Vinho na pipa
couves na horta
se não nos der nada
cagamos na porta
A casa do Sr. Carlos da Cantina, na Recta, tinha no portão um aviso que dizia, mais ou menos, "Atenção! Perigo! Propriedade protegida por arma de fogo!", e aquilo metia-me muito medo, arrepiava-me, não porque me passasse pela cabeça seguir a carreira de assaltante de residências, longe disso, a minha mãe batia-me, mas porque, na minha natural infantilidade e ignorância, eu ainda não ligava "arma de fogo" a espingarda, caçadeira, metralhadora ou pistola, mas a uma série de armadilhas explosivas e incendiárias que rebentariam sem dó nem piedade em todo o perímetro mal alguém ousasse sequer pôr o pé na vedação, por acaso alta e gradeada. Não haveria sobreviventes. Aquilo não era uma casa, era uma mansão, um cofre-forte ou quartel-general, com muito terreno à frente e hei-de crer que também atrás. Eu, ai ninas, mudava sempre para o outro lado da rua.
Portanto, para quem não soubesse que o Sr. Carlos da Cantina era um homem rico, muito rico, o aviso estava lá: - Sou! E é tudo para mim. Isto é: estão a ver o Marco Paulo? No que diz respeito a fortuna, cinjamo-nos a esse departamento, o Sr. Carlos da Cantina devia ser um bocado como o Marco Paulo, mas em careca. Filhos, não posso precisar se tinha ou não, não me lembro deles se os houve, pelo menos não foram das minhas relações, o que só lhes abonaria, mas sei que tinha um afilhado, que também se chamava Carlos, noblesse oblige, creio que morava frequentemente lá no palácio e foi meu colega de escola primária, na Conde Ferreira. Era um moço porreiro, o Carlos, e o que lhe estimo é o que para mim desejo.
A Recta é a Avenida de São Jorge e o Sr. Carlos era da Cantina porque era o responsável-mor pela Cantina da Fábrica do Ferro, grande negócio, uma mina, e era por isso que era rico, muito rico, porque todos os responsáveis da Fábrica do Ferro ficaram ricos, muito ricos, só os operários, evidentemente irresponsáveis, é que ficaram pobres, muito pobres, e se, pelo Natal e por vingança, algum deles, mais atrevido ou revolucionário, resolvesse saltar o muro do shangri-la do Sr. Carlos da Cantina tendo em vista, digamos assim, orientar uma braçada de couves-galegas para a panela da consoada, morria logo ali que se fodia, feito em picado como na Guiné, e essa imagem não me saía da cabeça.
Ainda por cima, uma vez, em Passos, isto é, em Basto, nas minhas inesquecíveis férias de Verão, vi uns rapazes a construírem uma verdadeira "arma de fogo", com um pedaço de madeira, um tubo, arames, pólvora, farrapos e varetas de guarda-chuva aguçadas, que eram as balas. Chamavam àquilo "espoleta" ou, realmente, "esporeta". Era para ir à caça, e foram. Um dos miúdos ficou cego de um olho, já não me lembro se derivado a explosão desorientada ou vazado pelo projéctil - meteu-me impressão, de qualquer maneira. E eu, tornando a Fafe e ao fort knox do Sr. Carlos da Cantina, imaginava milhares de varetas de guarda-chuva a rebentarem-lhe do quintal inteiro e a assobiarem os ares, como se fosse Senhora de Antime, mas flamejantes as varetas, certeiras e mortíferas na descida, levando tudo a eito, a ferro e fogo, desde a Parefa, sejamos razoáveis, pelo menos até ao tasco do Lando da Recta, no fim da mesma, onde a estrada começa a curvar e a descer para Armil. Uma carnificina extraordinária, espectacular, nunca vista em lado algum, nem mesmo no nosso Cinema, que, não desfazendo, era de tiro e queda e de caixão à cova. E a gente a morrer ali desalmadamente, sem tempo sequer para levar a caneca aos queixos.
Ora bem. O que eu digo é o seguinte: conheci muito bem o Sr. Carlos da Cantina e a sua imensa viatura, mas sou capaz de admitir que o filho da puta do letreiro de ponta e mola me tenha indrominado a mente a respeito do homem propriamente dito, que se calhar até era uma jóia de indivíduo, eu que é estou para aqui a fazer filmes. Admito, sim senhor. Em todo o caso, e pelo sim e pelo não, nunca lhe fui cantar os Reis ou as Janeiras, no tempo deles e delas. Eu, que era um solista requisitado por vários e afamados grupos, voz de anjo já com certificação seminarística, tinha medo àquele reclame armado em parvo, já disse, ali nunca ninguém me haveria de ouvir. Cagar-lhe à porta, talvez. Mais do que isso, não.
P.S. - A quadra lá de cima era cantada, em Fafe, no final das Janeiras e dos Reis, espécie de encore caso tardasse a abertura da porta e a moedinha da ordem. Era também um aviso, mas da parte de fora, uma ameaça, quem sabe se alguma vez consumada.