quarta-feira, 16 de outubro de 2024

O pãozinho do Senhor

Foto Hernâni Von Doellinger
Vi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com gastronomia, vi que na Turquia, esse lamentável lapso da União Europeia, há um respeito muito grande pelo pão. Um respeito tão grande que bocado que cai ao chão não vai para o lixo. É apanhado, guardado e comido na refeição seguinte. Não sei se é bem assim, mas assim me foi contado há anos, e eu gostei do que ouvi, falou-me à memória.
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas influências foram tão longe que chegaram à bucólica freguesia de Passos, Cabeceiras de Basto, propriamente à casa da minha querida avó materna. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os moços ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção!, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. (E já lá iremos, ao monte.)
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.
(O meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...)
Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo purifica, que não se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente com fome, pessoas mais pobres do que nós. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.

Agora vou contar o seguinte: fui muitas vezes à merda. E gostava. A Bó mandava-me com uma telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para calafetar o forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e às vezes ir à fonte buscar água, coisa de menina, só para se rirem de mim.
(Para a aldeia ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos. Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali acabava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe. Dali já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia, como nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.)
A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquele tempo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. E sempre broa, sem outros mimos. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se, a acompanhar, umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois deslubrificados. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".

Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Pão. E Dia Mundial da Alimentação.

Cibo, cibito, cibinho, cibico

Cibo é comida, alimento, especialmente das aves, aqueles bocadinhos que os pássaros dão às suas crias de biquinhos famintos e abertos. Isso. Cibo é pequena porção. Pequena porção de comida ou de qualquer outra coisa, mas sobretudo de comida, como era uso dizer no falar antigo de Fafe e Basto e certamente de todo o Norte ao redor, de uma maneira geral. Mas atenção: cibo não era um vocábulo arrevesado e anacrónico, jurássico, pelo contrário, era palavra corriqueira do dia-a-dia, metida a cotio por necessidade. Era a medida da vida. Cibo é menos que pedaço, é menos que naco, é, dito de outra forma, um nico. Cibo era pobreza.
Pedia-se, oferecia-se, dava-se, partilhava-se, comia-se um cibo de pão, um cibo de carne, bebia-se uma pinga de vinho. Galegos do sul que somos, adoçávamos a penúria, enchíamo-la de mimos, dizíamos cibito, cibinho, cibico, com mil carinhos, como quem faz festas aos seus e diz pequenito, pequenino, pequeninho, pequerricho, de coração cheio e mãos abertas, talvez enganando mansamente a fome, como se afinal lhe quiséssemos bem. 

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Pão. E Dia Mundial da Alimentação.

Eu trigo-me, tu trigas-te, ele triga-se

Foto Hernâni Von Doellinger
Biju, papo-seco, carcaça, molete, pada ou trigo, consoante a região de origem e a idade de cada qual. Assim se chamava e parece que ainda se chama ao pão pequeno, arredondado, regra geral de risca ao meio e feito à base de farinha de trigo. Em Fafe aprendi-o biju e trigo, sobretudo trigo, e é o que me tem bastado até hoje: vou à padaria e peço cinco trigos, se faz favor. Riem-se e eu acho muito bem, porque rir é porreiro, desopila, embora também possa ser sinal de ignorância e estupidez natural. Em Fafe aprendi, ainda por cima, o verbo trigar - ou, talvez melhor dizendo, trigar-se -, que, naquele pedaço baixo-minhoto rural e de entranhável confluência galega, Monte Longo e Basto, significava acanhar, constranger, envergonhar, intimidar, embaraçar, coibir. Dizia-se, por exemplo, "Ande lá, não se trigue, tire mais um bocadinho de presunto!", ou então, "Nem consegui dizer ao que ia, triguei-me...", e eu achava um piadão àquilo. Ao presunto, quero dizer.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Pão. E Dia Mundial da Alimentação.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Bolsas de estudo e de mérito

Foto Município de Fafe
"O Município de Fafe informa que estão a decorrer as candidaturas de atribuição das Bolsas de Estudo e de Mérito, relativas ao ano letivo 2024/2025.
O Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo e de Mérito (RABEM) tem por objetivo autonomizar a regulamentação das bolsas de estudo, criando novos procedimentos e possibilitando premiar o mérito.
São apresentadas duas tipologias de bolsa de estudo: (1) as bolsas de estudo e as (2) as bolsas de mérito.
As bolsas de estudo correspondem a um valor complementar da bolsa atribuída pela DGES."

P.S. - Texto da autoria do Município de Fafe. Mais informações, aqui.

Hugo Viana, o gentleman

Estou extremamente vaidoso com este acontecimento de uma pessoa que me conhece ir para director desportivo do importante clube de futebol Manchester City, de Inglaterra. Note-se, eu não conheço o Sr. Hugo Viana de lado nenhum, senão como figura pública, mas ele diz que me conhece. Ou pelo menos disse que me conhecia lá pelos primeiros anos deste século, estando ele como jovem jogador do Sporting e eu como velho jornalista do jornal 24horas, no Porto. O rapaz tinha uma questão familiar qualquer, que eu não quero trazer agora aqui ao caso, e o meu jornal mandou-me explorar a coisa. Do meu ponto de vista, o assunto era irrelevante e sobretudo particular, íntimo, tipo ninguém tem nada com isso, mas as minhas chefias, de Lisboa, invocaram o sagrado "interesse público e jornalístico" para me encostar à parede.
Fiz alguns contactos exploratórios, falei com duas ou três pessoas mais ou menos envolvidas ou sabedoras, e de repente recebi uma chamada do próprio Hugo Viana, que tinha e tem idade para ser meu filho, e atirou-se assim: - Ouve lá, estás avisado! Eu conheço-te, pá, sei onde trabalhas e os teus horários, sei onde moras e onde comes. Se escreves alguma coisa sobre mim, estás lixado comigo, faço-te a folha, pá!...
Eu, se querem saber, ri-me. Aquilo era tão infantil, tão coisa de miúdo, que não só não levei a sério como nem sequer levei a mal. A verdade é que, naquela altura, nem eu sabia os meus horários e amiúde não acertava com a porta de casa. Trabalhava pelo menos treze ou catorze horas por dia, sem hora de entrar ou de sair, muitas vezes na rua, e comer era só depois do serviço arrumado e onde calhasse...
Em todo o caso, não cheguei a escrever o artigo, que, repito, realmente não interessava nem ao Menino Jesus, era essa definitivamente a minha opinião, e ainda é. Mas não foi por causa do telefonema pândego e das ameaças de Hugo Viana que a "notícia" não saiu. Não. Acontece que, por aquela maré, as camisolas do Sporting (e do Benfica e do FC Porto) eram patrocinadas pela PT - Portugal Telecom, que por acaso era também a dona do grupo de comunicação que detinha, entre outros títulos, o jornal 24horas. Quer-se dizer: era como se eu e o Hugo Viana, deixem-me exagerar um bocadinho, tivéssemos o mesmo patrão. O Sporting mexeu-se. O imbróglio foi tratado ao nível das mais altas esferas, disseram-me, os meus ilustres chefes, sempre sábios e cheios de razão, mandaram imediatamente às malvas o inefável "interesse público e jornalístico" e recebi ordens expressas para abortar um trabalho que, em bom rigor, nem sequer tinha começado. O jornalismo, quer queiram quer não, meus amigos, era e ainda é, se o houvesse, uma coisa muito bonita.

Resumindo e concluindo: se precisarem de alguma coisa do Sr. Hugo Viana, agora que ele é gentleman por geografia e está no topo do mundo, digam, que eu trato disso. Ele conhece-me.

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Afinal havia outras

Foto Município de Fafe
Árvores há muitas, como os chapéus. Ou os barretes. Há as árvores derrubadas pelas tempestades e há as árvores derrubadas pelas autarquias em geral só porque lhes apetece, ainda não cheguei a perceber que mal é que as árvores lhes fizeram. E há também as árvores para a fotografia, como esta, bem catita, melancolicamente outonal, que é, desde há horas e nem de propósito, o actual frontispício da página oficial do Município de Fafe no Facebook. Árvores mandadas construir pelas próprias mãos dos nossos autarcas no Parque Municipal, arduamente, como D. Dinis fez no Pinhal de Leiria, ninguém me venha dizer o contrário. Há que dar-lhes valor, e eu dou.

O pintor que pintou Ana

"O pintor que pintou Ana
também pintou Leanor,
pintou a cara da mãe
com tinta da mesma cor."

Há outras versões da velha lengalenga, adaptações e até desenvolvimentos, mas foi assim simples que a aprendi do meu avô da Bomba. E lembrei-me dela e dele hoje outra vez, mesmo à bocadinho, no passeio à beira-mar...

domingo, 13 de outubro de 2024

A feira de Fafe era três


A feira de Fafe era três. Um três-em-uma, três feiras numa só, pague uma e leve três. A feira de Fafe era um pacote, uma pechincha. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Tínhamos a Feira propriamente dita, no terreiro do Largo, actual Praça 25 de Abril. Tínhamos a Feira das Galinhas, na hoje chamada Praceta Egas Moniz. E tínhamos a Feira do Gado, na Feira Velha, agora dita Praça Mártires do Fascismo. As três eram apenas uma, coincidiam no mesmo dia, quarta-feira, como ainda hoje, a dispersão geográfica não passava de um pormenor, mas de vanguarda. Se fosse hoje, dir-se-ia que era uma feira em três pólos. Ricos tempos! Tínhamos muito, tínhamos tudo, uma fartura. De feira estávamos nós bem servidos, faltava-nos era dinheiro...
Em bom rigor, a feira começava antes da feira, logo por Cima da Arcada, numa espécie de antecâmara dedicada às artes performativas e da propaganda, espaço semanalmente ocupado pelo vendedor de banha da cobra, pelos milagres e mezinhas da santa Alexandrina de Balasar, pelas pacientes Testemunhas de Jeová e, ocasionalmente, pelo Rei das Limas, que, no entanto, era praticamente da casa, como já aqui contei. E havia também um sítio especial para o pão, diversos tipos de pão regional, doméstico, de Fafe e das redondezas até Amarante, especialidades vendidas por duas ou três senhoras e por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza.
Descidas as escadas, no Largo, os ourives instalavam-se debaixo dos arcos da Arcada ou logo em frente, hoje sítio de esplanadas e medíocres programas de televisão de aluguer. Parecia que o ouro do mundo inteiro se juntava ali, em cima de bancas de madeira forradas a flanela negra, as nossas ourivesarias Martins e Pérola também montavam estendal, e eu ficava a imaginar aqueles ourives todos com os bolsos dos casacos cheios de pistolas e espingardas caçadeiras, e sobretudo com uns tomates muito grandes dentro das calças, porque de outro modo não podia ser. Eles andavam assim carregados de terra em terra, quer-se dizer, sem seguranças, sem carrinhas blindadas, sem telemóveis, sem ligação directa à polícia, sem satélites, sem drones, nada, só o patrão e talvez um empregado de preferência solteiro e eventualmente borrado de medo, os dois enfiados na velha carripana e a rezar o terço. Isto é, estavam mesmo a pedi-las...
No terreiro da feira era o costume. Hortaliças, legumes, verduras, frutas, talvez secção de louça e panelas. E muito povo. A feira instituíra-se local de encontro semanal, mais do que a missa de domingo, e aqui, zona de cozinha e mesa, eram sobretudo mulheres. Outra vez descendo, para a Feira Velha, aí eram principalmente homens, lavradores em maioria, com as carteiras a abarrotar de notas de conto. À roda da escola fascista cujas pedras deram, por milagre, em capela, vendia-se e comprava-se gado. Bois, vacas, bezerros. E alfaias agrícolas, e jugos e sogas, e pipas e dornas, e latoaria, e fatos e samarras e capotes e croças e chapéus e bonés e sapatos e botas e galochas e chancas e socos. E nos tascos das redondezas, isto é, na vila inteira, apanhavam-se pielas de caixão à cova. Lá dentro, na escola, era um cheiro a bosta que se não podia, mas o regime realmente também não se recomendava...
Gado de mais pequeno porte, digamos, frangos, galos, galinhas, garnisés, pintainhos e coelhos das mais variadas origens e díspares feitios, isso era mais cá para cima, na Feira das Galinhas, larguinho de terra virado para a Igreja Nova e onde se mercavam também ovos, farinhas, feijão e milho, saquinhos de sementes, tudo colocado no chão estreme, em carreirinhas ordenadas, honestas, sem truques para enganar o freguês. Fazia-se comércio directo. Havia quem levasse à feira galinhas de patas atadas, debaixo do braço forte ou enfiadas em cestas de vime com a crista de fora, e trouxesse para casa meia dúzia de sacos de feijão e grão, sacos de pano, sossegados no açafate muito bem tenteado na cabeça com rodilha.
Lembro-me agora: chegou a haver um mercado de sábado, mas só pelas manhãs, parece-me, no nosso Santo Velho, outro terreiro. Era uma feirinha.
Há muito despejada do Largo, a feira de Fafe andou entretanto com a tenda às costas, deu as suas voltas, até assentar arraiais na hoje chamada Praça das Comunidades, feita de propósito para a função. E ali está de armas e bagagens, creio que bem instalada e para ficar. Mas é só uma...

P.S. - Publicado aqui originalmente no dia 4 de Outubro de 2023. Faz hoje 69 anos que morreu a beata Alexandrina de Balasar.

sábado, 12 de outubro de 2024

Meninos, à mesa!

Quando a corneta, ou olifante, tocou para o tacho, eram mais de três mil cavaleiros, de faca e garfo em punho como se fossem para uma justa, mas sentados e com um apetite escancarado e lavajão, posto que estávamos na Idade Média, e higiene e boas maneiras não eram com eles naquele tempo. Manifestamente atónito e arreliado assim assim, o rei Artur fez contas à vida, pelos dedos, apaziguou a algazarra da turba colorida e apenachada com meia dúzia de flechas cirurgicamente colocadas e obviamente fatais, invocou o regimento e colocou um ponto de ordem à mesa. O seguinte: "Embora nunca tenhamos realmente existido, está historicamente provado que vocês não podem ser mais de doze, talvez 24, ou, para não me chamarem unhas de fome, temos sala para 150, fora as crianças, que pagam metade. Agora, famílias inteiras, 3.145 adultos e gordos, menos os seis que eu vindimei, já é uma escandalosa moinice. De onde é que me apareceu esta gente toda, que ainda por cima não traz o Magriço, que até nem dá despesa nenhuma, como o próprio nome indica? Por São Jorge, isto é a Távola Redonda, não é a gamela do Orçamento"...

Moral da história: Por isso é que o Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe é comido em mesas geralmente rectangulares. Para evitar confusões.

P.S. - O escritor britânico Roger Lancelyn Gren, autor de "Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda" e "Robin dos Bosques", morreu em Outubro de 1987, há quem diga que no dia 12 como hoje, aos 68 anos.

E assim começou a guerra

Há fafenses que se me têm manifestado surpreendidos, agradavelmente surpreendidos, com as revelações aqui desencadeadas sobre a importância de Fafe nos interstícios da História de Portugal e até no arranjo geoestratégico da Europa no seu todo. Não sabiam, não faziam a mínima ideia. A verdade nua e crua sobre o nascimento da nação e a propósito da muito mal contada Batalha de São Mamede deixou-os de boca aberta. E a relação provada da nossa terra com o desfecho da Guerra dos Cem anos e, por maioria de razão, com a realização da Batalha de Castillon aqui mesmo nas nossas barbas ainda a escancarou mais e deve ter doído como o caraças. Dois desses desconcertados conterrâneos tiveram de ir de urgência para o Hospital de Guimarães, onde lhes fecharam a matraca à marretada.
Que se segue. Um destes dois ex-boquiabertos paisanos, amigo de longa data e inabalável fafense até às unhas dos pés, ficou melhorzinho graças a Deus e digamos que entusiasmado com a nova maneira de ver o protagonismo da nossa terra, contra isso nada, e contactou-me curiosíssimo de saber por mim como é que realmente começou a Guerra dos Cem Anos. Ora bem: isto aqui não são os discos pedidos, mas cá vai, uma vez sem exemplo. Por acaso não foi em Fafe, mas passou-se assim:

Era um encontro previsto para ser aprazivelmente diplomático e discutido à melhor de três sets: quando Mister Cheddar, pela Inglaterra, e Monsieur Camembert, pela França, reuniram em Sherwood, sob os auspícios do Robin dos Bosques e a bênção de Frei Tuck, tendo sobre a mesa, já naquele tempo, a delicada questão das quotas leiteiras. Estava tudo a correr bem, estava-se até bastante agradável, entre uísques e champanhes perfeitamente bebidos, mas era um cheiro a chulé que não se podia. Foi então que o inglês, já com um grãozinho na asa e uma mola de roupa no nariz, não aguentou mais e questionou o francês, com a ajuda do José Milhazes, que fazia as traduções: - Porque é que o caro amigo (old chap, no original) não vai mas é lavar os pés no Sena?
E foi assim que começou a Guerra dos Cem Anos. Até hoje.

Por outro lado, aproveito para esclarecer também o seguinte. A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas bancários, e assim começaram os arredondamentos.

P.S. - Parcialmente publicado no dia 31 de Dezembro de 2022. O escritor britânico Roger Lancelyn Gren, autor de "Robin dos Bosques" e  "Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda", morreu em Outubro de 1987, há quem diga que no dia 12 como hoje, aos 68 anos.

Como no cinema

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

O Porshe era verde

Os Porsche eram verdes, como o do João Ricardo Mendes Ribeiro. Os Volksporsche eram amarelos, como o do Armando "das Mobílias". E os Ferrari eram vermelhos, evidentemente. Tudo ao natural, como Deus criou. Depois, não sei dizer quando, alguém trocou as tintas e lançou o caos. Agora vai por aí nas estradas uma babilónia de cores e carros que ninguém se entende, pelo menos eu.

Ovos de galo, havia-os no Peixoto

A ciência ainda não encontrou uma resposta plausível e, pelo menos, isenta de misoginia: porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha?

A esse respeito, hoje é Dia Mundial do Ovo. O Peixoto, em Fafe, o grande Peixoto, para além de confeccionar as melhores moelas de coelho do mundo, tinha às vezes uns ovos de galo, cozidos e nada mais, que também eram uma especialidade. Na semana da Páscoa, derivado à tradição, os ovos eram evidentemente de coelha. Entretanto o Peixoto passou o negócio, adeus ovos, adeus moelas, e acabou-se o que era bom. É assim. Fafe vai-se perdendo...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Ovo.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Câmara de Fafe continua a ganhar

Foto Município de Fafe
Acabo de ler nas notícias que a "tempestade Kirk derrubou mais de 100 árvores em Fafe", isto é, 102 árvores, para sermos exactos. Creio que a Câmara de Fafe continua, ainda assim, a ganhar. Pelas minhas contas, a autarquia já derrubou muitas mais.

P.S. - A quem possa interessar, recomendo, a este respeito, a leitura ou releitura de "Jardins era um coisa que existia antigamente", "Urbanismo e estupidez natural" e "Traz uma árvore também".

Um bocado palerma

Os óculos são como as luvas, as calças, as meias, as botas, os patins, as jarras, os estalos, os cornos e outras coisas boas da vida - vêm aos pares. Ocorreu-me este acutilante pensamento porque precisei de mudar de óculos. E então: "Estes óculos fazem-me um bocado palerma", disse eu à menina da loja, mirando-me no espelho enganador. "Não diga um coisa dessas, por acaso até lhe ficam muito bem", disse-me a menina da loja, cumprindo a sua obrigação. "Exactamente, é isso que eu quero dizer: estes óculos favorecem-me. Normalmente sou palerma completo", esclareci.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Visão. E também da Sábado, que agora sai às quintas.

Um luxo, sábado à noite

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Um talho no Largo e outro na Avenida

Uma vez não são vezes: debrucemo-nos então sobre a problemática do redenho. O redenho, que - há que admiti-lo sem tibiezas - não é ingrediente indispensável na confecção de uns rojões honestos e com outros matadores, mas no entanto, se marcar presença, confere ao prato um não sei quê que por acaso sei e que tem a ver com o seu aspecto inusitado, com o sabor rústico mas colaborante (dando-se-lhe as voltas certas) e sobretudo com o crocante da textura.
Que se segue, precisei de fazer uns rojõezinhos para uma gente que andava aí com desejos e fui ao talho. Escolhi a carne, da febra e da barriga, o sangue e as tripas enfarinhadas. Quando pedi o fígado de porco, que na verdade até era para ajeitar uma entrada de iscas de cebolada, o talhante, sem que eu dissesse mais nada, avisa-me "Olhe que não temos redenho". E depois, olhando para um lado e para o outro, chegando-se à frente do balcão à procura do meu ouvido e da minha cumplicidade para revelar-me o quarto segredo de Fátima, diz-me, num sussurro: "Quer-se dizer, haver há, mas é congelado". E, congelado, realmente "Não é a mesma coisa", concordámos eu e ele em coro, como se estivéssemos ensaiados.
Repito: o redenho não é indispensável aos rijões, sim, rijões, como se diz, e bem, na minha terra. Mas a gentileza e a honestidade sim. Sobretudo nestes tempos de desrespeito pelos valores e de aviltamento das pessoas, tempos portugueses de antagonismos sociais, de pobreza imposta, de novos fascismos e de tristeza e azedume generalizados. Soube do redenho e senti a Terra tremer debaixo dos meus pés. Algo mexeu com o equilíbrio estabelecido do Globo. Continuo a acreditar que anda meio mundo a enganar o outro meio, mas naquele momento, à frente dos meus olhos, um homem passou para o lado bom, que eu bem vi.
As coisas não são tão simples assim, é o que estão a pensar? São, são. E Dalila...

Isto à conclusão de quê? Hoje é Dia do Açougueiro. No Brasil, evidentemente. Em Portugal creio que, se tal houvera, ainda se diria, se nos deixarem, Dia do Talhante ou Dia do Magarefe ou, vá lá, Dia do Marchante. O Talho tem lugar cativo, especial, nas minhas memórias fafenses. O Talho Novo, que era, para nós, como se fosse único, mas não, havia ali perto também o Talho Avenida, dos do Souto, como então se dizia, e nem tenho a certeza se se chamava mesmo assim, Talho Avenida, mas era na Avenida, logo no princípio, quem saía do Largo em direcção à Estação, do lado e antes do Café Avenida e quase em frente ao Martins da Avenida, portanto, estão a ver, o mais certo é que também fosse da Avenida. Mas adiante. Quando a minha mãe me mandava à fressura, "um quarto", eu tinha de pendurar-me no balcão para ser visto lá em cima. E é curioso: mais de cinquenta anos passados, ainda guardo bem vivas as caras daquela boa gente, que me atendia tão bem, como se eu fosse grande, respeitando com reserva e elegância a nossa pobreza. Caras a que, tenho pena, não sei agora dar nomes, com excepção do Senhor Abreu e, evidentemente, do Senhor Órfo, o Talho em pessoa, mas isso já é outra história...

Espero que ao receberes esta

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Entre ougar e desougar, salve-se a pirângula!

Em terra de pobres, a norma era desougar. Não havia fartura, faltava até o mero suficiente, abundavam evidentemente as crianças, e então dava-se-lhes apenas a provar, e por uma boa razão, essencial, para manter os futuros homens inteiros e artilheiros, como adiante se verá. Ougava-se muito, antigamente, sobremaneira cá em cima, no velho Douro, em Trás-os-Montes, no nosso Minho, em Fafe especialmente, lembro-me bem, noutros sítios do Portugal triste e escanzelado dir-se-ia decerto doutra maneira também pândega mas a querer dizer sempre o mesmo: pobreza. Fome, quando não.
Ougar, de augar, de aguar. Ougar, isto é, salivar ao olhar para comida ou bebida de outrem, ficar com água na boca, sentir grande desejo de. Ougar era muito perigoso naquele tempo, porque, dizia o povo, que sabia tudo, quem ficasse ougado, quer-se dizer, desconsolado, contrariado, carente, invejoso, em situação de grande desprazer ou de pasmaceiro apetite ao ver, caía-lhe redondamente a pirângula, isso mesmo, a pirângula, não sei se os acessórios também, e a ideia de um futuro homem sem pirângula e quiçá também sem acessórios, hoje em dia a coisa mais natural do mundo, não era ideia que se tivesse naquela altura sem o incómodo de um penetrante arrepio pela espinha acima.
Por isso, entre os pobres, era muito importante atalhar a coisa, desougar - o gado, com um pequena porção de penso, mas não é isso que vem aqui ao assunto, e fundamentalmente as crianças, coitadinhas, mais que as mães, ruins de aturar, com mais olhos do que barriga, borradas, chorosas, moncosas e cobiçosas de tudo o que viam ou pressentiam à frente dos outros. Desougar era dar um bocadinho. Desougar era uma urgência. Desougava-se para impedir o ougamento, para poupar um par de estalos (geralmente não, acumulava), para acabar de vez com a lamúria e, em todo o caso, para preservar a integridade pelo menos física do pedinchoso. À mesa, mandava, solene, quem era de lei: - Caralho, mulher, desouga o moço, dá-lhe um cibo antes que lhe caia a pirângula!...

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)

Mal comparando

O polvo é um octópode. Duas burras do Reigrilo também.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Polvo.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Fafe era o fim do mundo

Foto Município de Fafe
Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio e da estação, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante à minha terra, que agora sabe outra vez muito de comboios, ainda vão encontrar quem conte como conseguiu. Perguntem ao Gino, que se fez fafense assim. 
De Fafe, ia-se para a guerra de comboio. A Fafe, chegava-se da França de comboio. Fafe e o comboio eram unha com carne. A Estação, assim com maiúscula, era a nossa praça de despedidas e reencontros, o nosso vale de lágrimas.
Passou-se. Depois, sem mais nem menos, os fafenses foram todos para os carros a duzentos à hora, pelo menos três carros em cada família, e a automotora começou a madrugar só para mim, para me trazer ao namoro no Porto e tornar-me a casa à noite, eu sozinho como passageiro, às vezes no Inverno lá à frente na cabina, gentilmente convidado, junto com o maquinista e o revisor, para aproveitar o aquecimento. Fafe desistiu do comboio, mas em grande estilo, coupé, mandou-o dar uma curva e queixou-se muito quando lho "tiraram". Hoje em dia faz-lhe festas.
E que se segue? Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde, espraiando-se pelos quintais e campos de Sá. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo - muito à frente em termos de género, sexo e similares.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso com abraços de carne o osso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E depois levamos com pandemias a fazerem-nos ilhas, parece que estamos definitivamente condenados, proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.

(Apontamento publicado originalmente no dia 23 de Dezembro de 2013, no meu blogue Tarrenego!, e depois aqui, onde diz mais respeito. E creio que vem a propósito repeti-lo.)

domingo, 6 de outubro de 2024

O algodão não engana

Foto retirada do blogue Restos de Colecção
Ultimamente dá-me para sonhar com pessoas que já morreram. Pessoas de quem gosto - familiares e amigos, sobretudo amigos, povo do meu antigamente, gente de Fafe. Sou um simples, acho que são saudades. Mas dizem-me que não, que o assunto é muito mais complicado, especialistas em correntes de ar, astrologia e afins garantem-me que os sonhos querem dizer coisas, significam, e que não enganam. Os sonhos são como o algodão, hidrófilos. Como o algodão do Sonasol. Nos sonhos está lá tudo, e tudo acaba por bater certo. Limpinho.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Pela miséria que me tem saído na rifa nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que, uma vez que desdenho a Raspadinha, o que me convinha mesmo era o Euromilhões. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Agora vou dormir e passo à escuta.

Por falar nisso: sonhar com algodão dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. É preciso ser-se mesmo muito desgraçado para sonhar com algodão. Se ainda fosse com merda... e depois pisá-la. Pisar merda, isso é que é certo, diz que dá sorte, dinheiro.

A memória é tramada. Amanhã é Dia Mundial do Algodão. E também é Dia Mundial do Trabalho Digno. O algodão, esse símbolo branco da escravatura negra, passava quase todos os dias por mim, em fardos, em camiões, a caminho da Fábrica do Ferro, Companhia de Fiação e Tecidos de Fafe, onde depois havia milhares de operários a trabalhar, entre os quais o meu pai e a minha irmã, e variados chefes a roubar, deu no que deu. Ia daqui de Matosinhos, o algodão, do Porto de Leixões, agora mesmo à beirinha de onde moro com vista para o mar se me puser de lado. Quer-se dizer: por mais voltas que a vida dê, estamos sempre no mesmo.

sábado, 5 de outubro de 2024

O Secónego

Foto Hernâni Von Doellinger
O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas, da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos livros. Sabia das origens todas. Sabia. Estão a ver o José Hermano Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem televisão e a sério, com base científica. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não tenho culpa de ser Von Doellinger.
O Secónego tinha uma maneira de falar muito cómica. Falava como quem não abre a boca, às vezes com a mão à frente, com medo talvez de que se lhe evadisse a placa. Chamava-nos a todos "Ó menino!", embora já fôssemos uns respeitáveis gandulos, e ria-se satisfatoriamente.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E ele merecia.
Depois levaram-no.

O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus, a cota baixa. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê"...

(Quando acompanhava o seu próprio corpo, o que era cada vez mais raro, o Secónego sabia mesmo muito sobre os antigamentes de Fafe, e eu regalava-me a ouvi-lo. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha (1906-1976), autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição, tendo participado como colaborador regular na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira e na Enciclopédia Verbo. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga. E já agora: o parágrafo anterior deve ser lido em voz alta, como quem conta uma história, sobretudo o discurso directo da última frase. Fica melhor.)

Aqui chegados, como diria o nosso Luisinho Marques Mendes, que também é um latinista, devo informar que no seminário tive os melhores professores do mundo.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Professor.

Sou esbraguilhado e não sabia

Esbraguilhado, de acordo com a definição dicionária, é o tipo que "tem a braguilha desabotoada". As braguilhas há que anos não são de botões, mas não posso negar que umas quantas vezes já saí de casa com a ferramenta a arejar, esquecido completamente de puxar o fecho-éclair para cima, por pressa ou por idade - ainda não consegui chegar a uma conclusão que me convença. No entanto, foram acasos, excepções, eu morra aqui se não é verdade. Nesse sentido, portanto, não me vejo como um genuíno esbraguilhado.
Porém. Esbraguilhado também quer dizer o tipo que anda "com fralda da camisa saída". E aqui sou eu, todo e completo: esbraguilhado de corpo inteiro, que não meto as fraldas para dentro há mais de quarenta anos, nem nos dias raros e cerimoniosos de uso de casaco. Jamais.

Bela palavra, esbraguilhado. Nunca lhe tinha posto a vista em cima até há coisa de oito anos e por acaso, apesar de a língua portuguesa ser uma paixão e o meu ofício. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças a Deus. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário. Um milagre.
Depois tive a sorte de me calhar o professor Correia (Toninho da Cafelândia, se não me engano), que me levou da segunda à quarta classe na Escola Conde Ferreira, tive os extraordinários mestres do seminário, o professor Alberto Alves, que me ensinava livros na Biblioteca Gulbenkian de Fafe, o velho professor Horácio, meu chefe e amigo na revisão do Janeiro. Todos me ensinaram. A tabuada dos nove, a Linha da Beira Alta, os reis da 1.ª Dinastia, semânticas e hermenêuticas, mas sobretudo ensinaram-me a pedir licença e a tratar com carinho a língua portuguesa. Puxaram pelo melhor de mim, sem estragarem o que a minha mãe tinha feito. Aprendi.

Aprendi, por exemplo, a ter dúvidas quando escrevo. Quem não tem dúvidas, tende a escrever asneiras. Hoje em dia escreve-se muito de ouvido. E escrever de ouvido não tem nada a ver com literatura oral, é mas é sinónimo de preguiça, ignorância. As palavras nem sempre se escrevem como soam, e muitas vezes são mal ditas. Mal ditas, mal escritas, mal interpretadas, e assim normalizadas. O erro passa a ser a norma, a patacoada alcança dignidade gramatical. Pela parte que me toca, eu, confesso, não sei escrever sem o dicionário, o livro, ao lado; não sei escrever sem a enciclopédia, os livros, ao lado. Molho o dedo, gesto antigo, vou lá ver se é com ésse ou com zê, se a palavra que escolhi quer dizer exactamente aquilo que eu quero dizer - e ainda assim asneio.
Foi num destes exercícios que descobri a palavra esbraguilhado e gostei dela. Assumi-a. E, à falta de melhor assunto, veio-me a memória. Ou então sou só eu a dar uso às palavras. Estimo-as, protejo-as, mas elas precisam de arejar.

P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Setembro de 2022. Hoje é Dia Mundial do Professor. Repito-me, em homenagem.

O meu bisavô Lindolpho, pedagogo e jornalista

Um por acaso lembrou-me aqui atrasado do meu bisavô Lindolpho, pai do meu avô da Bomba e egrégia figura que infelizmente não conheci. Fui aos papéis. Lindolpho Von Doellinger, pedagogo, nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, na freguesia de Santo António dos Pobres - tanto quanto consigo perceber na certidão de nascimento do meu avô, assento n.º 71, que preservo com devoção e fita-cola. Dos Pobres, e eu nunca tinha ligado. A minha vida começa finalmente a fazer sentido...
Que se segue? Fafe marcou o 10 de Junho de 2017 com a inauguração do Museu da Educação, em Silvares, dando estupenda serventia ao recuperado edifício da centenária Escola Deolinda Leite. Ora acontece que o primeiro professor desta escola deverá ter sido exactamente o meu bisavô (situemo-nos nos anos de 1892 a 1894), sendo certo que não parou por lá muito tempo - o que me faz lembrar uma pessoa que conheço muito bem. Ano e meio, se tanto, e já o "Sr. Lindolpho Von Doellinger" manifestava a sua "vontade férrea" de mudar de ares para "abrir uma escola particular denominada Santa Virgínia, em Fafe, por insistência de muitos pedidos de vários seus amigos", segundo leio num documento do sítio do Museu das Migrações e das Comunidades.
Outro por acaso fez-me descobrir que, provavelmente entre os anos de 1907 e 1912, o meu bisavô Lindolpho - a quem puseram uma alcunha que, por maldosa, aqui não repito, embora não me envergonhe - foi director do semanário político fafense "A Verdade". Quer-se dizer: isto anda tudo ligado, velho camarada.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Professor.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Boas notícias para Fafe

Foto SIC

Os bois chamam-se pelos nomes

O porco é Ruço. A porca Vadia. A vaca Amarela. O boi Barrão. O touro Osborne. A turina Malhada. A vitela À Moda de Fafe. O cão Bobi. O elefante Branco. A cadela Laika. A Santa preguiça. O cachorro Kent. O gato Maltês. A gata Borralheira. A cabra Cega. A ovelha Dolly. O cabrito Montês. O cavalo Silva. O burro Velho. O rato Mique. O coelho Anão. O macaco Adriano. O leopardo Negro. O urso Teddy. O teddy Boy. A chinchila Mila. O furão Furão. A tartaruga Ninja. A cobra Dora. A mulher Alheia. O homem Erecto. O peixe Dourado. O surfista Prateado. A sardinha Biba. A pita Arisca. A periquita Alegre. A parreca Molhada. A pomba Branca. O crocodilo Dundee. A lontra Badocha. O pato Patola. O galo Badalo, a galinha Balbina, o pinto Jacinto e o peru Gluglu.
Assim se chamam os bois pelos nomes.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Animal. E Dia Mundial do Médico Veterinário. Para quem não saiba, O Veterinário, assim mesmo por antonomásia, era em Antime.

Reservado o direito de admissão

Foi má ideia aquele letreiro à porta do consultório - "Proibida a entrada de animais". Era um veterinário, valha-me Deus...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Médico Veterinário. E Dia Mundial do Animal. Para quem não saiba, O Veterinário, assim mesmo por antonomásia, era em Antime.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Portugal num guardanapo


Por volta de 1980, Mário Wilson (1929-2016) era o seleccionador nacional e também treinador do Vitória de Guimarães, por onde passava pela segunda vez, se não me engano. No Inverno, para poupar o relvado, único, do velho e feiinho Municipal vimaranense, o Vitória vinha treinar a Fafe geralmente às quartas ou quintas-feiras, fazendo connosco o chamado jogo-treino. Connosco, quero dizer, com a Associação Desportiva de Fafe, que costumava ter uma equipa competente de segunda divisão - hoje é a desgraça que se sabe. Eu trabalhava na AD Fafe: tratava dos papéis, de alguns inocentes papéis, é preciso que se note.
Mário Wilson era uma jóia de pessoa e foi um treinador sobretudo afectivo. Gostava de falar com os seus jogadores um a um, como em acto de confissão mas passeando, colocando-lhes o braço paternal por cima dos ombros - vi-o assim muitas vezes.
Um dia, numa daquelas quartas ou quintas-feiras, o Senhor Wilson entrou-me no minúsculo gabinete, que era por baixo das bancadas e por cima dos balneários, cumprimentou-me elegantemente como se eu fosse alguém e pediu-me se podia usar o telefone para ligar para Lisboa, para a Federação Portuguesa de Futebol. Eu teria para aí uns 21 ou 22 anos e "dei-lhe" autorização, armado em parvo como só naquela idade. Depois de conseguir resposta do lado de lá da linha, o Velho Capitão pigarreou, cofiou a barbicha, foi ao bolso do casacão de cabedal, rapou de um guardanapo de papel marcado com beiçadas de verde tinto, vamos um supor, estendeu-o em cima da minha secretária, alisou-o o melhor que pôde e começou a ditar para a capital o que lá escrevera eventualmente ao almoço. Eram nomes, uma lista, a convocatória para a Selecção Nacional na campanha de apuramento falhado para o Europeu de 1980, em Itália. Exactamente: a Selecção de Portugal estava no guardanapo de Mário Wilson...

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! e depois aqui, no Fafismos, no dia 25 de Agosto de 2023. Mário Wilson, o "Velho Capitão", morreu no dia 3 de Outubro de 2016.

O passeio do idoso

O autocarro de aluguer levava à frente, à mão direita do motorista, uma perspicaz tabuleta que dizia "Passeio do Idoso". Convenhamos: a tabuleta é necessária, é preciso muita tabuleta, porque uma câmara municipal ou uma junta de freguesia não se podem dar ao luxo de organizar um "Passeio do Idoso" e o mundo ficar sem saber que a câmara municipal ou a junta de freguesia organizaram um "Passeio do Idoso", ainda mais agora que estamos praticamente a um ano de eleições autárquicas e todo o cuidado é pouco. Portanto, a tabuleta anunciava "Passeio do Idoso". Olhei com atenção para o interior do autocarro de 56 lugares e, a verdade é só uma, lá no meio ia realmente um velhinho, só um, mais vale só do que mal acompanhado. A tabuleta estava certa - era, com efeito, o passeio do idoso.

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)

Quando me mandaram tramar Sócrates

Ano de 2004. O Presidente da República Jorge Sampaio despede o primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, por indecente e má figura. Eleições legislativas são antecipadas e marcadas para 20 de Fevereiro de 2005. José Sócrates é o novo líder do PS e da oposição. Vai a votos. Durante a pré-campanha e campanha eleitoral, critica Santana Lopes, que se recandidata pelo PSD e promete não aumentar impostos.
O meu jornal manda-me "tramar" Sócrates. É preciso ligar-lhe imediatamente e perguntar-lhe se, caso ganhe as eleições, vai subir os impostos. Mas que pergunta inteligente! Que armadilha bem montada! Pincéis desta marca sobravam sempre para mim. Como já aqui contei, as pessoas de bem, ou as pessoas de mal que faziam questão de uma fachada de bem, recusavam-se a falar com o 24horas: tinham consciência de que, se abrissem a boca, tudo o que dissessem poderia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para saber as horas, haveria de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha e espalhávamos a merda. Dito de outra forma: as pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. Por outro lado havia quem fizesse tudo para aparecer.
Portanto o meu jornal manda-me "tramar" José Sócrates. É só ligar-lhe, a ele que nunca atende o 24horas e que escorna os jornalistas em geral por uma questão de princípio. Ligo, ligo, ligo, o dia inteiro. E nada e nada e nada, o dia inteiro. Ao pôr-do-sol tento o inimaginável truque, o long shot, como Lisboa gosta de me dizer e eu parto-me a rir: marco o número de Pedro Silva Pereira, o braço-direito de Sócrates, e sai-me do outro lado o Sócrates inteiro e desconfiado, num por acaso que me enche de adrenalina. Identifico-me, ele vai desligar de seguida, peço-lhe que não e faço-lhe a pergunta de um milhão de dólares: - Se vencer as eleições, se for para primeiro-ministro, vai subir os impostos?
José Sócrates não me manda àquela parte, mas podia, que eu não lhe levaria a mal. Ainda assim, empertiga-se, serigaita-se, despeita-se, esganiça-se e responde-me agressivamente: - Mas quem é que você é? E quem é que pensa que eu sou? Isso é uma pergunta ridícula. Acha mesmo que eu lhe vou responder? Sei muito bem o que quer, mas daqui não leva nada. Não lhe respondo. Acha que eu sou um principiante? E o senhor não tem nada de útil para fazer?...
Tenho. E faço. "Reformulo" e ponho pó de talco na pergunta: - Se o Senhor Engenheiro for o próximo primeiro-ministro, posto que ganhe as eleições, vai subir os impostos?
Sócrates quase que rebenta. Discutimos mais uns três minutos, tempo de um assalto no boxe, um a bater no ceguinho, o outro a agredir o invisual, eu não sabia que sabia discutir assim com cabeçudos, e ele desliga.
Saio dali exausto, nervoso e contente com a discussão. É ainda a adrenalina a mexer comigo. Geralmente o que (não) consegui é mais do que suficiente para ser a capa inteira do meu jornal no dia seguinte, em letras garrafais: "Sócrates entalado pelo 24horas" ou "24horas entala Sócrates" ou "Sócrates não responde ao 24horas" ou "Sócrates tem medo do 24horas" ou "24horas assusta Sócrates" ou.
Apresso-me a ligar para Lisboa. Conto a minha façanha, espero pelos parabéns. O chefe critica-me irritado "A resposta do gajo é inaceitável!", engulo em seco e explico ao chefe "Olha, foi o que eu disse ao gajo, que até ia da tua parte e que tu nunca na vida irias aceitar uma resposta assim, e que portanto ele que me dissesse mas é o que tu queres que ele diga, que até já tens o título feito e tudo, mas não adiantou..."
O meu textinho saiu a uma coluna numa página interior, provavelmente par. Do assunto da manchete desse dia não me lembro. Quanto a José Sócrates, por aí anda...

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Maio de 2020, no meu blogue Tarrenego! José Sócrates ganhou as eleições em questão, sacando a primeira maioria absoluta para o PS. O resto é o que se sabe e o que mais virá a saber-se. Mas por falar em tramanços: no dia 3 de Outubro de 2004, faz hoje apenas vinte anos, no decorrer do XIV Congresso do PS, a lista de Sócrates para a Comissão Nacional obteve 81,74% dos votos. Que é deles?...

Fungaria outonal

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Fafe a passo travado

Mais uma corrida de cavalos a passo travado, em Fafe, e dizem-me que esta até já é "habitual" - moda nova, sinal dos tempos. No próximo sábado, 5 de Outubro, dia solene, pelas 14h30, nos terrenos adjacentes ao IEES-Instituto Europeu de Estudos Superiores, em Medelo, numa organização da COFafe.
Viva a República, vivam os cavalos! Burros, mais uma vez, é que nada. O que se lamenta...

Um príncipe

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 1 de outubro de 2024

O Texas, como quem vai para o Picotalho

O Texas era um tasco e era em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, e isso eu nunca soube derivado a quê. Estão a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria e encostado ao Noré, mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e ainda mais às Turicas, nas barbas da procissão da Senhora de Antime que por ali passava? O Texas era exacta e geograficamente aí, previamente a ter-se instalado de armas e bagagens no sul dos Estados Unidos da América, resvés com o México, segundo vi depois nos filmes a cores.
O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto-e-branco como o regime e tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os campos do Santo, onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas, na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966. Eu e a RTP éramos miúdos da mesma idade. Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois compassos, coisa tão a calhar, no Texas aprendi vida com o querido Senhor Ferreira do Hospital e até com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele aparecer ao trabalho...

(Isso. O Texas era como se fosse uma segunda casa de ensaio da Banda de Revelhe, centro de convívio líquido, arena de ateimadores encartados, a verdadeira sede da agremiação. Músicos e apaixonantes reuniam-se e discutiam ali, à volta de umas valentes infusas de vinho verde. Falava-se de música, cortava-se na casaca, contrariava-se por uma questão de princípio, celebrava-se a existência. Quando o meu pai foi para França, os compinchas que ficaram, incluindo o meu padrinho e tio Américo, irmão do meu pai, escreviam-lhe de vez em quando mandando-lhe novidades de Fafe, da banda e do tasco, e, malandros, castigadores, costumavam carimbar a assinatura colectiva da missiva com um fundo de caneca esborratado de tinto matão, acirrando-lhe saudades e apetites. Lembro-me como se fosse hoje.)

Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto - sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste, incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não eram de saloon. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às quartas-feiras, porém não me lembro de tiros, e os índios era como se fossem da família. Naquele tempo em Fafe, terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada, domesticamente, e a Justiça de Fafe era um postal com quadras bairristas do Zé de Castro, poeta-cauteleiro, o nosso Aleixo. Borracheiras havia-as, e eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que padecia de uma questão com os erres e, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia.

Em todo o caso: o Texas foi sempre um sítio pacífico enquanto esteve nas nossas mãos. Quando foi para a América é que se tornou perigoso.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Música. Houve um tempo em Fafe. Um tempo preciso e uma forma de ser diversa. Havia uma maneira talvez boémia, romântica, idiossincrática, de ser-se músico em Fafe, naquele tempo. Estava-se assim na vida. É esse tempo, esse modo de vida e esses músicos, figuras extraordinárias, que eu tenho contado aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui, mas não só.

Mais vale solo...

Foto Hernâni Von Doellinger

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