com o trágico David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro Juca Chaves (1938-2023) e que, se bem me lembro, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando!...
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quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Gérald Bloncourt e a emigração portuguesa
"Gérald Bloncourt: o fotógrafo da emigração portuguesa" é o tema da conferência agendada para o dia 29 de Outubro, próxima terça-feira, pelas 18 horas, no salão nobre do Teatro-Cinema de Fafe. Intervenção a cargo de Daniel Bastos, historiador da diáspora e autor de obras de referência sobre o trabalho fotográfico de Bloncourt a propósito da emigração e da génese da democracia portuguesa. A entrada é livre.
terça-feira, 22 de outubro de 2024
As paredes tinham ouvidos. E os soalhos também.
No tempo em que as pessoas falavam, as paredes tinham ouvidos. E os soalhos também. Mas as pessoas falavam, mulheres e homens, porque era preciso, falar era respirar, era prova de vida, e não vai assim há tanto tempo. Os cafés, as mesas de restaurante costumavam ser sítios de conversa, de tertúlia, de crítica, de protesto, de esgrima de argumentos. De vida. Ainda os nunos rogeiros e os marcelos rebelos de sousas não tinham sido inventados pela televisão e já nós sabíamos tudo de tudo, primeiro no Peludo e depois no Peixoto, evidentemente em Fafe, que era o centro do mundo. Guerra, França, futebol, política, Mário Soares e Álvaro Cunhal, pesca e caça, religião, padres fodilhões, música, alterações climáticas, vinho, teoria da relatividade, teorias da conspiração, medicamentos, bolo com sardinhas, gajas e automóveis, festival da canção, rácios bolsistas e sobretudo motorizadas, Zundapp vs. Sachs, sabíamos na ponta da língua e cada qual dava a opinião que se impunha, a opinião definitiva. Fumava-se provisórios...
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite dentro naquela conversa transversal, ecuménica, polifónica, finamente regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da Pide: autoproclamavam-se, gabavam-se, ameaçavam, faziam-se passar por bufos da Pide, salazares dos pequeninos, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram, nem em casa, onde levavam nos cornos e bico caldo. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia diversos.
O 25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, cascas de tremoços, à falta de conteúdo e de dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, que é livre e de graça, estamos conversados - acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e amarelas e corações e dedos assim ou assado, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece que estão todos proibidos uns dos outros. Que desperdício de liberdade!...
Nos restaurantes, o mesmo desconsolo. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso, rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a generalização, para mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes.
É. As pessoas julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas esbanjam todas as suas doutas opiniões, todos os seus espertíssimos achismos, na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV. (Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da Amadora, sobre a problemática do Cristiano Ronaldo e da Selecção Nacional, ou o senhor Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e ficam caladas e sós. Sós umas das outras. São criaturas sem assunto, estão vazias: já disseram tudo e não era nada.
Mas tornando à mesa do café. As cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos, sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via ao longe uma ou duas vezes ao ano.
P.S. - A Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) foi criada no dia 22 de Outubro de 1945, alargando a acção repressiva da então extinta Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE).
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite dentro naquela conversa transversal, ecuménica, polifónica, finamente regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da Pide: autoproclamavam-se, gabavam-se, ameaçavam, faziam-se passar por bufos da Pide, salazares dos pequeninos, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram, nem em casa, onde levavam nos cornos e bico caldo. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia diversos.
O 25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, cascas de tremoços, à falta de conteúdo e de dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, que é livre e de graça, estamos conversados - acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e amarelas e corações e dedos assim ou assado, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece que estão todos proibidos uns dos outros. Que desperdício de liberdade!...
Nos restaurantes, o mesmo desconsolo. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso, rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a generalização, para mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes.
É. As pessoas julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas esbanjam todas as suas doutas opiniões, todos os seus espertíssimos achismos, na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV. (Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da Amadora, sobre a problemática do Cristiano Ronaldo e da Selecção Nacional, ou o senhor Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e ficam caladas e sós. Sós umas das outras. São criaturas sem assunto, estão vazias: já disseram tudo e não era nada.
Mas tornando à mesa do café. As cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos, sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via ao longe uma ou duas vezes ao ano.
P.S. - A Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) foi criada no dia 22 de Outubro de 1945, alargando a acção repressiva da então extinta Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE).
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
O Padre Clementino
O Padre Clementino morava no seminário. Não porque fosse prefeito ou professor ou tivesse outras responsabilidades administrativas ou religiosas, mas apenas porque naquele tempo ainda não havia lares para padres velhinhos e desconsertados. O Padre Clementino não era velhinho - avariara, ninguém o reclamou e ficou por ali. Mas era uma figuraça, património diocesano, um mito vivo. Baixote, redondo, anafado, bonacheirão, vermelhusco de cara e sorriso gaiato, batina coçada, sebenta, amiúde carregada de nódoas, isto é, o Padre Clementino tinha tudo para ser cónego, mas, que eu saiba, felizmente nunca lhe fizeram essa desfeita.
O Padre Clementino era muito cuidadoso com a fruta, sobretudo com as maçãs. Punha-as a madurar na beira da janela do quarto minúsculo que lhe fora distribuído e só as comia quando elas estivessem satisfatoriamente podres, cheias de bolor, para aproveitar a penicilina. Por estas e por outras, o Padre Clementino tinha uma saúde que até metia impressão.
Contava-se. Pela calada da noite ou durante o horário lectivo, o Padre Clementino andava de bicicleta pelas compridos e desérticos corredores do seminário. Apesar da ausência de tráfego, da via desafogada, apesar de ter os corredores só para ele, corredores largos, longas rectas sem sequer chicanas, a verdade é que às vezes o homem caía, sei lá se por falta de jeito ou apenas porque o raio da sotaina se lhe enrodilhava na corrente, não faço ideia. Caía e pronto. E pronto, não! Rectifico. Caía, levantava-se logo que conseguisse, não sei se estão a ver a tartaruga de pernas para o ar, verificava os estragos no material, que eram quase sempre nada, marcava o local do tombo com um grande sinal que ele já tinha preparado e que dizia "CURVA PERIGOSA!!!", nem mais nem menos, e saía dali novamente bicicletando. Com o Padre Clementino era mesmo assim, de categoria, tudo nos conformes. Fossem chamar tolo a outro...
(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!, a propósito do Dia Nacional dos Bens Culturais da Igreja. E o Padre Clementino era. Por outro lado, hoje é Dia Internacional da Maçã.)
O Padre Clementino era muito cuidadoso com a fruta, sobretudo com as maçãs. Punha-as a madurar na beira da janela do quarto minúsculo que lhe fora distribuído e só as comia quando elas estivessem satisfatoriamente podres, cheias de bolor, para aproveitar a penicilina. Por estas e por outras, o Padre Clementino tinha uma saúde que até metia impressão.
Contava-se. Pela calada da noite ou durante o horário lectivo, o Padre Clementino andava de bicicleta pelas compridos e desérticos corredores do seminário. Apesar da ausência de tráfego, da via desafogada, apesar de ter os corredores só para ele, corredores largos, longas rectas sem sequer chicanas, a verdade é que às vezes o homem caía, sei lá se por falta de jeito ou apenas porque o raio da sotaina se lhe enrodilhava na corrente, não faço ideia. Caía e pronto. E pronto, não! Rectifico. Caía, levantava-se logo que conseguisse, não sei se estão a ver a tartaruga de pernas para o ar, verificava os estragos no material, que eram quase sempre nada, marcava o local do tombo com um grande sinal que ele já tinha preparado e que dizia "CURVA PERIGOSA!!!", nem mais nem menos, e saía dali novamente bicicletando. Com o Padre Clementino era mesmo assim, de categoria, tudo nos conformes. Fossem chamar tolo a outro...
(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!, a propósito do Dia Nacional dos Bens Culturais da Igreja. E o Padre Clementino era. Por outro lado, hoje é Dia Internacional da Maçã.)
domingo, 20 de outubro de 2024
Em português diz-se bullying
Foto Hernâni Von Doellinger |
Hoje é Dia Mundial de Combate ao Bullying. Isso, ao bullying. Bullying quer dizer bullying, que é como se diz e escreve bullying em português, isto é, bullying. E há quem diga que tudo começou em Fafe. Por outro lado, o uso da palavra "Combate" neste contexto parece-me assim um bocadinho desajustado para a gramática wok de hoje em dia, mas isto sou eu, que sou um tolo - como diz a a minha mãe.
Os missionários
Hoje é Dia Mundial das Missões. E isso traz-me boas memórias. Os missionários fizeram muito parte do meu imaginário infanto-juvenil. Embora o meu seminário fosse rigorosamente diocesano, eu acompanhava-lhes as aventuras através da literatura especializada, nas revistas Além-Mar e Audácia, pelo menos. Os missionários eram também interessantes personagens de romance e artistas de cinema, heróis e mártires, que eu já conhecia desde Fafe, porque em Fafe sabia-se tudo. Isso, os missionários. Pedindo meia dúzia de palavras emprestadas a Emmanuel Carrère, os missionários, quando começaram e durante séculos, foram, por outro lado, umas criaturas que a Igreja mandou por esse mundo fora para baptizar os selvagens sem lhes pedir opinião.
P.S. - Dia Mundial das Missões.
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sábado, 19 de outubro de 2024
Cor de burro quando foge
Foto Hernâni Von Doellinger |
Os Porsche eram verdes, como o do João Ricardo Mendes Ribeiro. Os Volksporsche eram amarelos, como o do Armando "das Mobílias". E os Ferrari eram vermelhos, evidentemente vermelhos. Tudo ao natural, como Deus quis e criou, de Fafe para o mundo inteiro. Depois, não sei dizer quando, alguém de muito mau gosto trocou as tintas e lançou o caos. Agora vai por aí nas estradas uma babilónia de cores e carros que ninguém se entende, pelo menos eu.
Um largo, uma avenida e dois talhos
Não sei quantos talhos há actualmente em Fafe, mas devem ser muitos e certamente vendem de tudo, ovos, azeite, queijo, vinho, peixe congelado, feijão, ananás enlatado, bebidas frescas, raspadinhas e talvez carne. Os talhos são todos assim, hoje em dia, lojas de conveniência. Tempos modernos. Antigamente os talhos eram talhos, instituições de referência, barómetro e reflexo do nível de vida local, raros e valiosos como ourivesarias. O Talho tem lugar cativo, especial, nas minhas memórias fafenses cheias de antonomásias. O talho era o Talho, o largo era o Largo e a avenida era a Avenida, não havia que enganar, toda a gente sabia que aqueles nomes eram intransmissíveis e também geografia. O centro do mundo era ali.
O Talho. No Largo, à beira do Fernando da Sede e do Foto Jóia, o talho à moda antiga Talho Novo, que era o nosso talho e, para nós, como se fosse único, mas não, havia ali perto também o Talho Avenida, do Tininho, ou dos do Souto, como então se dizia, e nem tenho a certeza se este se chamava mesmo assim, Talho Avenida, mas era na Avenida, logo no princípio, quem saía do Largo em direcção à Estação, com o Monumento pelas costas, do lado e antes do Café Avenida e quase em frente ao Martins da Avenida, portanto, estão a ver, o mais certo é que também fosse da Avenida, e se calhar nem era. Mas adiante. Quando a minha mãe me mandava à fressura, "um quarto", eu tinha de escalar a parede de quatro metros e meio de altura do balcão para pendurar-me na borda e ser visto lá em cima. E é curioso: quase sessenta anos passados, ainda guardo bem vivas as caras daquela boa gente, que me atendia tão bem, como se eu fosse grande, como se eu fosse rico, como se eu fosse ao bife, respeitando com reserva e elegância a nossa pobreza. Caras a que, tenho pena, não sei agora dar nomes, com excepção do Senhor Abreu e, evidentemente, do Senhor Órfo, o Talho em pessoa, mas isso aqui já é outra história...
(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)
O Talho. No Largo, à beira do Fernando da Sede e do Foto Jóia, o talho à moda antiga Talho Novo, que era o nosso talho e, para nós, como se fosse único, mas não, havia ali perto também o Talho Avenida, do Tininho, ou dos do Souto, como então se dizia, e nem tenho a certeza se este se chamava mesmo assim, Talho Avenida, mas era na Avenida, logo no princípio, quem saía do Largo em direcção à Estação, com o Monumento pelas costas, do lado e antes do Café Avenida e quase em frente ao Martins da Avenida, portanto, estão a ver, o mais certo é que também fosse da Avenida, e se calhar nem era. Mas adiante. Quando a minha mãe me mandava à fressura, "um quarto", eu tinha de escalar a parede de quatro metros e meio de altura do balcão para pendurar-me na borda e ser visto lá em cima. E é curioso: quase sessenta anos passados, ainda guardo bem vivas as caras daquela boa gente, que me atendia tão bem, como se eu fosse grande, como se eu fosse rico, como se eu fosse ao bife, respeitando com reserva e elegância a nossa pobreza. Caras a que, tenho pena, não sei agora dar nomes, com excepção do Senhor Abreu e, evidentemente, do Senhor Órfo, o Talho em pessoa, mas isso aqui já é outra história...
sexta-feira, 18 de outubro de 2024
Igreja nova, pecados velhos
Foto Hernâni Von Doellinger |
P.S. - Hoje é Dia Nacional dos Bens Culturais da Igreja.
Podiam ser de Fafe, os Dalton
Houve também o bando dos Dalton a sério (à séria, se lido em Lisboa). Eram especialistas em bancos e comboios, actuaram com assinalável sucesso no Velho Oeste americano entre 1890 e 1892 e chamavam-se Tim Evans, Bob Dalton, Grat Dalton e Dick Broadwell. Foram abatidos pela polícia durante o assalto a uma dependência bancária em Coffeyville, Kansas, e tiveram todos um lindo enterro.
Há ainda a registar Dalton Trumbo, tão excelente quanto controverso romancista e argumentista norte-americano, Timothy Dalton, aquele actor galês e fraquinho que fez por engano dois 007, o Dalton Ico e o Dalton Trevisan, famoso escritor brasileiro entendido em vampiros e ganhador dos prémios Camões e Machado de Assis, entre outros. O mais destacado membro da família terá sido, no entanto, o cientista inglês John Dalton (1766-1844), químico, meteorologista e físico, um dos primeiros a defender que a matéria é feita de pequenos nadas, os átomos, e inventor da "lei das proporções múltiplas", melhor chamada Lei de Dalton evidentemente para não se confundir com a Lei de Ohm.
P.S. Hoje é Dia Nacional da Banda Desenhada Portuguesa.
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quinta-feira, 17 de outubro de 2024
A vida aprende-se de ouvido
Por falar em lengalengas. "Doze, rebaldoze, vinte e quatro com catorze, dezasseis mais vinte e um - faz um cento menos um."
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quarta-feira, 16 de outubro de 2024
O pãozinho do Senhor
Foto Hernâni Von Doellinger |
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas influências foram tão longe que chegaram à bucólica freguesia de Passos, Cabeceiras de Basto, propriamente à casa da minha querida avó materna. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os moços ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção!, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. (E já lá iremos, ao monte.)
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.
(O meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...)
Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo purifica, que não se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente com fome, pessoas mais pobres do que nós. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.
Agora vou contar o seguinte: fui muitas vezes à merda. E gostava. A Bó mandava-me com uma telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para calafetar o forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e às vezes ir à fonte buscar água, coisa de menina, só para se rirem de mim.
(Para a aldeia ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos. Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali acabava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe. Dali já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia, como nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.)
A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquele tempo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. E sempre broa, sem outros mimos. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se, a acompanhar, umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois deslubrificados. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".
Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?...
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os moços ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção!, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. (E já lá iremos, ao monte.)
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.
(O meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...)
Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo purifica, que não se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente com fome, pessoas mais pobres do que nós. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.
Agora vou contar o seguinte: fui muitas vezes à merda. E gostava. A Bó mandava-me com uma telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para calafetar o forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e às vezes ir à fonte buscar água, coisa de menina, só para se rirem de mim.
(Para a aldeia ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos. Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali acabava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe. Dali já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia, como nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.)
A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquele tempo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. E sempre broa, sem outros mimos. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se, a acompanhar, umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois deslubrificados. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".
Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?...
P.S. - Hoje é Dia Mundial do Pão. E Dia Mundial da Alimentação.
Cibo, cibito, cibinho, cibico
Cibo é comida, alimento, especialmente das aves, aqueles bocadinhos que os pássaros dão às suas crias de biquinhos famintos e abertos. Isso. Cibo é pequena porção. Pequena porção de comida ou de qualquer outra coisa, mas sobretudo de comida, como era uso dizer no falar antigo de Fafe e Basto e certamente de todo o Norte ao redor, de uma maneira geral. Mas atenção: cibo não era um vocábulo arrevesado e anacrónico, jurássico, pelo contrário, era palavra corriqueira do dia-a-dia, metida a cotio por necessidade. Era a medida da vida. Cibo é menos que pedaço, é menos que naco, é, dito de outra forma, um nico. Cibo era pobreza.
Pedia-se, oferecia-se, dava-se, partilhava-se, comia-se um cibo de pão, um cibo de carne, bebia-se uma pinga de vinho. Galegos do sul que somos, adoçávamos a penúria, enchíamo-la de mimos, dizíamos cibito, cibinho, cibico, com mil carinhos, como quem faz festas aos seus e diz pequenito, pequenino, pequeninho, pequerricho, de coração cheio e mãos abertas, talvez enganando mansamente a fome, como se afinal lhe quiséssemos bem.
P.S. - Hoje é Dia Mundial do Pão. E Dia Mundial da Alimentação.
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vinho
Eu trigo-me, tu trigas-te, ele triga-se
Foto Hernâni Von Doellinger |
P.S. - Hoje é Dia Mundial do Pão. E Dia Mundial da Alimentação.
terça-feira, 15 de outubro de 2024
Bolsas de estudo e de mérito
Foto Município de Fafe |
O Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo e de Mérito (RABEM) tem por objetivo autonomizar a regulamentação das bolsas de estudo, criando novos procedimentos e possibilitando premiar o mérito.
São apresentadas duas tipologias de bolsa de estudo: (1) as bolsas de estudo e as (2) as bolsas de mérito.
As bolsas de estudo correspondem a um valor complementar da bolsa atribuída pela DGES."
P.S. - Texto da autoria do Município de Fafe. Mais informações, aqui.
Hugo Viana, o gentleman
Estou extremamente vaidoso com este acontecimento de uma pessoa que me conhece ir para director desportivo do importante clube de futebol Manchester City, de Inglaterra. Note-se, eu não conheço o Sr. Hugo Viana de lado nenhum, senão como figura pública, mas ele diz que me conhece. Ou pelo menos disse que me conhecia lá pelos primeiros anos deste século, estando ele como jovem jogador do Sporting e eu como velho jornalista do jornal 24horas, no Porto. O rapaz tinha uma questão familiar qualquer, que eu não quero trazer agora aqui ao caso, e o meu jornal mandou-me explorar a coisa. Do meu ponto de vista, o assunto era irrelevante e sobretudo particular, íntimo, tipo ninguém tem nada com isso, mas as minhas chefias, de Lisboa, invocaram o sagrado "interesse público e jornalístico" para me encostar à parede.
Fiz alguns contactos exploratórios, falei com duas ou três pessoas mais ou menos envolvidas ou sabedoras, e de repente recebi uma chamada do próprio Hugo Viana, que tinha e tem idade para ser meu filho, e atirou-se assim: - Ouve lá, estás avisado! Eu conheço-te, pá, sei onde trabalhas e os teus horários, sei onde moras e onde comes. Se escreves alguma coisa sobre mim, estás lixado comigo, faço-te a folha, pá!...
Eu, se querem saber, ri-me. Aquilo era tão infantil, tão coisa de miúdo, que não só não levei a sério como nem sequer levei a mal. A verdade é que, naquela altura, nem eu sabia os meus horários e amiúde não acertava com a porta de casa. Trabalhava pelo menos treze ou catorze horas por dia, sem hora de entrar ou de sair, muitas vezes na rua, e comer era só depois do serviço arrumado e onde calhasse...
Em todo o caso, não cheguei a escrever o artigo, que, repito, realmente não interessava nem ao Menino Jesus, era essa definitivamente a minha opinião, e ainda é. Mas não foi por causa do telefonema pândego e das ameaças de Hugo Viana que a "notícia" não saiu. Não. Acontece que, por aquela maré, as camisolas do Sporting (e do Benfica e do FC Porto) eram patrocinadas pela PT - Portugal Telecom, que por acaso era também a dona do grupo de comunicação que detinha, entre outros títulos, o jornal 24horas. Quer-se dizer: era como se eu e o Hugo Viana, deixem-me exagerar um bocadinho, tivéssemos o mesmo patrão. O Sporting mexeu-se. O imbróglio foi tratado ao nível das mais altas esferas, disseram-me, os meus ilustres chefes, sempre sábios e cheios de razão, mandaram imediatamente às malvas o inefável "interesse público e jornalístico" e recebi ordens expressas para abortar um trabalho que, em bom rigor, nem sequer tinha começado. O jornalismo, quer queiram quer não, meus amigos, era e ainda é, se o houvesse, uma coisa muito bonita.
Resumindo e concluindo: se precisarem de alguma coisa do Sr. Hugo Viana, agora que ele é gentleman por geografia e está no topo do mundo, digam, que eu trato disso. Ele conhece-me.
Fiz alguns contactos exploratórios, falei com duas ou três pessoas mais ou menos envolvidas ou sabedoras, e de repente recebi uma chamada do próprio Hugo Viana, que tinha e tem idade para ser meu filho, e atirou-se assim: - Ouve lá, estás avisado! Eu conheço-te, pá, sei onde trabalhas e os teus horários, sei onde moras e onde comes. Se escreves alguma coisa sobre mim, estás lixado comigo, faço-te a folha, pá!...
Eu, se querem saber, ri-me. Aquilo era tão infantil, tão coisa de miúdo, que não só não levei a sério como nem sequer levei a mal. A verdade é que, naquela altura, nem eu sabia os meus horários e amiúde não acertava com a porta de casa. Trabalhava pelo menos treze ou catorze horas por dia, sem hora de entrar ou de sair, muitas vezes na rua, e comer era só depois do serviço arrumado e onde calhasse...
Em todo o caso, não cheguei a escrever o artigo, que, repito, realmente não interessava nem ao Menino Jesus, era essa definitivamente a minha opinião, e ainda é. Mas não foi por causa do telefonema pândego e das ameaças de Hugo Viana que a "notícia" não saiu. Não. Acontece que, por aquela maré, as camisolas do Sporting (e do Benfica e do FC Porto) eram patrocinadas pela PT - Portugal Telecom, que por acaso era também a dona do grupo de comunicação que detinha, entre outros títulos, o jornal 24horas. Quer-se dizer: era como se eu e o Hugo Viana, deixem-me exagerar um bocadinho, tivéssemos o mesmo patrão. O Sporting mexeu-se. O imbróglio foi tratado ao nível das mais altas esferas, disseram-me, os meus ilustres chefes, sempre sábios e cheios de razão, mandaram imediatamente às malvas o inefável "interesse público e jornalístico" e recebi ordens expressas para abortar um trabalho que, em bom rigor, nem sequer tinha começado. O jornalismo, quer queiram quer não, meus amigos, era e ainda é, se o houvesse, uma coisa muito bonita.
Resumindo e concluindo: se precisarem de alguma coisa do Sr. Hugo Viana, agora que ele é gentleman por geografia e está no topo do mundo, digam, que eu trato disso. Ele conhece-me.
(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)
segunda-feira, 14 de outubro de 2024
Afinal havia outras
Foto Município de Fafe |
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O pintor que pintou Ana
"O pintor que pintou Ana
também pintou Leanor,
pintou a cara da mãe
com tinta da mesma cor."
Há outras versões da velha lengalenga, adaptações e até desenvolvimentos, mas foi assim simples que a aprendi do meu avô da Bomba. E lembrei-me dela e dele hoje outra vez, mesmo à bocadinho, no passeio à beira-mar...
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domingo, 13 de outubro de 2024
A feira de Fafe era três
A feira de Fafe era três. Um três-em-uma, três feiras numa só, pague uma e leve três. A feira de Fafe era um pacote, uma pechincha. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Tínhamos a Feira propriamente dita, no terreiro do Largo, actual Praça 25 de Abril. Tínhamos a Feira das Galinhas, na hoje chamada Praceta Egas Moniz. E tínhamos a Feira do Gado, na Feira Velha, agora dita Praça Mártires do Fascismo. As três eram apenas uma, coincidiam no mesmo dia, quarta-feira, como ainda hoje, a dispersão geográfica não passava de um pormenor, mas de vanguarda. Se fosse hoje, dir-se-ia que era uma feira em três pólos. Ricos tempos! Tínhamos muito, tínhamos tudo, uma fartura. De feira estávamos nós bem servidos, faltava-nos era dinheiro...
Em bom rigor, a feira começava antes da feira, logo por Cima da Arcada, numa espécie de antecâmara dedicada às artes performativas e da propaganda, espaço semanalmente ocupado pelo vendedor de banha da cobra, pelos milagres e mezinhas da santa Alexandrina de Balasar, pelas pacientes Testemunhas de Jeová e, ocasionalmente, pelo Rei das Limas, que, no entanto, era praticamente da casa, como já aqui contei. E havia também um sítio especial para o pão, diversos tipos de pão regional, doméstico, de Fafe e das redondezas até Amarante, especialidades vendidas por duas ou três senhoras e por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza.
Em bom rigor, a feira começava antes da feira, logo por Cima da Arcada, numa espécie de antecâmara dedicada às artes performativas e da propaganda, espaço semanalmente ocupado pelo vendedor de banha da cobra, pelos milagres e mezinhas da santa Alexandrina de Balasar, pelas pacientes Testemunhas de Jeová e, ocasionalmente, pelo Rei das Limas, que, no entanto, era praticamente da casa, como já aqui contei. E havia também um sítio especial para o pão, diversos tipos de pão regional, doméstico, de Fafe e das redondezas até Amarante, especialidades vendidas por duas ou três senhoras e por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza.
Descidas as escadas, no Largo, os ourives instalavam-se debaixo dos arcos da Arcada ou logo em frente, hoje sítio de esplanadas e medíocres programas de televisão de aluguer. Parecia que o ouro do mundo inteiro se juntava ali, em cima de bancas de madeira forradas a flanela negra, as nossas ourivesarias Martins e Pérola também montavam estendal, e eu ficava a imaginar aqueles ourives todos com os bolsos dos casacos cheios de pistolas e espingardas caçadeiras, e sobretudo com uns tomates muito grandes dentro das calças, porque de outro modo não podia ser. Eles andavam assim carregados de terra em terra, quer-se dizer, sem seguranças, sem carrinhas blindadas, sem telemóveis, sem ligação directa à polícia, sem satélites, sem drones, nada, só o patrão e talvez um empregado de preferência solteiro e eventualmente borrado de medo, os dois enfiados na velha carripana e a rezar o terço. Isto é, estavam mesmo a pedi-las...
No terreiro da feira era o costume. Hortaliças, legumes, verduras, frutas, talvez secção de louça e panelas. E muito povo. A feira instituíra-se local de encontro semanal, mais do que a missa de domingo, e aqui, zona de cozinha e mesa, eram sobretudo mulheres. Outra vez descendo, para a Feira Velha, aí eram principalmente homens, lavradores em maioria, com as carteiras a abarrotar de notas de conto. À roda da escola fascista cujas pedras deram, por milagre, em capela, vendia-se e comprava-se gado. Bois, vacas, bezerros. E alfaias agrícolas, e jugos e sogas, e pipas e dornas, e latoaria, e fatos e samarras e capotes e croças e chapéus e bonés e sapatos e botas e galochas e chancas e socos. E nos tascos das redondezas, isto é, na vila inteira, apanhavam-se pielas de caixão à cova. Lá dentro, na escola, era um cheiro a bosta que se não podia, mas o regime realmente também não se recomendava...
Gado de mais pequeno porte, digamos, frangos, galos, galinhas, garnisés, pintainhos e coelhos das mais variadas origens e díspares feitios, isso era mais cá para cima, na Feira das Galinhas, larguinho de terra virado para a Igreja Nova e onde se mercavam também ovos, farinhas, feijão e milho, saquinhos de sementes, tudo colocado no chão estreme, em carreirinhas ordenadas, honestas, sem truques para enganar o freguês. Fazia-se comércio directo. Havia quem levasse à feira galinhas de patas atadas, debaixo do braço forte ou enfiadas em cestas de vime com a crista de fora, e trouxesse para casa meia dúzia de sacos de feijão e grão, sacos de pano, sossegados no açafate muito bem tenteado na cabeça com rodilha.
Lembro-me agora: chegou a haver um mercado de sábado, mas só pelas manhãs, parece-me, no nosso Santo Velho, outro terreiro. Era uma feirinha.
Há muito despejada do Largo, a feira de Fafe andou entretanto com a tenda às costas, deu as suas voltas, até assentar arraiais na hoje chamada Praça das Comunidades, feita de propósito para a função. E ali está de armas e bagagens, creio que bem instalada e para ficar. Mas é só uma...
P.S. - Publicado aqui originalmente no dia 4 de Outubro de 2023. Faz hoje 69 anos que morreu a beata Alexandrina de Balasar.
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sábado, 12 de outubro de 2024
Meninos, à mesa!
Quando a corneta, ou olifante, tocou para o tacho, eram mais de três mil cavaleiros, de faca e garfo em punho como se fossem para uma justa, mas sentados e com um apetite escancarado e lavajão, posto que estávamos na Idade Média, e higiene e boas maneiras não eram com eles naquele tempo. Manifestamente atónito e arreliado assim assim, o rei Artur fez contas à vida, pelos dedos, apaziguou a algazarra da turba colorida e apenachada com meia dúzia de flechas cirurgicamente colocadas e obviamente fatais, invocou o regimento e colocou um ponto de ordem à mesa. O seguinte: "Embora nunca tenhamos realmente existido, está historicamente provado que vocês não podem ser mais de doze, talvez 24, ou, para não me chamarem unhas de fome, temos sala para 150, fora as crianças, que pagam metade. Agora, famílias inteiras, 3.145 adultos e gordos, menos os seis que eu vindimei, já é uma escandalosa moinice. De onde é que me apareceu esta gente toda, que ainda por cima não traz o Magriço, que até nem dá despesa nenhuma, como o próprio nome indica? Por São Jorge, isto é a Távola Redonda, não é a gamela do Orçamento"...
Moral da história: Por isso é que o Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe é comido em mesas geralmente rectangulares. Para evitar confusões.
Moral da história: Por isso é que o Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe é comido em mesas geralmente rectangulares. Para evitar confusões.
P.S. - O escritor britânico Roger Lancelyn Gren, autor de "Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda" e "Robin dos Bosques", morreu em Outubro de 1987, há quem diga que no dia 12 como hoje, aos 68 anos.
E assim começou a guerra
Há fafenses que se me têm manifestado surpreendidos, agradavelmente surpreendidos, com as revelações aqui desencadeadas sobre a importância de Fafe nos interstícios da História de Portugal e até no arranjo geoestratégico da Europa no seu todo. Não sabiam, não faziam a mínima ideia. A verdade nua e crua sobre o nascimento da nação e a propósito da muito mal contada Batalha de São Mamede deixou-os de boca aberta. E a relação provada da nossa terra com o desfecho da Guerra dos Cem anos e, por maioria de razão, com a realização da Batalha de Castillon aqui mesmo nas nossas barbas ainda a escancarou mais e deve ter doído como o caraças. Dois desses desconcertados conterrâneos tiveram de ir de urgência para o Hospital de Guimarães, onde lhes fecharam a matraca à marretada.
Por outro lado, aproveito para esclarecer também o seguinte. A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas bancários, e assim começaram os arredondamentos.
Que se segue. Um destes dois ex-boquiabertos paisanos, amigo de longa data e inabalável fafense até às unhas dos pés, ficou melhorzinho graças a Deus e digamos que entusiasmado com a nova maneira de ver o protagonismo da nossa terra, contra isso nada, e contactou-me curiosíssimo de saber por mim como é que realmente começou a Guerra dos Cem Anos. Ora bem: isto aqui não são os discos pedidos, mas cá vai, uma vez sem exemplo. Por acaso não foi em Fafe, mas passou-se assim:
Era um encontro previsto para ser aprazivelmente diplomático e discutido à melhor de três sets: quando Mister Cheddar, pela Inglaterra, e Monsieur Camembert, pela França, reuniram em Sherwood, sob os auspícios do Robin dos Bosques e a bênção de Frei Tuck, tendo sobre a mesa, já naquele tempo, a delicada questão das quotas leiteiras. Estava tudo a correr bem, estava-se até bastante agradável, entre uísques e champanhes perfeitamente bebidos, mas era um cheiro a chulé que não se podia. Foi então que o inglês, já com um grãozinho na asa e uma mola de roupa no nariz, não aguentou mais e questionou o francês, com a ajuda do José Milhazes, que fazia as traduções: - Porque é que o caro amigo (old chap, no original) não vai mas é lavar os pés no Sena?
E foi assim que começou a Guerra dos Cem Anos. Até hoje.
E foi assim que começou a Guerra dos Cem Anos. Até hoje.
P.S. - Parcialmente publicado no dia 31 de Dezembro de 2022. O escritor britânico Roger Lancelyn Gren, autor de "Robin dos Bosques" e "Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda", morreu em Outubro de 1987, há quem diga que no dia 12 como hoje, aos 68 anos.
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sexta-feira, 11 de outubro de 2024
Ovos de galo, havia-os no Peixoto
A ciência ainda não encontrou uma resposta plausível e, pelo menos, isenta de misoginia: porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha?
A esse respeito, hoje é Dia Mundial do Ovo. O Peixoto, em Fafe, o grande Peixoto, para além de confeccionar as melhores moelas de coelho do mundo, tinha às vezes uns ovos de galo, cozidos e nada mais, que também eram uma especialidade. Na semana da Páscoa, derivado à tradição, os ovos eram evidentemente de coelha. Entretanto o Peixoto passou o negócio, adeus ovos, adeus moelas, e acabou-se o que era bom. É assim. Fafe vai-se perdendo...
P.S. - Hoje é Dia Mundial do Ovo.
A esse respeito, hoje é Dia Mundial do Ovo. O Peixoto, em Fafe, o grande Peixoto, para além de confeccionar as melhores moelas de coelho do mundo, tinha às vezes uns ovos de galo, cozidos e nada mais, que também eram uma especialidade. Na semana da Páscoa, derivado à tradição, os ovos eram evidentemente de coelha. Entretanto o Peixoto passou o negócio, adeus ovos, adeus moelas, e acabou-se o que era bom. É assim. Fafe vai-se perdendo...
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quinta-feira, 10 de outubro de 2024
Câmara de Fafe continua a ganhar
Foto Município de Fafe |
P.S. - A quem possa interessar, recomendo, a este respeito, a leitura ou releitura de "Jardins era um coisa que existia antigamente", "Urbanismo e estupidez natural" e "Traz uma árvore também".
Um bocado palerma
Os óculos são como as luvas, as calças, as meias, as botas, os patins, as jarras, os estalos, os cornos e outras coisas boas da vida - vêm aos pares. Ocorreu-me este acutilante pensamento porque precisei de mudar de óculos. E então: "Estes óculos fazem-me um bocado palerma", disse eu à menina da loja, mirando-me no espelho enganador. "Não diga um coisa dessas, por acaso até lhe ficam muito bem", disse-me a menina da loja, cumprindo a sua obrigação. "Exactamente, é isso que eu quero dizer: estes óculos favorecem-me. Normalmente sou palerma completo", esclareci.
P.S. - Hoje é Dia Mundial da Visão. E também da Sábado, que agora sai às quintas.
P.S. - Hoje é Dia Mundial da Visão. E também da Sábado, que agora sai às quintas.
quarta-feira, 9 de outubro de 2024
Um talho no Largo e outro na Avenida
Uma vez não são vezes: debrucemo-nos então sobre a problemática do redenho. O redenho, que - há que admiti-lo sem tibiezas - não é ingrediente indispensável na confecção de uns rojões honestos e com outros matadores, mas no entanto, se marcar presença, confere ao prato um não sei quê que por acaso sei e que tem a ver com o seu aspecto inusitado, com o sabor rústico mas colaborante (dando-se-lhe as voltas certas) e sobretudo com o crocante da textura.
Que se segue, precisei de fazer uns rojõezinhos para uma gente que andava aí com desejos e fui ao talho. Escolhi a carne, da febra e da barriga, o sangue e as tripas enfarinhadas. Quando pedi o fígado de porco, que na verdade até era para ajeitar uma entrada de iscas de cebolada, o talhante, sem que eu dissesse mais nada, avisa-me "Olhe que não temos redenho". E depois, olhando para um lado e para o outro, chegando-se à frente do balcão à procura do meu ouvido e da minha cumplicidade para revelar-me o quarto segredo de Fátima, diz-me, num sussurro: "Quer-se dizer, haver há, mas é congelado". E, congelado, realmente "Não é a mesma coisa", concordámos eu e ele em coro, como se estivéssemos ensaiados.
Repito: o redenho não é indispensável aos rijões, sim, rijões, como se diz, e bem, na minha terra. Mas a gentileza e a honestidade sim. Sobretudo nestes tempos de desrespeito pelos valores e de aviltamento das pessoas, tempos portugueses de antagonismos sociais, de pobreza imposta, de novos fascismos e de tristeza e azedume generalizados. Soube do redenho e senti a Terra tremer debaixo dos meus pés. Algo mexeu com o equilíbrio estabelecido do Globo. Continuo a acreditar que anda meio mundo a enganar o outro meio, mas naquele momento, à frente dos meus olhos, um homem passou para o lado bom, que eu bem vi.
As coisas não são tão simples assim, é o que estão a pensar? São, são. E Dalila...
Isto à conclusão de quê? Hoje é Dia do Açougueiro. No Brasil, evidentemente. Em Portugal creio que, se tal houvera, ainda se diria, se nos deixarem, Dia do Talhante ou Dia do Magarefe ou, vá lá, Dia do Marchante. O Talho tem lugar cativo, especial, nas minhas memórias fafenses. O Talho Novo, que era, para nós, como se fosse único, mas não, havia ali perto também o Talho Avenida, do Tininho, ou dos do Souto, como então se dizia, e nem tenho a certeza se se chamava mesmo assim, Talho Avenida, mas era na Avenida, logo no princípio, quem saía do Largo em direcção à Estação, do lado e antes do Café Avenida e quase em frente ao Martins da Avenida, portanto, estão a ver, o mais certo é que também fosse da Avenida. Mas adiante. Quando a minha mãe me mandava à fressura, "um quarto", eu tinha de pendurar-me no balcão para ser visto lá em cima. E é curioso: mais de cinquenta anos passados, ainda guardo bem vivas as caras daquela boa gente, que me atendia tão bem, como se eu fosse grande, respeitando com reserva e elegância a nossa pobreza. Caras a que, tenho pena, não sei agora dar nomes, com excepção do Senhor Abreu e, evidentemente, do Senhor Órfo, o Talho em pessoa, mas isso já é outra história...
Que se segue, precisei de fazer uns rojõezinhos para uma gente que andava aí com desejos e fui ao talho. Escolhi a carne, da febra e da barriga, o sangue e as tripas enfarinhadas. Quando pedi o fígado de porco, que na verdade até era para ajeitar uma entrada de iscas de cebolada, o talhante, sem que eu dissesse mais nada, avisa-me "Olhe que não temos redenho". E depois, olhando para um lado e para o outro, chegando-se à frente do balcão à procura do meu ouvido e da minha cumplicidade para revelar-me o quarto segredo de Fátima, diz-me, num sussurro: "Quer-se dizer, haver há, mas é congelado". E, congelado, realmente "Não é a mesma coisa", concordámos eu e ele em coro, como se estivéssemos ensaiados.
Repito: o redenho não é indispensável aos rijões, sim, rijões, como se diz, e bem, na minha terra. Mas a gentileza e a honestidade sim. Sobretudo nestes tempos de desrespeito pelos valores e de aviltamento das pessoas, tempos portugueses de antagonismos sociais, de pobreza imposta, de novos fascismos e de tristeza e azedume generalizados. Soube do redenho e senti a Terra tremer debaixo dos meus pés. Algo mexeu com o equilíbrio estabelecido do Globo. Continuo a acreditar que anda meio mundo a enganar o outro meio, mas naquele momento, à frente dos meus olhos, um homem passou para o lado bom, que eu bem vi.
As coisas não são tão simples assim, é o que estão a pensar? São, são. E Dalila...
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terça-feira, 8 de outubro de 2024
Entre ougar e desougar, salve-se a pirângula!
Em terra de pobres, a norma era desougar. Não havia fartura, faltava até o mero suficiente, abundavam evidentemente as crianças, e então dava-se-lhes apenas a provar, e por uma boa razão, essencial, para manter os futuros homens inteiros e artilheiros, como adiante se verá. Ougava-se muito, antigamente, sobremaneira cá em cima, no velho Douro, em Trás-os-Montes, no nosso Minho, em Fafe especialmente, lembro-me bem, noutros sítios do Portugal triste e escanzelado dir-se-ia decerto doutra maneira também pândega mas a querer dizer sempre o mesmo: pobreza. Fome, quando não.
Ougar, de augar, de aguar. Ougar, isto é, salivar ao olhar para comida ou bebida de outrem, ficar com água na boca, sentir grande desejo de. Ougar era muito perigoso naquele tempo, porque, dizia o povo, que sabia tudo, quem ficasse ougado, quer-se dizer, desconsolado, contrariado, carente, invejoso, em situação de grande desprazer ou de pasmaceiro apetite ao ver, caía-lhe redondamente a pirângula, isso mesmo, a pirângula, não sei se os acessórios também, e a ideia de um futuro homem sem pirângula e quiçá também sem acessórios, hoje em dia a coisa mais natural do mundo, não era ideia que se tivesse naquela altura sem o incómodo de um penetrante arrepio pela espinha acima.
Por isso, entre os pobres, era muito importante atalhar a coisa, desougar - o gado, com um pequena porção de penso, mas não é isso que vem aqui ao assunto, e fundamentalmente as crianças, coitadinhas, mais que as mães, ruins de aturar, com mais olhos do que barriga, borradas, chorosas, moncosas e cobiçosas de tudo o que viam ou pressentiam à frente dos outros. Desougar era dar um bocadinho. Desougar era uma urgência. Desougava-se para impedir o ougamento, para poupar um par de estalos (geralmente não, acumulava), para acabar de vez com a lamúria e, em todo o caso, para preservar a integridade pelo menos física do pedinchoso. À mesa, mandava, solene, quem era de lei: - Caralho, mulher, desouga o moço, dá-lhe um cibo antes que lhe caia a pirângula!...
Ougar, de augar, de aguar. Ougar, isto é, salivar ao olhar para comida ou bebida de outrem, ficar com água na boca, sentir grande desejo de. Ougar era muito perigoso naquele tempo, porque, dizia o povo, que sabia tudo, quem ficasse ougado, quer-se dizer, desconsolado, contrariado, carente, invejoso, em situação de grande desprazer ou de pasmaceiro apetite ao ver, caía-lhe redondamente a pirângula, isso mesmo, a pirângula, não sei se os acessórios também, e a ideia de um futuro homem sem pirângula e quiçá também sem acessórios, hoje em dia a coisa mais natural do mundo, não era ideia que se tivesse naquela altura sem o incómodo de um penetrante arrepio pela espinha acima.
Por isso, entre os pobres, era muito importante atalhar a coisa, desougar - o gado, com um pequena porção de penso, mas não é isso que vem aqui ao assunto, e fundamentalmente as crianças, coitadinhas, mais que as mães, ruins de aturar, com mais olhos do que barriga, borradas, chorosas, moncosas e cobiçosas de tudo o que viam ou pressentiam à frente dos outros. Desougar era dar um bocadinho. Desougar era uma urgência. Desougava-se para impedir o ougamento, para poupar um par de estalos (geralmente não, acumulava), para acabar de vez com a lamúria e, em todo o caso, para preservar a integridade pelo menos física do pedinchoso. À mesa, mandava, solene, quem era de lei: - Caralho, mulher, desouga o moço, dá-lhe um cibo antes que lhe caia a pirângula!...
(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)
segunda-feira, 7 de outubro de 2024
Fafe era o fim do mundo
Foto Município de Fafe |
De Fafe, ia-se para a guerra de comboio. A Fafe, chegava-se da França de comboio. Fafe e o comboio eram unha com carne. A Estação, assim com maiúscula, era a nossa praça de despedidas e reencontros, o nosso vale de lágrimas.
Passou-se. Depois, sem mais nem menos, os fafenses foram todos para os carros a duzentos à hora, pelo menos três carros em cada família, e a automotora começou a madrugar só para mim, para me trazer ao namoro no Porto e tornar-me a casa à noite, eu sozinho como passageiro, às vezes no Inverno lá à frente na cabina, gentilmente convidado, junto com o maquinista e o revisor, para aproveitar o aquecimento. Fafe desistiu do comboio, mas em grande estilo, coupé, mandou-o dar uma curva e queixou-se muito quando lho "tiraram". Hoje em dia faz-lhe festas.
E que se segue? Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde, espraiando-se pelos quintais e campos de Sá. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo - muito à frente em termos de género, sexo e similares.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso com abraços de carne o osso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E depois levamos com pandemias a fazerem-nos ilhas, parece que estamos definitivamente condenados, proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.
(Apontamento publicado originalmente no dia 23 de Dezembro de 2013, no meu blogue Tarrenego!, e depois aqui, onde diz mais respeito. E creio que vem a propósito repeti-lo.)
E que se segue? Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde, espraiando-se pelos quintais e campos de Sá. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo - muito à frente em termos de género, sexo e similares.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso com abraços de carne o osso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E depois levamos com pandemias a fazerem-nos ilhas, parece que estamos definitivamente condenados, proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.
domingo, 6 de outubro de 2024
O algodão não engana
Foto retirada do blogue Restos de Colecção |
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Pela miséria que me tem saído na rifa nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que, uma vez que desdenho a Raspadinha, o que me convinha mesmo era o Euromilhões. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Agora vou dormir e passo à escuta.
Por falar nisso: sonhar com algodão dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. É preciso ser-se mesmo muito desgraçado para sonhar com algodão. Se ainda fosse com merda... e depois pisá-la. Pisar merda, isso é que é certo, diz que dá sorte, dinheiro.
A memória é tramada. Amanhã é Dia Mundial do Algodão. E também é Dia Mundial do Trabalho Digno. O algodão, esse símbolo branco da escravatura negra, passava quase todos os dias por mim, em fardos, em camiões, a caminho da Fábrica do Ferro, Companhia de Fiação e Tecidos de Fafe, onde depois havia milhares de operários a trabalhar, entre os quais o meu pai e a minha irmã, e variados chefes a roubar, deu no que deu. Ia daqui de Matosinhos, o algodão, do Porto de Leixões, agora mesmo à beirinha de onde moro com vista para o mar se me puser de lado. Quer-se dizer: por mais voltas que a vida dê, estamos sempre no mesmo.
sábado, 5 de outubro de 2024
O Secónego
Foto Hernâni Von Doellinger |
O Secónego tinha uma maneira de falar muito cómica. Falava como quem não abre a boca, às vezes com a mão à frente, com medo talvez de que se lhe evadisse a placa. Chamava-nos a todos "Ó menino!", embora já fôssemos uns respeitáveis gandulos, e ria-se satisfatoriamente.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E ele merecia.
Depois levaram-no.
O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus, a cota baixa. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê"...
(Quando acompanhava o seu próprio corpo, o que era cada vez mais raro, o Secónego sabia mesmo muito sobre os antigamentes de Fafe, e eu regalava-me a ouvi-lo. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha (1906-1976), autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição, tendo participado como colaborador regular na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira e na Enciclopédia Verbo. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga. E já agora: o parágrafo anterior deve ser lido em voz alta, como quem conta uma história, sobretudo o discurso directo da última frase. Fica melhor.)
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E ele merecia.
Depois levaram-no.
O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus, a cota baixa. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê"...
(Quando acompanhava o seu próprio corpo, o que era cada vez mais raro, o Secónego sabia mesmo muito sobre os antigamentes de Fafe, e eu regalava-me a ouvi-lo. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha (1906-1976), autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição, tendo participado como colaborador regular na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira e na Enciclopédia Verbo. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga. E já agora: o parágrafo anterior deve ser lido em voz alta, como quem conta uma história, sobretudo o discurso directo da última frase. Fica melhor.)
Aqui chegados, como diria o nosso Luisinho Marques Mendes, que também é um latinista, devo informar que no seminário tive os melhores professores do mundo.
P.S. - Hoje é Dia Mundial do Professor.
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