sábado, 31 de agosto de 2024

Meu rico menino

Foto Facebook Joe Biafra

Uma noite, altas horas, saíamos da casa de má fama ali para os lados da Estação e resolvemos passear descalços pelas ruas desertas e geladas da cidade. Não sei de quem foi a peregrina ideia, mas, de tão tola, decerto foi minha. Confesso que não me lembro do que pretendíamos exactamente provar, mas gosto de pensar naquele momento insólito como um ritual de fraternidade, a celebração de uma amizade antiga e inoxidável que nos ligava desde miúdos, apesar da evidente diferença de "estatuto social" entre as nossas duas famílias. Frequentara-lhe a casa - de rico, por assim dizer, e dizia-se assim naquele tempo. Dava-me o lanche, apresentou-me ao pão com manteiga e ao café com leite. Guiou-me pelos caminhos do rock. Ensinou-me os Queen, apesar das reservas. Emprestou-me "A Night at the Opera". Eu e a minha mãe deliciávamo-nos a ouvir "Bohemian Rhapsody" uma e outra vez, mais de vinte ou trinta vezes ao dia, no pequeno gira-discos francês que nos sobrara do meu pai. E ficou Queen até hoje, posto que non troppo.
Ali íamos, portanto. O Bertinho e eu. E, sim, era realmente liturgia, era festa. Glorificávamos a camaradagem desinteresseira e fiel. Éramos irmãos. Irmãos para toda a vida e depois. Ali íamos afinal iguais, ambos de pés descalços, com as botas e as meias pela mão, trocando memórias e partilhando o riso. Passávamos em frente à Câmara e parámos - éramos, penso-o agora, uma procissão, os dois. Se naquele precioso instante soltassem revoadas de pombas brancas por sobre as nossas cabeças e lançassem estrondosas girândolas de foguetes, creio que não nos espantaríamos. Nós éramos a Senhora de Antime, a festa inteira, em pessoa...
Escandalosamente generoso e bom, leal e presente, o Bertinho chamava-me "meu rico menino", e eu gostava. Eu gostava, meu rico menino!

(Já agora: Bob Dylan, aprendi-o com o Best noite dentro, em sua casa, no Lombo. Iniciei-me com "Hurricane" e sandes de fiambre, e talvez também cerveja.)

Atenção, muita atenção! Este texto, publiquei-o no dia 1 de Novembro de 2022. Hoje é Dia Internacional do Blog e celebro-o com o meu amigo. Os blogues são uma coisa muito antiga, praticamente do tempo dos romanos. Este meu blogue, Fafismos, é sobre Fafe, sobre as minhas memórias de Fafe, sobre os melhores de Fafe que eu conheci. Como o Bertinho. Escrevo outro blogue de vocação mais generalista, o Tarrenego!, são ambos blogues pessoais e intransmissíveis, mas assim do género facebook não tenho nada para oferecer. Sei que só perco, sou lido por meia dúzia de pessoas em Fafe e uma no Reino Unido, ninguém sabe quem eu sou nem como sou, e a esses todos eu esclareço: sou assim.

A morte da bezerra

Antigamente as tragédias aconteciam com mais assiduidade, ao contrário do que se apregoa agora por aí, e nem é preciso recuarmos ao terramoto de 1755 ou ao lamentável dia, no ano de 1128, em que o jovem Afonso Henriques bateu na mãe, Dona Teresa. Não. Basta centrarmo-nos na segunda metade do século passado, anos sessenta, setenta e pelo menos oitenta. Morria uma vaca e era uma tragédia. Ora as vacas, naquele tempo, morriam bastante, e nem estou a falar de matadouro e de talhos, de abates e de choupas. Morriam sem querer, as vacas, isto é, por exemplo esturricadinhas num palheiro que se incendiou sem mais nem menos, afogadinhas ou irremediavelmente escangalhadas no fundo de um poço sem guarda ou, até arrepia, abertas ao meio por um raio. E era uma tragédia.
Era uma tragédia porque a vaca, o boi ou o bezerro eram a riqueza única do pobre lavrador de microfúndio e Portugal era sobretudo isso. As vacas, permito-me generalizar assim, davam leite, faziam estrume, lavravam e aravam o campo, puxavam a água, transportavam as colheitas, ajudavam nas obras domésticas, acartavam pedra, erguiam muros, tinham a força de trabalho de um rancho de homens e mulheres, procriavam e, como se ainda fosse pouco, emprestavam o seu próprio calor ao jugo que as dominava, para, a seguir, talhar trasorelhos, eventualmente acabando vendidas na feira ou feitas em bifes, em todo o caso transformadas em indispensáveis notas de conto, e aí tudo começava outra vez.
Era desta maneira em Fafe, terra de pequenos e remediados agricultores, nas aldeias à volta, principalmente, mas também no centro da vila mesmo, como outro dia aqui contei. A única diferença era que em Fafe a vaca era baca e o boi, em raros momentos de preciosismo linguístico, era voi. Tirante essa irrefutável idiossincrasia, Fafe era como o resto do Norte rural: em cada casa, uma, duas vacas, quer-se dizer, uma junta, quando muito, para fazer parelha no carro, turinas às vezes, leiteiras em alguns casos. As vacas eram a fartura, o dinheiro em caixa, a garantia de vida dos nossos persistentes lavradores. As vacas eram-lhes tudo.
Agora imagine-se que lhes morria um animal, tantas vezes o único, num desastre daqueles ou por doença fulminante e desconhecida. O gado não estava no seguro, é claro, o dinheiro da CEE ainda não tinha sido inventado e era o que faltava que alguém se lembrasse de pedir uma indemnização ao Governo. Dá para imaginar, então, o rombo? Era um prejuízo que só visto, a ruína de repente, a miséria, a fome à espreita, a vida parada, como se fosse ali o fim do mundo.
Mas não era. Podia muito bem não ser. A salvação do nosso desgraçado lavrador estava agora no peditório. Isso, no peditório, que era uma instituição. O peditório que ele fazia de aldeia em aldeia, nas ruas da vila antiga, de porta em porta, apresentando o seu triste caso, a sua tragédia, suscitando simpatias, solicitando ajuda, o que pudesse ser. Não era estender a mão à caridade, não, aquilo era um mecanismo de solidariedade, automaticamente accionado. Fazia parte, em Fafe.
Notáveis lá da terra, cidadãos de honra reconhecida, dois ou três, incluindo geralmente o presidente da junta ou o regedor da freguesia, acompanhavam o lavrador nesta sua via-sacra, atestando com documentos e tudo a veracidade do infausto acontecimento e as dramáticas condições em que ficaram o azarado homem e respectiva família.
E as pessoas davam. O que podiam. E é curioso porque as pessoas de dentro de casa eram, regra geral, ainda mais pobres do que o homem desesperado que lhes batia à porta a pedir. Davam, e não se fala mais nisso. Os modestos donativos ficavam assentes numa folha azul de 25 linhas, registados, consultáveis, até chegarem, conta certa, para comprar uma nova cabeça de gado, nem mais um tostão, mas nunca mais ninguém queria saber do assunto.
Terão acontecido umas quantas burlas, trampolinices das antigas, isso certamente, vacas que afinal eram virtuosas senhoras, lavradores que nunca puseram os pés na terra e presidentes da junta da colaça. Mas também terão sido assim criadas verdadeiras segundas oportunidades de vida para pessoas honestas, trabalhadoras, merecedoras, de repente atingidas pela tragédia a sério, e que sem a ajuda dos outros, sobretudo dos seus generosos camaradas de pobreza, nunca mais se levantariam. E Fafe era também isto.

P.S. - Publicado originalmente em Novembro de 2023. Hoje é Dia Internacional da Solidariedade.

O princípio do mundo

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O que acontece em Fafe, fica em Fafe

As máquinas de flippers chegaram a Fafe creio que pelos finais da década de 70 do século passado e assentaram arraiais na exígua sala de bilhares do velho café Peludo, onde Serafim d'Eiteiro debitada pérolas filosóficas para jogadores momentaneamente ensandecidos. Fafe daquele tempo, sobretudo Fafe fora de horas, era uma terra de jogo, havia muito vício, muita batota. O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo exactamente. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao sapo, ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. Ateimava-se. A ateima também era um jogo. Jogava-se a tudo. E até se jogava ao pilas, como já por aí contei.
Queiramos ou não: Fafe era Fafe, um farol civilizacional, inapagável Las Vegas do vale do Ave hoje em dia com barragem e tudo, oásis de sorte e azar encravado entre a Póvoa de Lanhoso e Felgueiras, a zona de Basto, Vieira do Minho e Guimarães, consoante o lado por onde se lhe quiser entrar.
Os flippers chegaram a Fafe e foi uma febre medonha. Uma epidemia, descontrolada mas circunscrita. Eram sempre os mesmos, os do póquer, que eram os do bilhar, que eram os do dominó, que eram os das copas, agora apanhados pelo pinball, e apostava-se ali à rica e sempre com o dinheiro na mão. Os recordes, sucessivamente batidos, valiam belas maquias. Eram autênticos agarrados, constavam-se lares praticamente desfeitos. Era preciso marcar vez, havia quem pagasse por uma vaga, havia quem se esquecesse de ir trabalhar à tarde, só para não largar a máquina, deixando-a à mercê da concorrência. Não havia vida para além dos flippers, morava-se ali, ao som daquelas campainhas mágicas, sem mulheres, sem filhos, e ao fim da noite talvez também sem um tostão no bolso. Depois as máquinas foram embora, foi a sorte, ou então milagre, e os jogadores tornaram a casa, às mulheres e aos filhos, à vida real. Até que chegaram as consolas, os computadores e os telemóveis espertos...

P.S. - Publicado ontem no meu blogue Tarrenego!, a propósito do Dia Internacional do Gamer.

Um tubarão na sopa

Parecendo que não, isto interessa muito a Fafe, agora que Fafe tem o oceano da Barragem de Queimadela. Era uma notícia e a notícia tinha um título. O título tinha tudo para ser um bom título, tirando o facto de ser um título de merda. Dizia o jornal de referência: "Vale mais um tubarão no mar do que na sopa". Um tubarão na sopa? Um tubarão? Com cabeça e tudo? Ou a cabeça é para cozer à parte, com grão? Desculpem-me meter o bedelho, mas chamar a mosca ao assunto não seria mais credível? Quero eu dizer: mais vale uma mosca no ar do que na sopa. Isto é que está certo, ou não? É que os nossos pratos, ainda que peguemos nos sopeiros, ainda do tempo do Mário da Louça, são muito pequeninos. E cada vez mais. Por causa dos tubarões - os outros.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Tubarão-Baleia. Bom proveito!

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Sãos Joões há só dois, fora os outros

Foto Hernâni Von Doellinger
(Como toda a gente sabe - como ficou muito bem aprendido no filme "O Pai Tirano", o antigo, o verdadeiro, o de António Lopes Ribeiro que eu ainda conheci pessoalmente, o a preto e branco, o de 1941, o que tem mesmo piada -, como toda a gente sabe, dizia, há duas qualidades de botas de caça: as botas de caça pum e as botas de caça pim, Vasco Santana dixit. Pois, por estranho que possa parecer, com os Sãos Joões sucede exactamente o mesmo. Quer-se dizer.)

O azar do nosso São João, o Baptista, é não ter sido o outro, o Evangelista. O nosso São João era um bocado esquisito mas muito homem: profeta ambulante, vestia-se de peles de camelo, usava um cinto de couro, comia gafanhotos e mel e convivia muito bem com cabritinhos e cabritinhas. Clamava no deserto. Um deserto que inopinadamente tinha um rio chamado Jordão como o cinema de Guimarães, e foi ali mesmo, no rio que não no cinema, que João, o nosso, inventou o baptismo e baptizou o primo Jesus. O nosso São João era a Ana Gomes daquele tempo. Punha a boca no trombone sem pauta nem contenção e isso haveria de custar-lhe a cabeça, ainda nem chegara aos trinta anos. Os amigos do Baptista tinham uma certa vergonha dele e muito gosto na própria cabeça, e por isso deram-lhe o nome de código de O Precursor, para que não se soubesse de quem falavam quando falavam. Hoje em dia, o analfabetismo instalado chama-lhe O Percursor.
O São João que não é nosso, o Evangelista, era mais manso e teve uma vida flauteada. Morreu velho e de morte natural. Filho de Zebedeu, irmão de Tiago Maior e eventualmente sócio de André e Pedro no negócio das pescas, seria o mais novo dos doze apóstolos do Nazareno, segundo consta. De pescador quiçá analfabeto, fez-se teólogo e escritor. De evangelho e epístolas, apocalíptico então. Discípulo dilecto, João, o que não é nosso, era aquele a quem Jesus amava, o que se lhe aninhou no peito durante a Última Ceia, está nos retratos. O assunto continua a prestar-se, ainda hoje, às mais diversas e variadas.

No meu tempo de Fafe, quanto a santos populares, o São João era um hospital muito grande no Porto, felizmente com a camioneta da João Carlos Soares a passar-lhe à porta. Tínhamos, isso sim, o Santo António da minha rua, o São Pedro da Recta e creio que ainda frequentei o São Pedro da Granja. Quanto ao resto, deixai estar que está bem.
O mais que se sabia do São João eram uns versinhos muito antigos que certamente pertencem ao cancioneiro fafense e era de norma cantar à mesa na noite de passagem de ano, quando já estavam todos mais para lá do que para cá. Assim fazíamos na nossa família. Insisto, para quem não é de Fafe: fafense deve ler-se e dizer-se fafénsse. E os versinhos contavam mais ou menos assim:

O São João, ó dlindlindlim,
tem um carneiro, ó dlandlandlam,
com dois guizos no pescoço.
E quando toca, ó dlindlindlim,
o guizo fino, ó dlandlandlam,
também toca o guizo grosso.


Agora, quereis saber uma coisa sem pés nem cabeça, literalmente sem cabeça. É o seguinte: a 24 de Junho, com uma festa popular que começa logo a 23, o povo assinala em grande alegria o nascimento do santo, mas a Igreja Católica e outras tendências cristãs celebram no dia de hoje, 29 de Agosto, o Dia do Martírio de São João Baptista, ou a Decapitação de João Baptista, ou a Decapitação de São João Baptista, ou a Decapitação do Anunciador, ou a Decapitação do Precursor. Quer-se dizer: festeja-se a também chamada degolação do nosso São João. Valha-nos Deus! A Igreja faz da barbaridade uma festa, e não há maneira de ganhar juízo.

P.S. - É possível que, já de saída, eu possa ter presenciado os primeiros passos do que é hoje o grande São João da Fábrica do Ferro.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O princípio das coisas

Foto Tarrenego!

No dia 27 de Agosto de 1989, na Bulgária, José Garcia conquistou o bronze em K1 10.000, primeira medalha da canoagem portuguesa em campeonatos do mundo. Faz hoje anos.

Faziam-se homens e pronto

No meu tempo era mais fácil fazer homens. Levavam-se os rapazes às putas, mandavam-se os rapazes para a tropa, e estava o assunto resolvido. Hoje em dia a coisa exige outros mimos, ciência, psicologia, às vezes até cirurgia...

P.S. - Hoje é Dia do Psicólogo. No Brasil.

Meninas olhando o mar

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

A madama, o cão e o bebé

A madama tinha um cão ao colo e entre as pernas tinha, mas ao nível dos sapatos de tacão altíssimo, uma bolsa em poliéster com rede e design italiano. Era uma madama jovem, bela e produzida, esperável ao volante de um Porsche Cayenne e a lamber o telemóvel, e não ali, no banco do autocarro e a ser lambida pelo cão. O cão era a condizer: sucinto, peludo, de marca, transpirando pedigree por todos os poros. Uma fofura.
Era o expresso Porto-Fafe, praticamente cheio com malta da Universidade e lamentáveis frequentadores do Hospital de São João. Eu nem uma coisa nem outra, ia a Fafe dar um beijo à minha mãe. Portanto a madama e o cão e vice-versa, eu compreendia-os.
Sentia-se-lhes um orgulho mútuo, percebia-se uma relação muito bonita. Que ternura! A madama babada beijava o lingrinhas barbudo e o lingrinhas barbudo e babado beijava a madama babada. Beijavam-se na boca. Lambiam-se, se não me engano. A madama falava xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã e o fraldiqueiro não dizia nada mas apenas por ser cão e por gostar de festas nos genitais e não querer interromper a coisa. Realmente só lhe faltava falar, ao cão, como muito bem observou o autocarro em coro e até eu me comovi, eu que, confesso, mantenho um ancestral e desagradável contencioso com os canídeos de uma forma geral, e cuido que a culpa não é minha. A cena deu-me também um bocado de tesão.

A madama apeou-se na soturna e malcheirenta central de Guimarães, sempre com o cão ao colo, sempre xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã. Com a mão de vago, a madama pousou no passeio a bolsa em poliéster com rede e design italiano, abriu-a e retirou de lá de dentro um bebé de meses. Menino, vestia azul. Também era giro.

Se isto aconteceu mesmo assim? Bem..., podia ter acontecido.

P.S. - Hoje é Dia do Cão.

Venham daí esses ossos!

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 25 de agosto de 2024

Calar

Perguntam-me: mas afinal o que quer dizer calar? E eu respondo: calar quer dizer aceitável, menos mal, mais ou menos, podia ser pior, satisfatório, suficiente. Quer-se dizer: calar quer dizer regular, isto é, rigular, se ajuizado e dito em Fafe. Evidentemente.

O ouriço-cacheno

Perguntam-me: mas afinal o que é um ouriço-cacheno? E eu respondo, com todo o gosto: um ouriço-cacheno é um ouriço-terrestre, cientificamente chamado Erinaceus europaeus e também conhecido como porco-espinho, ouriço-cacho ou simplesmente ouriço. Quer-se dizer: um ouriço-cacheno é um ouriço-cacheiro se visto e dito em Fafe. Evidentemente.

sábado, 24 de agosto de 2024

O segredo da Albertininha da Lameira

Foto Hernâni Von Doellinger

Os melhores bolinhos de bacalhau do mundo eram os da Albertininha da Lameira, em Fafe. Contava a lenda que estes maravilhosos bolinhos eram moldados no sovaco da prendada cozinheira, o que lhes emprestaria aquele gosto tão peculiar. A vila antiga dava-se muito a estas lendas: dizia-se também, por exemplo, que os tremoços da Marrequinha da Recta eram a especialidade que eram porque a boa senhora lhes mijava na demolha.
A verdade é esta: ainda cheguei a ver a Albertininha, numa tarde de sábado, a fazer a massa dos famosos bolinhos, de alguidar entre as pernas, junto ao fogo da lareira, na cozinha asseada e sombria, mas a história do sovaco enformador afinal era uma treta - isso posso jurar, e tive pena.
Os bolinhos do Manel do Campo também eram de se lhes tirar o chapéu. E, de um modo geral, as pensões e os tascos de Fafe faziam gala de confeccionar e servir um produto, como agora se diz, fiel às origens e de altíssima qualidade. Esta tradição local creio que se mantém, em sítios como, veio-me agora a ideia à boca, o Fernando da Sede (Adega Popular). Os bolinhos de bacalhau com salada de feijão-fradinho e arroz do Fernando surpreendiam e encantavam os visitantes, e, para os da terra, eram uma esplêndida entrada para a vitelinha que haveria de vir. Mas isso, nos dias que correm, seria já refeição a pedir uma segunda hipoteca da casa.
É. Os bolinhos "de morrer por mais" são no Minho - bem o sabia mestre Aquilino. Em Fafe, é claro, mas também no Manuel Padeiro e no Gaio, em Ponte de Lima e em dias sim, ou no desaparecido Conselheiro, em Paredes de Coura, no tempo do saudoso amigo Vilaça Pinto, sempre. Em sítios assim, que os havia bons e tantos, e cá em casa também nos ajeitamos, mas não servimos para fora...

Os piores bolinhos de bacalhau do mundo eram em Penafiel, num pequeno café cujo nome não interessa. Três mesas, dois jornais, um balcão sumário e a simpatia imensa do dono. Os bolinhos eram tão maus, tão esplendidamente maus, que eu nunca falhava quando por lá passava a horas de aperitivar. Metia o pé no degrau da entrada, ao baixo, e saía logo meia dúzia de pedras de gelo directamente da arca frigorífica para a fritadeira de óleo cansado, que é "Para o senhor, para serem fresquinhos". Eu agradecia a deferência e reservava-me. Cinco minutos, não mais. As pedras de gelo vinham para a mesa a ferver e a pingar, agora em forma aparentada com a dos verdadeiros bolinhos de bacalhau, queimavam-me a boca e antes assim, que enganavam o paladar. Não sabiam ao bacalhau que não tinham, mas também não sabiam à batata que eram só. Escangalhavam-se ao toque. Eram extraordinariamente intragáveis e eu comia-os. Já disse: o patrão era gente boa e tinha três mesas e dois jornais diários no estabelecimento. Sei dar valor às coisas verdadeiramente importantes. Para apagar o incêndio, bebia uma taça de um obscuro vinho branco de cápsula que sabia a remédio mas não me fazia bem.
A minha mulher e eu descobrimos o cafezinho por acaso e levei lá três ou quatro amigos. Para provarem "os piores bolinhos de bacalhau do mundo", era o que lhes prometia, e os amigos depois concordavam comigo. Aqueles bolinhos nunca me deixaram ficar mal. Mereciam um prémio.
Até porque nos abriam horizontes. A seguir, íamos à Pita Arisca, em Lousada, comer talvez o melhor cabrito assado do mundo...

Os de Lisboa, lisboetas de gema ou simpatizantes, têm a mania de chamar "pastéis de bacalhau" aos bolinhos de bacalhau. Néscios! É como os pândegos dos franceses chamarem "fromage" a uma coisa que toda a gente sabe que é queijo e foi inventada em Ponte do Lima. Aqui atrasado, o Miguel Esteves Cardoso escreveu sobre bolinhos de bacalhau no jornal Público. O bom do Miguel nasceu na capital, estudou em Inglaterra e confessa que só muito recentemente é que descobriu a sério o Minho. Também ele chama "pastéis de bacalhau" aos bolinhos do mesmo, mas é o Miguel, está desculpado.
O jornal é que não. Lembro-me de uma vez em que o periódico da Sonae reuniu "dois painéis de jornalistas" da casa e "especialistas em gastronomia", um painel em Lisboa e outro painel no Porto, para provarem bolinhos de bacalhau comprados fresquinhos "em diferentes pastelarias nas duas cidades". A notícia dizia que o resultado foi uma desilusão completa: as amostras recolhidas revelaram-se todas incompetentes.
Mas de que é que estariam à espera os ilustres paineleiros? Bolinhos de bacalhau em Lisboa e no Porto? E em pastelarias e cafés, percebi bem? Panikes e croissants com chocolate, isso é que os dois comités de sábios deviam ter provado. Pedissem eles arroz de grelos, pastelões de petinga, pataniscas ou caldo de nabos, e seria o mesmo desastre. Os cafés e as pastelarias do Porto e de Lisboa não são para esses preparos. Vá lá, o caldo de nabos... talvez.

Agora. Hoje são "os 21", em pleno Agosto, dia maior das Festas em Honra de Nossa Senhora da Saúde, ou Festa da Lameira, "Lameira de Agosto" ou simplesmente Lameira, que pertence à freguesia do Rego, ou São Bartolomeu do Rego, Celorico de Basto, mas para os velhos fafenses era e é como se fosse Fafe. Antigamente, neste dia, havia por lá uma valente feira de gado, e uma vez uma vaca espantou-se não sei com quê, soltou-se do sítio onde estava a guardar e correu o arraial inteiro de uma ponta a outra a espalhar o pânico e o caos em direcção à Pica, escornando e escoiceando a torto e a direito, desfazendo tendas, barracas e ornamentações, invadindo tascos e casas sérias, saltando para cima de carros e outros veículos mais ou menos motorizados e levando à frente aquele povo todo, aflito e tolo que não sabia aonde se havia de meter, anjinhos e mordomos incluídos. Eu, muito bem entrincheirado, ri-me como um perdido. Quer-se dizer: a coisa não constava do programa, mas foi uma bonita tourada...

P.S. - Publicado aqui originalmente em Setembro de 2022 e republicado, assim acrescentado, no meu blogue Tarrenego!, na passada quarta-feira, 21, dia da Lameira de Agosto.

Se uma gaivota viesse

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O borra-botas e o cagão

O borra-botas e o cagão. Cuidado, estamos de momento em terreno deveras escorregadio. Muito cuidado! Elaboramos aqui a respeito de dois conceitos aparentemente correlativos - quero dizer, o borra-botas, antes de o ser, é cagão, e o cagão, após sê-lo, é borra-botas, há quem pense -, mas não é necessariamente assim. Vejamos:
Borra-botas, o substantivo, posto que começou por significar, inocentemente, engraxador, ou, sejamos compreensivos, engraxador desastrado, espécie de expressionista abstracto do rez-de-chaussée, é nome que hoje em dia define indivíduo sem valor, pessoa insignificante, reles, desprezível, safardana, bisbórria, biltre, patife, salafrário, bigorrilha, pulha, bandalho, pobre diabo, trapalhão, troca-tintas, zé-ninguém, zé-dos-anzóis, zero-à-esquerda.
Debrucemo-nos agora sobre o cagão. O cagão é, para início de conversa, o indivíduo que defeca com entusiástica frequência e notoriedade, ou, se for em Fafe, a criatura que se peida regularmente e por uma questão de princípio, mas o termo passou também a servir para identificar o homem medroso, caguinchas, medricas, cagarola, ou, por outro lado, o vaidoso, o presunçoso, o arrogante, o snobe, o pedante, o gabarola, o armante, o enfatuado, o figurão, o cabeçudo, o tem-a-mania. E este é que é o ponto...

A menina das gaivotas

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O ferrencho e a folheta

Entendamo-nos. Folheta é pequena folha, folha muito delgada que se põe debaixo do engaste das pedras preciosas, palheta, folha-de-flandres, folha de latão, lata, chapa. Se a folheta for velha, muito velha, ferrugenta, escangalhada e mínima, então também é ferrencho. Porque ferrencho é ferro pequeno e ordinário, qualquer ferro, pedaço de metal ou lata estragado e imprestável. Isto é: ferrencho, com o "é" bem aberto e o "ch" reforçado, é ferrancho se pensado e dito em Fafe. Ferrencho velho.

Bonda!

Perguntam-me: mas afinal o que quer dizer bonda? E eu respondo: bonda quer dizer avonda, chega, basta, e diz-se, por exemplo, quando alguém nos está a deitar vinho no copo e, a meio, nós achamos que já é suficiente. Isto é: "bonda!" quer dizer "pára!", se pensado e dito em Fafe. Evidentemente.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Eu trigo-me, tu trigas-te, ele triga-se

Foto Hernâni Von Doellinger
Biju, papo-seco, carcaça, molete, pada ou trigo, consoante a região de origem e a idade de cada qual. Assim se chamava e parece que ainda se chama ao pão pequeno, arredondado, regra geral de risca ao meio e feito à base de farinha de trigo. Em Fafe aprendi-o biju e trigo, sobretudo trigo, e é o que me tem bastado até hoje: vou à padaria e peço cinco trigos, se faz favor. Riem-se e eu acho muito bem, porque rir é porreiro, desopila, embora também possa ser sinal de ignorância e estupidez natural. Em Fafe aprendi, ainda por cima, o verbo trigar - ou, talvez melhor dizendo, trigar-se -, que, naquele pedaço baixo-minhoto rural e de entranhável confluência galega, Monte Longo e Basto, significava acanhar, constranger, envergonhar, intimidar, embaraçar, coibir. Dizia-se, por exemplo, "Ande lá, não se trigue, tire mais um bocadinho de presunto!", ou então, "Nem consegui dizer ao que ia, triguei-me...", e eu achava um piadão àquilo. Ao presunto, quero dizer.

Malagueña salerosa

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Os bês pelos bês

Aos de cá de riba, os que aqui bibemos resbés com o pai Minho e com a parentela galega, acusam-nos regularmente de trocarmos os bês pelos bês. Que, por exemplo, dizemos bergonha em bez de bergonha, biolência em bez de biolência, baca em bez de baca, pobo em bez de pobo, bírgula em bez de bírgula, bizinho em bez de bizinho, berde em bez de berde, ou binho em bez de binho. E que, pelo contrário, dizemos boi em bez de boi, beringela em bez de beringela e bicha em bez de bicha. Eu nunca dei fé de semelhante, a berdade é só uma! Acho que quando é bê dizemos bê e quando é bê dizemos bê, ebidentemente - de resto como toda a gente, que não somos menos do que os outros no que diz respeito ao falar e à gramática. Quanto à crítica propriamente dita, das duas, uma: má bontade ou mau oubir, debe-se aberiguar.

Vai fermosa e não segura

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

A tona

Perguntam-me: mas afinal o que quer dizer tona? E eu respondo: tona quer dizer pele ou casca de fruto, sobretudo laranja se for em Fafe. Tona é uma camada fina, película, é rolha tipo batoque, ave do Brasil e embarcação de transporte goense. É a superfície, mergulha-se e vem-se à tona, é o sítio da verdade que se descobre como azeite sobre a água. Em fafês correcto, antigo, tona diz-se "tóna", e não "tôna". Tona é também a mulher do Tono.

Fotografia: arma de amor

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 18 de agosto de 2024

O moncoso, o ranhoso... e o piolhoso

Moncoso e ranhoso. Conceitos sinónimos, porém idiossincráticos. O moncoso é o tipo dos moncos ao dependuro, sujo, imundo, badalhoco, ranhoso - cá está -, asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil. Um bandalho, um pulha, um bardamerda.
Por outro lado, o ranhoso é o tipo que tem ranho, ranhento, ranhenta, moncoso - cá está -, teimoso, astuto, foleiro, reles. O verdadeiro filhodaputa.
Moncoso e ranhoso são nomes que se chamavam antigamente. Em Fafe chamavam-se muito. Eram nomes ofensivíssimos, do piorio, ao nível, por exemplo, de... piolhoso. Mas isso já é outro assunto.

Nel blu dipinto di blu

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 17 de agosto de 2024

O pinto-calçudo e o caga-na-saquinha

São dois conceitos completamente diferentes, embora não falte por aí quem os confunda, por distracção ou evidente ignorância: pinto-calçudo e caga-na-saquinha. Vejamos: o pinto-calçudo é o rapazinho que começou a usar calças compridas e as calças colam-se-lhe às pernas, mas também pode ser o indivíduo mal-ajambrado que, por exemplo, veste calças estreitas e ridículas, nomeadamente zangadas com os sapatos - como por caso agora é moda nova; quanto ao caga-na-saquinha, é uma criatura medrosa, triste, insignificante, e ponto final.
Portanto, pinto-calçudo e caga-na-saquinha, duas filosofias de vida essencialmente diversas: o pinto-calçudo é uma coisa, questão de aspecto, e o caga-na-saquinha é outra coisa, questão de carácter. Evidentemente há quem acumule. Isto é: quem seja, por um lado e por outro, pinto-calçudo e caga-na-saquinha. Em Fafe tínhamos disso.

Serei-a? Serás-a!

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Os filósofos fafenses

Eu ouvia-os. Ouvia-os atentamente. E aprendia. O Sr. Ferreira do Hospital, o Sr. José do Santo, o Lininho Leite, o David Alves, o Zé Manel Carriço, o Mola, o Sr. Lem, o Landinho Bacalhau, o Sr. Aristeu da Loja Nova, o Aristides Carteiro, o Tónio da Legião, o Sr. Saldanha, o Cunha da Fazenda, o Zé de Castro, o Manel da Pinta, Nélson Fafe, o Guia, o Júlio Barbeiro, o Zé do Registo, o Quinzinho da Farmácia, Nelinho Barros, o professor Alberto Alves, o Carlos Alberto, o Pimenta, o Toninho da Luísa, o Varinho Dantas, Serafim d'Eiteiro. Era. Eu ouvia-os. Atenta e reverentemente. E aprendia vida. Mas ainda não sabia que eles eram filósofos.

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Serafim d'Eiteiro, filósofo da hora de almoço

Serafim d'Eiteiro tinha uma sombria loja de fazendas em Cima da Arcada, por baixo do Club, e era homem de voz grave e piada fina, um figurão. O apelido "d'Eiteiro" suponho que fosse natural corruptela de "do Outeiro". Lugar do Outeiro, Antime, donde creio que era este ilustríssimo fafense, ou seriam pelo menos os seus ancestrais. Serafim do Outeiro igual a Serafim d'Eiteiro, assim terá decidido o povo, na sua provecta e indesmentível sabedoria - mas estou a deitar-me a adivinhar.
Alto, magricela, de fato todos os dias, Serafim d'Eiteiro frequentava a sala das traseiras do Peludo, onde, após almoço, se jogavam umas bilharadas iglantónicas. Aquilo era coisa constada, só para artistas diplomados e (aqui que ninguém nos ouve) até metia apostas a dinheiro, reunindo sempre uma pequena multidão de espectadores dados ao palpite e a gozar o parceiro. Um mundo! Em Fafe era assim.
E uma vez foi demais. Eu era puto e estava lá. Um dos jogadores, desgraçadamente em dia não e alvo único e reiterado da chacota geral, perdeu de repente as estribeiras e, varando com os olhos a plateia ali à roda, atirou, cheio de raiva e perdigotos: - Ide todos para o caralho! Todos...
Mas nisto encarou o respeitável comerciante, pessoa de outra idade e estatuto, teve um rebate de consciência e resolveu abrir uma honrosa excepção: - Todos, não. Faz favor de desculpar, senhor Serafim, não é para si -, corrigiu o bilharista azarado e despeitado porém atencioso, botando giz no taco.
Sentado logo à entrada depois do degrau, lado esquerdo, no canto por baixo do velho rádio Philips dos relatos domingueiros, Serafim d'Eiteiro disfarçou um sorriso maroto atrás do fumo do ininterrupto cigarro sem filtro e respondeu naquela maneira vagarenta de falar que dava ares de sabedoria: - Muito obrigado pela deferência, mas aqui sozinho é que eu não fico. Se o amigo não leva a mal, eu também vou...
E era assim a vida.

P.S. - Hoje é Dia do Filósofo, que, tanto quanto percebo, não é assinalado em Portugal.

Descansar arma

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Ia-se ao Largo ver os retratos

Houve um tempo em que as fotografias eram tiradas por fotógrafos. Fotógrafos profissionais, competentes, conhecedores, eficazes regra geral, artistas às vezes. Por outro lado, nesse tempo ainda não havia telemóveis e portanto, quando era preciso falar com alguém que não estivesse presente, ligava-se da máquina fotográfica, nada mais simples. Os antigos sabiam tudo e antigamente é que era, estou farto de dizer. Naquele tempo tínhamos dois fotógrafos e nevava em Fafe. Não era preciso ir mais longe. Em Fafe, mesmo no centro da vila. Não era necessário alongar vistas para os cumes da Lameira ou da Lagoa e sonhar modestas aventuras impossíveis. Era ali nas nossas mãos, aos nossos pés, a realidade. O nosso Santo Velho pintava-se de branco, contavam-se os centímetros de altura do "nevão", faziam-se bonecos, pelo menos boneco, com nariz de cenoura e tudo, declaravam-se guerras de bolas de neve, ensaiavam-se trambolhões de criar bicho, chorar era proibido, ou levávamos no focinho.
Os campos nas traseiras da nossa casa, onde hoje está o Pavilhão Municipal, encontravam-se de vago e enchiam-se de moçarada brincalhona e apressada, porque a neve era efémera e sabia-se lá quantos anos depois estaríamos outra vez à espera que ela tornasse. Lembro-me de uma ocasião, um acontecimento: o Foto Victor com os filhos a fazerem uma festa tremenda, e o Foto Victor a tirar retratos atrás de retratos, fotografias sorrateiramente alpinas que depois expôs, algumas, nas montras da loja em frente aos Correios. Foi um sucesso.
Fafe também tinha disto, nomes assim, esdrúxulos. O Sr. Victor era fotógrafo com porta aberta e o estabelecimento chamava-se Foto Victor. Portanto o Sr. Victor passou a chamar-se Foto Victor. Aliás, como o Foto Jóia, mas este no Largo, à beira do Talho, do Romeu e do Fernando da Sede. Foto Jóia era simultaneamente o nome do "estúdio" e do seu proprietário. "Vem aí o Foto Jóia!", dizia-se, e era a coisa mais natural do mundo.
Curiosamente, nunca apanhei o Foto Jóia no meio da neve, mas lembro-me de que foi ele quem me fez as fotografias para o meu primeiro bilhete de identidade, que era preciso para irmos para França ter com o nosso pai, mas acabámos por não ir, porque o nosso pai morreu no Natal antes da viagem programada e a minha vida deu então esta volta que é assim.
Fafe era uma terra compacta e tudo acontecia no Largo. A feira semanal, a feira das cebolas, os 16 de Maio, a Senhora de Antime, a Volta a Portugal, cortejos alegóricos, corsos de carnaval, batalhas de flores, circos de manga curta, robertos, gincanas automóveis, corridas de patins, corridas de jericos, corridas de São Silvestre, passagens de ano, dias dos combatentes, desfiles da Mocidade e da Legião Portuguesa, partidas para a guerra. Era tudo ali. O Largo era o centro, o Largo era Fafe. Nas ruas e nos lugares das redondezas dizia-se "Vou a Fafe", querendo dizer que se ia ao Largo.
As lojas dos dois fotógrafos, os seus escaparates, eram locais sagrados de peregrinação na vila de antanho. Aos finais de tarde ou no fim-de-semana, era à pinha. Era famoso o átrio do Foto Jóia. Ali se ficava a saber quem casou, os padrinhos e convidados, quem baptizou, os padrinhos e convidados, quem tirou retrato novo mais ou menos atiradiço sabe-se lá com que fim, amiúde para mandar para a guerra. Ali se revelavam namoros a estrear, paulnewmans de trazer por casa, misses que nunca seriam. As bodas de ouro, as juras de amor, o fato feito por medida, o carro na rodagem, a filha recém-doutora, a vida dos outros ali escarrapachada atrás do vidro impenetrável, na arte exigente e discreta do preto e branco ou no exagero quase pornográfico da cor, novidade em folha. A vida retocada à mão, porque o photoshop ainda não tinha sido inventado. Era. Ainda faltavam muitos anos para a javardice dos reality shows e para os despudores de todos os facebooks, mas não estávamos mal servidos...
Havia uma certa rivalidade entre o Foto Victor e o Foto Jóia, e, estranhamente, também entre as respectivas clientelas, coisa sem sentido, nós éramos Foto Jóia!, mas Fafe tinha essa mania de ser terra de antagonismos pascácios, com os dois grupos de futebol - o Sporting Clube de Fafe e o Futebol Clube de Fafe -, que já não são do meu tempo, com as duas bandas de música - Revelhe e Golães -, que persistem, com a Escola Industrial e o Colégio, com o PS de Fafe pim e o PS de Fafe pam e o PS de Fafe pum, isso para além da Rua de Baixo e da Ponte de Ranha, que de vez em quando também faziam faísca e, noblesse oblige, andavam à coiada. Uma coisa é certa, porém: Foto Jóia e Foto Victor frequentavam ambos o Nacor, o que, já agora, só lhes abona a respeito, e não me consta que haja notícia de confrontos ou baixas a registar.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Agosto de 2023. Hoje é Dia Mundial do Fotógrafo, que há quem diga que é mais propriamente na próxima segunda-feira, chamando-se-lhe então Dia Mundial da Fotografia.

Olha o passarinho!

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Há palavras com piada fina

Gosto de nomes, gosto do falar antigo, gosto das palavras. Gosto de palavras com piada fina, palavras como parreca, como esbraguilhado, como caguinchas, como cachicha, como peneirento, como pinante. Palavras à moda de Fafe. Mas ainda gosto mais de palavras desalinhadas, subversivas, fora-da-lei. Palavras universais, matreiras e despudoradas. Gosto de palavras que não são o que parecem. Aprecio especialmente as palavras que violam a ordem estabelecida, provocadoras, palavras que viram a norma de pernas para o ar e a abusam, como por exemplo, sem ofensa para os presentes, solhão, cordão, pontão, estradão, picão, mosquetão, cartão ou calção.
Cá está. Cá estão: solhão, cordão, pontão, estradão, picão, mosquetão, cartão e calção, palavras rematadas com o famoso sufixo "ão", unanimemente considerado pelos mais reputados gramáticos como um dos sufixos por excelência para a formação de aumentativos. E, no entanto, para quem sabe das coisas, solhão é uma espécie de solha mais pequena, cordão é uma corda de bolso, pontão é uma pontinha sobre um ribeiro, estradão é uma estrada estreita e geralmente em terra esburacada, aliás conveniente para ralis, picão é uma picareta diminuta, ferramenta de mineiros, mosquetão é mais curto que mosquete, cartão é menor que carta e calção é cueca ou calça curta. São excepções que, como se diz, confirmam a regra? Não, pelo contrário: são palavras que querem que as regras se fodam.
Evidentemente a palavra pilão levar-nos-ia muito mais longe. Mas fica para a próxima aula.

P.S. - Apontamento publicado originalmente no dia 29 de Setembro de 2022. Lembrei-me dele a respeito do "Nostradamus, vostradais, elestradão"...

E foram felizes para sempre

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Nostradamus, vostradais, elestradão

Nostradamus, estão a ver? Se não estão a ver, pensem em Orson Welles e chegam lá. Ah!, também não estão a ver Orson Welles. O grande realizador e actor americano, a voz potente, a presença imensa, o "Citizen Kane", o pregador de partidas que, em Outubro de 1938, transmitiu a versão radiofónica da "A Guerra dos Mundos", de H. G. Welles, simulando uma reportagem em directo sobre a invasão da Terra por marcianos, e os americanos, que acreditam em tudo, até no Trump, caíram que nem patos e o medo paralisou pelo menos três cidades e o pânico tomou conta de várias localidades próximas de Nova Jersey, onde o programa era feito e onde, faz de conta, o ataque começara. Ainda nada? Também não interessa, eles são realmente muito antigos. Michel de Nostredame, aliás, foi um boticário e médico francês da Renascença que praticava muito bem a alquimia e rondava satisfatoriamente o ocultismo e a astrologia. Escreveu um famoso livro em versos intitulado "As Profecias", o qual, como o próprio nome indica, conteria previsões codificadas acerca do futuro, e tão codificadas seriam que só alguns muito poucos é que continuam a acreditar naquelas cousas sem sentido. Ou, a posteriori, com o sentido que se lhes quiser encaixar.
Eu sou de Fafe. Com muito gosto! E a sina, em Fafe, era lida por umas senhoras ciganas às quartas-feiras em cima da Arcada, sempre com um olho na mão e outro na polícia. A alternativa mais académica e legal era a balança colocada à porta do "escritório" das camionetas do João Carlos Soares, mesmo em frente ao Café Avenida. Subia-se para a balança, metia-se a moeda e saía um cartãozinho com o peso mais ou menos e o horóscopo resumido. Quem não ficasse satisfeito, era só pesar-se outra vez e o futuro mudava imediatamente. O peso às vezes também...
Nostradamus, nome latino e artístico, padecia de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. Se a isto tudo somarmos a habilidade para a leitura dos astros e das cartas de tarô, facilmente perceberemos que o artista viveu e morreu antes do tempo. O nosso Miguel seria o convidado ideal, diário, bidiário, ou talvez até terciário, para todos os programas das manhãs e das tardes das televisões generalistas portuguesas de hoje em dia.
A mais eficaz profecia de Nostradamus acabou por ser, lamentavelmente, a do seu próprio falecimento. Em 1566, dia 1 de Julho, inesperada véspera do definitivo dia 2 de Julho, estava o profeta cada vez mais à rasca derivado ao dramático agravamento da gota e da artrite, chamou o seu secretário e, entre trovões e relâmpagos e talvez sarças ardentes de febre, disse-lhe o que já lhe dissera mais do que uma vez: de amanhã não passo. E finalmente acertou.

(Agora. Aqui que ninguém nos ouve: Renascença não quer dizer Rádio Renascença, é outra coisa. Registe-se, por outro lado, que o escritor britânico H. G. Welles, autor de "A Guerra dos Mundos" e a quem chamaram "pai da ficção científica", morreu no dia 13 de Agosto de 1946, faz hoje anos. E pronto, tanto relambório para chegar a isto, a este claustrofóbico entre parênteses. Se fosse eu, também não lia!)

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Juventude em delírio

Foto Victor (suponho)

Éramos os seminaristas de Fafe naquele ano não sei qual, algures pela primeira metade da década de setenta do século passado, se não me engano. Éramos os padrecas. Não me lembrava do retrato, que me chegou às mãos aqui atrasado através do meu cunhado Álvaro, o homem que fazia as melhores punhetas de bacalhau do mundo, e eu tenho muitas saudades dele. Soube então que foi o cónego Leite de Araújo - senhor abade, senhor arcipreste ou senhor cónego, consoante a época - quem nos juntou e levou ao fotógrafo para a posteridade. O nosso padre tinha muita vaidade em nós, embora talvez nem lhe fornecêssemos consistentes razões para tanto. Por outro lado, também não sei o que é feito daquela juventude ali toda sem sorriso, numa compostura ou talvez tristeza de meter dó. Tínhamos decerto sonhos, mas, se os tínhamos, realmente não os mostrávamos. Nem os sonhos, nem os dentes. Já agora: na fotografia, eu sou o. Esse, exactamente.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Juventude.

A montanha pariu um rato

A montanha pariu um rato. Pfff... Que miséria, realmente. Se ainda ao menos parisse um elefante! Ou dois - que incomodam muito mais...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Elefante.

domingo, 11 de agosto de 2024

O melão do meu avô da Bomba

O melão era um acontecimento. Celebrava-se uma vez por ano, por alturas da Lagoa, se não estou em erro, e o mestre-de-cerimónias era o meu avô da Bomba, um adivinhador de melões como decerto não haveria outro de semelhante calibre nas redondezas, e quando por acaso não acertava, o que acontecia com lamentável frequência, a culpa era evidentemente do melão. Os melões, é que o têm, só se sabe se são bons depois de abertos: o meu avô nunca se enganava, os melões às vezes é que não correspondiam...
Ia-se à Lagoa por tudo e mais alguma coisa. Ia-se para pôr a santa na cabeça, para fazer a barba e cortar o cabelo nos barbeiros abancados debaixo das árvores do largo em frente ao santuário, ia-se para ver o ambiente, para apanhar icónicas borracheiras, para fazer compras escusadas, para ouvir as bandas de música, para ver a procissão, para dar um pezinho de dança, para cantar ao desafio, ia-se para empernar e apalpar rabos e mamas, ia-se por ir ou simplesmente para andar à pancada, ia-se apenas para apartar um melão, numa fugida, e era esse, enfim, o caso do meu avô da Bomba.
Em casa, nos Bombeiros, eram chamados os maiores especialistas em melão de Fafe, isto é, os três ou quatro melhores amigos do meu avô, os do costume, os mesmos que também eram os maiores especialistas em canários e pintassilgos de Fafe. A minha avó punha a mesa como um altar, só para homens. O melão ao meio, resplandecente e prometedor, qual sacrário por revelar.
Fazia-se silêncio. Sentia-se uma certa comoção na sala. Como seria este ano? O meu avô tomava a faca num gesto largo, teatral, levantava-se, suspirava e abria o melão. Oh!... Havia uma primeira reacção, à cor, ao sumo, ao cheiro, eram peritos realmente, abanavam a cabeça, reviravam os olhos, trocavam monossílabos lá de entendidos, e seguiam para a prova propriamente dita, da boca para dentro, e que sim senhor, e que nem mais cedo nem mais tarde, maduro no ponto, apimentado, uma especialidade, um assombre, uma primeirinha, abençoadas mãos que o souberam escolher.
O meu avô ficava num sino, agradecia os encómios, explicava a técnica, desvendava o segredo, exultava de falsa modéstia e, sem mais nem menos, aproveitava para contar as suas duas anedotas. Era sagradinho. Desde que não soubesse descaradamente a botefa, o melão do meu avô da Bomba era sempre um sucesso, os elogios dos velhos expertos estavam garantidos e todos os anos o melão deste ano era ainda melhor do que o melão do ano passado. 
O único problema era a despesa. O meu avô passava a merenda inteira a chorar os quinze merréis que dera pelo estupor do melão, a ver se alguém se chegava à frente com qualquer coisinha para a ajuda ou então para ter pé para cobrar aos amigos pelo menos a pinga de vinho que acabara de lhes oferecer...

P.S. - Publicado anteontem no meu blogue Tarrenego!, assinalando o Dia Internacional do Melão.

Bom vento...

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 10 de agosto de 2024

Daniel, dos leões às causas sociais

Daniel foi mediano profeta e consta da Bíblia no, exactamente, Livro de Daniel. Também lhe chamaram Beltessazar, mas um nome assim era uma desgraça para o marketing e foi imediatamente esquecido. Daniel trabalhou na Babilónia como vidente e porventura cartomante, interpretando sonhos e visões, e tinha três amigos esquisitamente chamados Sadraque, Mesaque e Abednego. Foi também domador de leões, com um anjo como partenaire, dando início a essa lamentável tradição circense.
Estabeleceu-se em Fafe, com loja de fazendas, malhas, pronto-a-vestir e moda em geral, mesmo ao lado da tipografia do Sr. Dias do Tribunal, e dedicou-se discreta e afincadamente às causas sociais. A fama chegou-lhe apenas em 1972, quando entrou numa canção de Elton John.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Leão.

A nossa esfera armilar

Carlota Joaquina, Teolinda Joaquina de Sousa Lança (aliás, Linda de Suza), Joaquina de Vedruna, Mariana Joaquina Apolónia da Costa Pereira de Vilhena Coutinho, Joaquina Lapinha, Joaquininha, a minha sogra, e a Quininha "Varandas", de Fafe. Sete Quinas, exactamente. O rapaz tem razão.

A este respeito, devo, porém, acrescentar o seguinte: eu fui como o Governo, no meu tempo também tive uma vaidade muito grande na nossa esfera armilar, a qual esfera, derivado a chamar-se exactamente assim, armilar, só podia ter sido inventada talvez pelos romanos em Armil, era o que eu achava, até porque a História de Portugal e até de outros países passou-se quase toda aqui em Fafe, basta ver as batalhas de São Mamede e de Castillon, para não irmos mais longe. Agora imaginem o meu desgosto quando me disseram que não...

Uma no cravo, outra na ferradura

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

O camurro

Os dicionários mais profundos admitem que camurro é o mesmo que casmurro. Isto é, teimoso, obstinado, sorumbático, macambúzio. Ou o mesmo que camurrão. Isto é, enfocinhado, mal-encarado, enfadado. Os dicionários às vezes parecem tolos, inclusive os mais profundos. Não. Camurro não é aquilo! Camurro é o rapaz que não aprende nada na escola, o moço que não tem jeito para os livros. Isto é, o cabeça-dura, o tapado, enfim, o burro. Quem for de Fafe e antigo, sabe muito bem...

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

"Memórias da Ditadura", em Fafe


O livro "Memórias da Ditadura - Sociedade, Emigração e Resistência" é apresentado amanhã, sexta-feira, 9 de Agosto, pelas 21h30, no Salão Nobre do Teatro-Cinema de Fafe.
Esta edição bilingue, realizada com o apoio institucional da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril, é concebida pelo historiador Daniel Bastos, a partir do espólio inédito de Fernando Mariano Cardeira, e traduzida por Paulo Teixeira.
A iniciativa, antecedida pela inauguração de uma exposição fotográfica de Fernando Mariano Cardeira, alusiva à emigração portuguesa dos anos 60, que será protocolarmente doada ao Museu das Migrações e das Comunidades, integra-se na Festa do Emigrante que decorre de 2 a 10 de Agosto, em Fafe.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Faltou-nos o breakdance

Nasci no Santo Velho. Na minha rua, que era um largo de liberdade e agora é dois cruzamentos com semáforos, saltávamos à corda e a fogueira, jogávamos ao espeto, ao pião, à macaca, ao mamã-dá-licença?, ao esconde-esconde, à cabra-cega, às sameiras, ao moche, à coiada e ao tene. Infelizmente não jogávamos ao breaking, senão estaríamos agora em Paris a lutar por uma medalha...

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

De fanico para a Lagoa

Foto Município de Fafe

Fanico. Isto é, migalha, pedaço muito pequeno, lucros insignificantes, ganhos mínimos e obtidos a custo. Ou por outra, chilique, desmaio, perda momentânea dos sentidos, ataque nervoso. E ainda, prostituição.
Fanicar: andar ao fanico, andar em busca de pequenos lucros, andar na má vida, fazer da prostituição modo de vida, biscatar, perder os sentidos, desmaiar, entrar em cri kise, por assim dizer, histérica.
Fanicar ou fazer em fanicos era também lascar, esbotenar, partir em bocados, pôr em fanicos, cá está. No jogo do pião, havia o pião das nicas, sem real utilidade desportiva, diga-se, porque já velho e eventualmente mutilado, mas era o que servia para apanhar as penalizações da ordem, dadas geralmente com uns piões gigantes, gorilas, com bico grosso ou bico de lança. Eram fanicos aquelas pancadas, porque o pião sofredor ficava nicado, ferido, picado, quer dizer, fanicado. Era o desgraçado de serviço. Em sentido figurado, humanizado, o pião das nicas é o indivíduo em quem todos mandam e a quem todos responsabilizam, o chamado bode expiatório - e assim explicado é fácil perceber porquê.

Ora bem. Por alturas da Lagoa, quero dizer, da romaria da Senhora das Neves, na última sexta-feira de Agosto, o povo de Fafe subia à serra para pôr a santa na cabeça e tirar o diabo, está lá um funcionário com essa incumbência. Do centro de Fafe ao santuário da Lagoa são pouco mais de 12 quilómetros, pelo Passadouro. O povo é tolo, mas não ia a pé. Os automóveis ainda eram um luxo em Fafe e portanto ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento, do outro lado do então posto da GNR e de umas bombas de gasolina, que também lhe pertenciam, à garagem. Nessa enorme garagem, lá para os seus fundos e talvez anexos, construíram-se gloriosos carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era periclitante e cinzenta a carreira, camionetas velhas, asmáticas e malcheirosas que, no dia da festa, faziam fanico para a Lagoa e vice-versa.
Isso, andavam ao fanico, faziam fanico, era assim que se dizia, e estamos de volta ao que nos interessa. Fazer fanico, para os autocarros, significava trabalhar sem horário avisado ou pré-estabelecido. As camionetas arrancavam, numa ou na outra direcção, quando estivessem cheias, a esbordar sempre que possível. Saíam da "Empresa" carregadas de gente mais ou menos sóbria, largavam a carga na Lagoa, esperavam pelo enchimento seguinte num terreiro aparelhado à pressão no meio do monte, à torreira impiedosa do sol, e regressavam a Fafe quando calhasse e a rebentar de gente regularmente bêbada da cabeça aos pés.
Era um ramerrame combinado. Iam e vinham, iam e vinham, os autocarros. Iam e vinho, iam e vinho, os passageiros.
Ao fim do dia, no desmanchar da feira, com o sol a pôr-se lá para os lados de Guimarães, o descampado enchia-se de pancadaria da grossa, famílias inteiras umas contra as outras, na batalha sanguinolenta pela entrada na camioneta prestes a sair para Fafe, às vezes a última, a derradeira sem apelo nem agravo, e depois era mesmo só a pé.
Atacava-se com tudo o que se tivesse à mão. Navalhas e saca-rolhas, pedras, chibatas, bengalas, muletas, colheres de pau, joelhos, tachos e panelas, socos e galochas, melões e melancias, garrafões vazios, açafates, quadros do anjo da guarda comprados apenas há minutos, concertinas desengonçadas, reco-recos, bombos e ferrinhos, num desconcerto sem dó nem piedade, e lá no meio, aproveitando a abençoada confusão, feliz da vida, o meu avô de Basto, que por acaso até ia a pé para Passos, via Várzea Cova, com a minha avó atrás, e não precisava da camioneta para nada, o meu querido avô de Basto, estava a dizer, varria o ambiente com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, tenteando o vinho para não cair de cangalhas e lançando aos céus o seu famoso grito de guerra - Olraitecamoniésse!

Ó meus amigos! Taylor Swift, que eu na verdade não sei muito bem em que é que consiste, há-de ser certamente uma coisa importante, mas a nossa Lagoa, juro-vos, também era uma festa muito bonita. E, ainda por cima, ia-se ao fanico...

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Maio de 2024, Taylor Swift ainda estava fresca em Portugal. Hoje é Dia de Nossa Senhora das Neves, festa religiosa, assinalada na Lagoa com missa solene, sermão e procissão. O arraial pagão aguarda pelo final do mês.

domingo, 4 de agosto de 2024

Em Agosto, Fafe mudava-se para a Póvoa

Foto Hernâni Von Doellinger
A Póvoa de Varzim, que era Fafe no Verão, enormou-se sem rei nem roque. Cresceu a torto e a direito - e digo bem, literalmente a torto e a direito. Cuido que a culpa não é só dos fafenses apartamenteiros, que, na verdade, são mais que as mães. Outros culpados haverá, por exemplo derivados de Famalicão ou de Felgueiras, gente igualmente de mostrar e com fábricas e ferraris que entretanto faliram. As fábricas. E os operários. Os ferraris estão bem, graças a Deus, na garagem disfarçada de lavandaria atrás do lago do menino que mija e da piscina de plástico. Os da Póvoa de todo o ano só agora deram fé que foram encabados. Arruinaram-lhes os quartinhos de aluguer e as vistas. São prisioneiros, vedados por um colossal muro de betão que lhes rouba a praia, o ar e a vida. A cidade dos empreiteiros aluga-se. Os autarcas também. Mas tornemos a Fafe. Quem fez ao Largo o que fez, quem fez ao Assento o que fez, quem fez ao Santo Velho o que fez, quem fez à Feira Velha o que fez, quem fez ao monte de São Jorge e a Castelhão o que fez, só pode ter construído também a Póvoa de Varzim moderna e encaixotada, é de justiça e entregue-se-lhes a medalha. E depois é mandá-los à merda pelo que fizeram à minha terra.

Fafe mudava-se no Verão para a Póvoa, e eu agora também. Não cuidem que estou a ser cínico. À falta de posses para outros algarves, eu próprio passei a fazer férias na Póvoa de Varzim, todos os anos, desde os tempos da troika.
As minhas férias deste ano foram temporãs, gozei-as no passado dia 8 de Fevereiro, uma quinta-feira à tarde, depois de irmos ao Correio levantar a reforma. Peguei na mulher e ala para a Póvoa, com transbordo na Senhora da Hora. Saímos depois de almoço, mas para mim o almoço já conta como férias. Comemos em casa dois bijus, um para cada, levantámos a mesa, varremos a sala, lavámos a louça, regámos os vasos, desligámos a água, a luz e o gás, fechámos a porta com três chaves e uma tranca, pedimos à vizinha que deitasse os olhos às janelas e lá fomos apanhar o metro. A viagem correu muito bem.
A Póvoa estava um bocado ao deus-dará, praticamente de vago, decerto derivado à chuva que caía desalmadamente, uma falta de respeito para veraneantes que, como nós, não gostam de confusões e tomam horas para o Verão. Mas há cada vez mais andares e apartamentos para vender e quartos por alugar, de acordo com os letreiros que se acotovelam. A língua oficial da Póvoa de Varzim, entre os meses de Junho e Agosto, é o francês com caralhos no meio. No resto do ano também. Eu e a minha mulher foi como se estivéssemos no estrangeiro, embora com caralhos no meio e bastante molhados, e ainda há um bocadinho tínhamos saído de Matosinhos com um rico dia de sol. Por falar nisso, liguei à vizinha para saber se estava tudo bem. E estava.
Aproveitámos as férias em cheio. Olhámos para o casino e para o Cego do Maio, fomos espreitar as montras com bolas de berlim, a praia, os banhos e as banhas. Não havia. Fomos às piscinas, ao museu, à biblioteca, à praça de toiros demolida e ao estádio que qualquer dia também, mas fomos sempre pelo lado de fora, para não incomodar. Não percebo quem diz que não tem dinheiro para ir de férias. Eu e a minha mulher fomos e às 17h45 já estávamos outra vez em casa, encharcados como pitos mas felizes da vida. Mais: resolvi fazer um prolongamento extraordinário das férias, no domicílio, e demo-nos ao luxo de jantar. Dois bijus, um para cada, e uma colher de xarope para a tosse bebida a meias.
As minhas férias ficaram-me por 10,65 euros. Ora portanto, 24 cêntimos dos dois pães do almoço, dez euros de dois andantes Z5 (cartões incluídos) para as viagens Matosinhos-Póvoa de Varzim e Póvoa de Varzim-Matosinhos, mais os 24 cêntimos dos papos-secos do jantar, uma extravagância, e 17 cêntimos da chamada para a vizinha. Total: 10,65 euros, com todas as taxas incluídas, o xarope para a tosse tinha-me sido dado para amostra. Quase onze euros, um bocado puxado, é verdade, e não dá para descontar no IRS, mas é uma questão de nos organizarmos durante o resto do ano.
A minha mulher ainda quis ir a uma agência de viagens, para ver se a coisa nos saía mais em conta - como se nós fôssemos uns necessitados! Mandei-a dar uma volta e ela passou as férias todas sem me falar.

A propósito de férias: as únicas pessoas que eu e a minha mulher conhecemos que nunca foram ao Brasil somos nós os dois. Mas já está resolvido: para o ano, se Deus quiser, vamos outra vez à Póvoa.

Há mar e mar

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 3 de agosto de 2024

Capoeirista, eu?

A sério. Não sei se posso ser considerado um verdadeiro capoeirista. A minha mãe mandava-me realmente dar de comer às galinhas e ver se havia ovos, recomendando-me sempre todo o cuidado ao entrar e ao sair do galinheiro, sobretudo para não escorregar naquela merda toda, mas será isso suficiente?
E que se segue? Hoje é Dia do Capoeirista, e eu, sinceramente, ainda não sei se devo festejar ou não...

Diplomacia paralela

Foto Tarrenego!
A diferença entre um embaixador da Unicef e um embaixador da Unicer é da ordem dos 5,2% vol.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

O calor dilata os copos

Era um fafense à moda antiga. Praticante de fino durante três quartos do ano, chegava ao Verão e dedicava-se à caneca. Dizia: - O calor dilata os copos...

Agora a efeméride. Hoje, primeira sexta-feira de Agosto, é Dia Internacional da Cerveja. O Dia Internacional da Cerveja é um Dia De tão palerma e desnecessário como a maioria dos outros Dias De e foi inventado por uns maduros americanos de Santa Cruz, na Califórnia, em 2007. O principal objectivo deste peculiar Dia De é, consta dos estatutos, estar com amigos para saborear a cerveja. Quer-se dizer, Dia Internacional da Cerveja é quando um gajo quiser, em Fafe chegava a ser todos os dias, e para mim foi na passada terça-feira, dia internacional da cerveja, das bifanas e do Lopes.

O Velho Lau e o Lausperene

Foto Tony Dias/Movephoto

Que fique assente de uma vez por todas: o Velho Lau e o Lausperene não são uma única e mesma pessoa, como muito boa gente cuida, e, aliás, Lausperene nem sequer é pessoa. O Lausperene, ou Sagrado Lausperene, é a exposição e adoração permanente do Santíssimo Sacramento nas igrejas ou capelas. O Velho Lau é Venceslau Fernandes, ex-ciclista realmente de longeva carreira e pai da triatleta Vanessa Fernandes, Velho porque ganhou a Volta a Portugal de 1984, tinha então 39 anos, e correu até aos 46, derivando talvez daí, de tanta perenidade, a compreensível confusão...

Claro que vi Venceslau Fernandes em acção. Em Fafe sobretudo. Com as camisolas da Ambar, do Sangalhos, do Benfica, do FC Porto, da Ajacto e outras de que menos reza a história. E lembro-me até do Cedemi, embora a minha memória não consiga fazer a ligação ao Velho Lau. Evidentemente também frequentei Sagrados Lausperenes no meu tempo, mas isso, se fosse a contar, já seriam outros quinhentos...

Gaspar: o recordista passou por aqui

Foto Zerozero Gaspar, que defendeu as cores da AD Fafe na época de 1976/77, é o mais jovem guarda-redes de sempre a estrear-se na primeira d...