quarta-feira, 14 de setembro de 2022
Cada um tinha a sua cruz
Levava um banquinho de madeira e sentava-se em Cima da Arcada, de guarda-sol aberto, em dias assim-assim, e um caderninho de folhas quadriculadas, sempre. Se por caso invernasse, o guarda-sol chamava-se guarda-chuva. Mas ele. Ele espertava os olhos cansados, via sair, e tomava nota. Saíam do Mário da Louça, do Damião Monteiro, do Império, do Fernando da Sede, do Foto Jóia, do Talho, do Romeu, da Caixa, do Martins da Avenida, do Rabeca, da Câmara, do Café Avenida, da Peninsular, do Moniz Rebelo, das camionetas do João Carlos Soares, da Juditinha, do Sanica, do Casinhas, da Senhora Eufémia, do Américo das Bicicletas, do Alfredo Sapateiro, das Lobas, do Club, da Pacata, da Loja Nova, da Casa da Cera, dos Armazéns Cunha, do Banco, do Martins Relojoeiro, da Electra, do Manel do Campo, até saíam do Escondidinho. Saíam, e ele registava a lápis lambido, mão trémula porém infalível. Analfabeto de nascença, utilizava a técnica do Miguel Cantoneiro, ecumenicamente adaptada: uma cruzinha para os pobres e desiludidos como ele, uma cruz para os menos mal da vida e um cruzeiro para a dúzia e meia de cagões locais. À noite, em casa, depois da sopa e antes do terço, fazia a soma das cruzes, por escalões, comparava com os dias anteriores, as contas todas certinhas, noves fora nada, anotava as variáveis e arquivava tudo no saco de serapilheira debaixo da cama. Aos domingos de manhã, em vez de ir à missa, fazia uma pequena fogueira e queimava tudo enquanto assobiava vigorosamente o hino de Fafe, "Fafe querido", mas de trás para a frente. Chamavam-lhe o Vigilante. Talvez vigilante da natureza. Da natureza humana. Diziam que ele tinha um parafuso a menos, que era doudo, para o que lhe havia de dar, ser contador de pessoas. Ele dizia, porém, que era contador de anedotas...
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