Uma vez não são vezes: debrucemo-nos então sobre a problemática do redenho. O redenho, que - há que admiti-lo sem tibiezas - não é ingrediente indispensável na confecção de uns rojões honestos e com outros matadores, mas no entanto, se marcar presença, confere ao prato um não sei quê que por acaso sei e que tem a ver com o seu aspecto inusitado, com o sabor rústico mas colaborante (dando-se-lhe as voltas certas) e sobretudo com o crocante da textura.
Que se segue, precisei de fazer uns
rojõezinhos para uma gente que andava aí com desejos e fui ao talho. Escolhi a carne, da febra e da barriga, o sangue e as tripas enfarinhadas. Quando pedi o fígado de porco, que na verdade até era para ajeitar uma entrada de iscas de cebolada, o talhante, sem que eu dissesse mais nada, avisa-me "Olhe que não temos redenho". E depois, olhando para um lado e para o outro, chegando-se à frente do balcão à procura do meu ouvido e da minha cumplicidade para revelar-me o quarto segredo de Fátima, diz-me, num sussurro: "Quer-se dizer, haver há, mas é congelado". E, congelado, realmente "Não é a mesma coisa", concordámos eu e ele em coro, como se estivéssemos ensaiados.
Repito: o redenho não é indispensável aos rijões, sim, rijões, como se diz, e bem, na minha terra. Mas a gentileza e a honestidade sim. Sobretudo nestes tempos de desrespeito pelos valores e de aviltamento das pessoas, tempos portugueses de antagonismos sociais, de pobreza imposta, de novos fascismos e de tristeza e azedume generalizados. Soube do redenho e senti a Terra tremer debaixo dos meus pés. Algo mexeu com o equilíbrio estabelecido do Globo. Continuo a acreditar que anda meio mundo a enganar o outro meio, mas naquele momento, à frente dos meus olhos, um homem passou para o lado bom, que eu bem vi.
As coisas não são tão simples assim, é o que estão a pensar? São, são. E Dalila...
Isto à conclusão de quê? Hoje é Dia do Açougueiro. No Brasil, evidentemente. Em Portugal creio que, se tal houvera, ainda se diria, se nos deixarem, Dia do Talhante ou Dia do Magarefe ou, vá lá, Dia do Marchante. O Talho tem lugar cativo, especial, nas minhas memórias fafenses. O Talho Novo, que era, para nós, como se fosse único, mas não, havia ali perto também o Talho Avenida, do Tininho, ou dos do Souto, como então se dizia, e nem tenho a certeza se se chamava mesmo assim, Talho Avenida, mas era na Avenida, logo no princípio, quem saía do Largo em direcção à
Estação, do lado e antes do Café Avenida e quase em frente ao Martins da Avenida, portanto, estão a ver, o mais certo é que também fosse da Avenida. Mas adiante. Quando a minha mãe me mandava à
fressura, "um quarto", eu tinha de pendurar-me no balcão para ser visto lá em cima. E é curioso: mais de cinquenta anos passados, ainda guardo bem vivas as caras daquela boa gente, que me atendia tão bem, como se eu fosse grande, respeitando com reserva e elegância a nossa pobreza. Caras a que, tenho pena, não sei agora dar nomes, com excepção do
Senhor Abreu e, evidentemente, do
Senhor Órfo, o Talho em pessoa, mas isso já é outra história...
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