segunda-feira, 30 de dezembro de 2024
A passagem de ano em Fafe
domingo, 29 de dezembro de 2024
Olha a triste viuvinha
P.S. - Hoje é Dia da Sagrada Família.
Questões entre parênteses
sábado, 28 de dezembro de 2024
Os tascos e as tascas, questão de género
Aqui o género interessa. Embora ninguém me leve a sério (ou à séria, se por acaso lido em Lisboa), tenho passado a vida a pregar a respeito da irreconciliável diferença entre tasco e tasca (ou tasquinha). Prego aos peixes e prego a fundo. Mas é como já disse: tasco é tasco, sítio do povo com povo dentro, e tasca ou tasquinha é... outra coisa, coisa fina, sítio de moda. O tasco é jurássico, a tasca é cosmopolita. O tasco é rasca, a tasca é chique. A tasca é in, o tasco é out. Sei do que falo. Sou de um tempo e sou de Fafe, terra de tascos e com muito gosto. Sou dos tascos. Só para dar mais um exemplo, hoje não vou mais longe: no tasco bebe-se verde tinto e come-se bolo com sardinhas ou bacalhau frito; na tasca, bebe-se ginjinha e come-se caril de lavagante, como vi outro dia no Expresso. Percebem o que eu quero dizer?
E não há nada que se beba?
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Esta maneira fafense de sermos
quinta-feira, 26 de dezembro de 2024
Um boxevista no meio da ponte
O Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gosta de se meter com toda a gente, também se metia com o Landinho, o nosso Menino, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas idas ao Porto, ao Royal e ao Derby, velhos cafés de putas na Rua Chã, quase em frente um do outro, e o bom do Zé ia lá para aliviar o tesão a preço combinado, e uma famosa ocasião teve mesmo de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério, na parte de cima da Ponte de Luís I, ali ao pé, discutindo exactamente por causa das senhoras. E o Zé Cão ganhou. Ganhou, evidentemente, nem podia ser de outra maneira, o Zé Cão era nosso. E a piada a espremer da historieta era tão-só fazer o Zé Cão dizer "boxevista", isto é, "bocsvista" ou "boquessevista". A mando do Valença, o Zé Cão dizia, e tornava ao combate, e fazia os gestos como foi, e disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, e era um campeão sem sair do seu canto, desajeitado, quase caindo, porém olímpico e ainda invicto, a lutar por merecer mais um quartilho de verde tinto que uma alma caridosa fizesse o favor de lhe pagar...
O Zé Cão lutava um faz-de-conta tão escangalhado e convincente que parecia mesmo que estava no ringue a enfrentar-se ao peso-pesado cubano Teófilo Stevenson, por exemplo, o maior "boxevista" amador de todos os tempos, dando-se o devido desconto ao sentido da palavra "amador" em certos países naquela altura. Stevenson - triplo campeão do mundo e medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Munique 1972, Montreal 1976 e Moscovo 1980 - sempre recusou tornar-se profissional, por opção ou imposição, Havana é que sabe, rejeitando os sucessivos contratos de milhões de dólares com que os EUA lhe iam acenando. Morreu em 2012, infelizmente sem se ter tirado a limpo se ele era de facto melhor do que Muhammad Ali, como alguns puristas defendiam e, tanto quanto sei, ainda defendem. Melhor do que o Zé Cão, é que de certeza não era!
Lembro-me tão bem. O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom, que era dele e só dele que eu vinha falar. E acabo de pensar que nem é nada Zé Cão: para os devidos e legais efeitos, passa doravante a ser Zecão, de Zeca grande, tão grande como o seu imenso coração. E também lhe ponho uma medalha ao peito. Uma medalha europeia, mundial e olímpica. Fafense. De ouro, pois então, Zecão!
P.S. - Hoje é Boxing Day e eu lembrei-me deste velho texto a propósito do nosso Zé Cão e do grande Valença. É verdade que não tem nada a ver com o assunto, mas, e aqui ninguém me pode desmentir, estes são dois fafenses que valem sempre a pena, e essa é que é essa.
A minha rua era um largo. Agora é dois cruzamentos.
Foto Hernâni Von Doellinger |
A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, como lhe chamávamos nós os íntimos, os da rua propriamente ditos, já a contar com o Roger Moore na televisão a preto e branco do café Peludo. Evidentemente que, para os devidos e legais efeitos, a minha rua tinha nome de data: Largo 9 de Abril, curiosamente à moda do Porto, onde 9 de Abril costuma dizer-se Arca d'Água. Eu, que até sabia da Batalha de La Lys, nunca consegui perceber o que é que a guerra de catorze a dezoito tinha a ver tão especialmente com a minha rua, e pelos vistos os doutores da Câmara também não, uma vez que de repente, não sei precisar quando, resolveram mudar-lhe o nome para Rua dos Bombeiros Voluntários. E fará um pouco mais de sentido chamar-lhe assim, embora não tenha sido por isso: na minha rua havia realmente bombeiros em quase todas as portas, e nalgumas casas eram a família inteira.
O Santo Velho era Velho por causa do Santo Novo, uns campos de milho ao lado, onde se estabeleciam o Colégio dos ricos e a Escola Industrial dos remediados, que é hoje a Casa da Cultura. Os pobres iam trabalhar para a Fábrica se tivessem sorte. Em Fafe, a Fábrica assim com maiúscula, fábrica por antonomásia, era a Fábrica do Ferro, que por acaso era de fiação e tecidos.
A minha rua era um terreiro onde jogávamos ao espeto, ao pião e à bola, o que, neste último caso, arreliava sobremaneira a Milinha Parola, que ameaçava estraçalhar-nos o esférico à tesourada bastava que lhe fizéssemos alguma tangente aos vidros. A Milinha era Parola (ou Modista, como eu gostava mais) para se distinguir da Milinha Vaqueiro, quatro números acima. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava. Porque o Santo, ou não se chamasse assim, era sobretudo um território de paz, de famílias, de família. Os miúdos éramos todos uma irmandade, os pais e principalmente as mães às vezes é que não. Na minha rua éramos vizinhos. Éramos comunidade.
A minha rua era um largo com vista para o mundo. O mundo era então cientificamente plano, a descair para o Picotalho e para a Granja e delimitado em cima pelos tascos do Paredes e do Zé Manco, com as Grilas de um lado e as Turicas do outro, e em baixo pela Quelha, pela Poça e pela casa brasonada com capela do Senhor Doutor, onde o Senhor Abade ia dizer missa com esmolas. Pela Páscoa, era na Casa do Santo Velho que se reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, seguindo depois para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e descompassadas, nas últimas. Tínhamos o poeta Zé de Castro, duas tílias e um cilindro. Tínhamos velhotas excêntricas. Tínhamos bebedolas residentes e bêbados de visita. Tínhamos casas de lavradores, desfolhadas nocturnas e matança do porco. O Santo cheirava a eido, a estrume, a engaço, a vinho purinho e a pão. A minha rua cheirava a vida. Tínhamos o Maló cantando Frei Hermano da Câmara na esquina do velho Lermas, tínhamos o ceguinho das quartas-feiras e a Mocha e a Senhora Filomena com sardinhas, fanecas e chucharros, indesmentíveis chucharros.
Tínhamos as castanhas assadas da Maria Barraca e os tremoços na Marrequinha da Recta. Tínhamos o funileiro Barnabé que era músico mas não tocava tangos, um sapateiro, um carpinteiro que foi para França, duas ou três loucas mansas e o Professor Luís, que, esse sim, tocava na guitarra eléctrica o "Apache" dos Shadows muito melhor do que os próprios, e no entanto já era careca o bom Professor, o que me confundia um bocadinho. Eu plantava-me no meio da rua a ouvi-lo, deliciado. Eu era a terceira tília, cresciam-me raízes nos pés. Tínhamos carros de bois gemendo pelas manhãs e rebanhos de cabritos nas vésperas da Senhora de Antime e da morte. Tínhamos o Chiquinho Varandas, que uma ocasião andou à luta com o macaco do Homem Mais Forte do Mundo. Tínhamos padeira, azeiteiro e mendigos ao domicílio. Os mendigos chamavam-se pobrezinhos. Tínhamos tojo estalando ao sol no passeio. Corríamos à coiada os moços das outras ruas, queimávamos o Pai das Orelheiras pelo Entrudo, cantávamos as Janeiras e os Reis, celebrávamos o Dia dos Enganos, desajudávamos nas vindimas do Sr. José e do Sr. António e nas lavras do Sr. Tónio Quim Calçada, os três bombeiros e mestres de vida, íamos ao cinema, que era nas traseiras da rua, festejávamos o Santo António de Lisboa e de Pádua, vejam lá o cosmopolitismo, encostando a cascata ao cilindro abandonado, se calhar por empreiteiro falido, do lado de lá das casas do Sr. Agostinho Cachada e do Sr. José Sacristão, gente também de primeira e bombeiros obviamente. A Senhora de Antime passávamo-nos à porta. O nosso Santo António era de arromba. Botávamos altifalantes, "Tango dos Barbudos", "Fado das Trincheiras", o "Je T'Aime Moi Non Plus", que me incomodava o andar e eu ainda não sabia porquê. Fogueteávamos a bom foguetear: eram foguetes de três-croas, foguetes envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, géu, trás, trás, adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo comprado no Rates, mais ou menos no sítio onde está agora vergonhosa e envergonhadamente escondido o monumento à Justiça de Fafe. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me, em abono da verdade. O Rates era o proprietário mas também o sítio, lojinha de uma porta só, minúscula, escura, esconsa, tipo vão de escada, e nós íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos negros, e metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.
Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com dois cruzamentos, semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento proibido. E nós morremos ignorantes e breves, desmemoriados pedra a pedra.
P.S. - Este foi o texto mais lido neste blogue durante o ano de 2024. Gosto disso. E entretanto a Justiça de Fafe já não está escondida. Algumas destas extraordinárias figuras, que aqui apenas afloro, falo delas com mais detalhe em textinhos à parte, basta procurá-los pelo nome.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Ia-se ao Largo ver os retratos
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Gravura Município de Fafe |
Os campos nas nossas traseiras, onde hoje está o Pavilhão Municipal, encontravam-se de vago e enchiam-se de moçarada brincalhona e apressada, porque a neve era efémera e sabia-se lá quantos anos depois estaríamos outra vez à espera que ela tornasse. Lembro-me de uma ocasião, um acontecimento: o Foto Victor com os filhos a fazerem uma festa tremenda, e o Foto Victor a tirar retratos atrás de retratos, fotografias sorrateiramente alpinas que depois expôs, algumas, nas montras da loja em frente aos Correios. Foi um sucesso.
Fafe também tinha disto, nomes assim, esdrúxulos. O Sr. Victor era fotógrafo com porta aberta e o estabelecimento chamava-se Foto Victor. Portanto o Sr. Victor passou a chamar-se Foto Victor. Aliás, como o Foto Jóia, mas este no Largo, à beira do Talho, do Romeu e do Fernando da Sede, como quem olha para o Mário da Louça e para a Electra. Foto Jóia era simultaneamente o nome do "estúdio" e do seu proprietário. "Vem aí o Foto Jóia!", dizia-se, e era a coisa mais natural do mundo.
domingo, 22 de dezembro de 2024
À espanhola, mas sem castanholas
E pronto, era isto. O mundo já pode acabar. Estou preparado, enfim de consciência tranquila. Andava com esta espinha atravessada na garganta, mas está o assunto resolvido. E agora, se me dão licença, vou à cozinha salgar uns ossinhos da suã para o jantar de amanhã.
sábado, 21 de dezembro de 2024
Aproveite o Natal: vá para a cama!
Está fresquinho, não está? Olhe! Aproveite estes dias abençoados, ou a quadra, como muito bem dizem os mais fervorosos natalistas. Fique em casa, leia, escreva, pense, ou não pense, se conseguir, e todas as tardes durma um sono, ou dois, consoante a disposição e a companhia, e dormir é aqui uma forma de dizer. E ouça a chuva a bater à janela. Mas não abra se bater leve, levemente, que a chuva não bate assim: é de certeza o Neves, e o Neves, aviso já, é um "chaga do caralho" - como diria o Costinha.
Bacalhau com natas (à moda de Fafe)
O Natal do ano que vem
Foto Hernâni Von Doellinger |
sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
Eram pobres e tinham dono
Virtudes teologais
Fé, esperança e caridade.
A fé move montanhas.
A esperança é a última a morrer.
E a caridade tem dias.
Antigamente a caridade tinha dia certo e era um descanso. Pelo menos em Fafe. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e muito aleijados, e eram assim para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou na Câmara, porque ainda não havia Europa, nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.
Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos que ainda por cima tinham as mãos sujas.
(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Vendiam. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Davam. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)
Graças a Deus, isto era só antigamente.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
O Natal de Fafe, com um ano de atraso
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
Fafe e os ciganos
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
O perigo das redundâncias
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
O boleto, como se fosse a consoada
Foto Hernâni Von Doellinger |
O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número na procissão mas "ainda não ganhavam". Funcionava, em todo o caso, com um prémio, um extra. Uma espécie de consoada recebida a prestações.
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas miniaturas para piano, verdadeiras jóias, autênticas obras-primas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise". Tornando, porém, ao boleto: se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê (sei, sei!), a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.
Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre. Mas bebia-se. Porque beber fazia parte da arte, tinha o seu próprio solfejo. Como eu costumo dizer, e não me canso de repetir, a diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de preferência numa seminfusa. Bem fresca...
Cercifaf apresenta... "Direito de Natal"
domingo, 15 de dezembro de 2024
Histórias fafenses e teáceas
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Foto Hernâni Von Doellinger |
Contava-se. Havia umas irmãs em Fafe que saíam ao café para tomar chá - gente fina, conhecida e provavelmente falida. Era um chá para as duas, ambas as manas de mindinho espetado, requintadas, naftalínicas, vagarentas, excêntricas, assoprando cerimoniosamente, lábios em biquinho, uma beberricando pela chávena e a outra pelo pires, combinação lá entre elas e o velho empregado do café. O chá, constava, era vinho branco.
O Sr. Fala-Barato, pai, era um homem imponente e tomava chá. Tomava chá no Café Chinês, porque isto anda tudo ligado. O Sr. Fala-Barato, que também era um homem antigo e sábio, importante, chegava lentamente, sentava-se com todos os vagares e uma das filhas, via de regra a mais nova, e pedia, muito simplesmente: - Chá prò velhote!
Às vezes, em dias talvez de melhor disposição e superavit de autoestima, o Sr. Fala-Barato, que também tinha a sua piada, investia um pouco mais nas palavras e dizia: - Chá prò velhote, que o velhote merece!...
Eu era pequeno, mocico de escola, ouvia tudo e aprendia muito bem. Tomei conta da frase e ainda hoje lhe dou uso, sem nunca esquecer a fonte. Os poucos que partilham a mesa comigo e já tantas vezes me ouviram dizer, quando reabasteço, "Um copinho prò velhote, que o velhote merece", ficam agora a saber de onde é que me saiu a ideia.
sábado, 14 de dezembro de 2024
Fafe cheirava a Natal todos os dias
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Gravura Município de Fafe |
Do que eu gostava mais em Fafe, do que eu realmente sinto falta? Do cheiro. Fafe tinha o seu próprio cheiro, distintivo, memorial. Fafe cheirava a esmero, cheirava a limpo, a lavado. Fafe cheirava a sabão amarelo. E era isto o ano inteiro, mais ainda na semana da Páscoa, quando as nossas mães asseavam a casa especialmente para receber o Senhor. Fafe, em boa verdade, era uma acolhedora mistura de cheiros bons, um bouquet requintado, mas o honesto odor do sabão amarelo pairava sobre tudo e sobre todos. Sobretudo.
E pelos 16 de Maio também. E igualmente pela Senhora de Antime, pelo Corpo de Deus. De resto, os domingos em Fafe cheiravam que era uma categoria. Os domingos em geral. Cheiravam a desodorizante, a perfume, a brilhantina, a laca, a graxa, a sebo e a naftalina - tudo misturado, na missa das onze, com a Igreja Nova à pinha, dava uma certa vontade de gomitar, não vou mentir -, mas o melhor era o que se passava entretanto nas ruas da vila antiga, logo desde as primeiras horas da manhã, aquele extraordinário aviso dos velhos fogões de lenha, tão de confiança, tão competentes, tão autónomos, assando vitela tenra e dourada com todos os vagares, com todos os matadores, o cheiro e o fumo magníficos escapulindo-se pela chaminé carbonizada ou pelo telhado mal aparelhado e alastrando de porta em porta, como maldição de filme de mortos-vivos de hoje em dia, mas em bendição, que outros eram os tempos, graças a Deus.
Fafe cheirava. Embora hoje possa não parecer, Fafe era uma povoação rural, íntima, pacata, território de lavradores teimosos e polivalentes - tirante o Largo, isto é, o por Cima e o por Baixo da Arcada, e para além da Fábrica do Ferro e do Bugio, que eram outras vidas. Só por exemplo, toda aquela zona envolvente da Torralta, onde agora estão o bairro tão bem tratado, as várias escolas, o Pavilhão Municipal, as vivendas, as estradas e avenidas, os semáforos, as rotundas, a Biblioteca, os Bombeiros, a Feira, a Central de Camionagem e por aí fora, aquilo era tudo campos, terrenos agrícolas particularmente fecundos, os campos do Santo, Granja e São Gemil, campos, caminhos, quelhas, noras e minas, levadas e poças, com muito milho, fruta e umas quantas pipas de vinho. Era zona de carros de bois, aquela, e actualmente abunda de automóveis e tem o chão pintado a furta-cores. Fafe realmente cheirava. E à semana metia a cotio o cheiro a eido, a estrume, a lavadura, a gado, a galinheiro, a couves cegadas, a erva acabada de cortar, a terra seca acabada de regar, a medas húmidas, a chuva era farta e cheirava muito bem em Fafe.
Fafe tinha o cheiro doce das glicínias, cheirava a alfádega, a cidreira, a amoras, a tílias, a uvas americanas, aos pinheiros de São Jorge e Castelhão, a castanhas assadas perla Maria Barraca à beira do tasco do Zé Manco, ao azeite do Moniz e ao bacalhau frito da Dolorzinhas no tasco do Paredes. Cheirava a maçãs guardadas nos barrotes secretos dos tectos, cheirava a geleia e a marmelada, a vinho novo, a aletria quente, a canela. Fafe cheirava todo o ano a Natal. E cheirava a piche derretido ao sol das tardadas de Verão, e cheirava a cano de escape de motorizadas sem cano de escape na noite atolambada da passagem de ano. Fafe cheirava à aguardente e ao engaço do fantástico alambique do Cinema, copiosamente manobrado pelo Sr. Zé dos Alhos, parece que ainda o estou a ver e ouvir. A cheirar.
Fafe cheirava a roupa a corar. Cheirava ao avental sempre lavado da minha mãe, que cheirava tão bem a sabão, a segurança e a felicidade, e eu, criança, pequenito, abraçava-me a ele, a ela, com quanta força tinha, e fechava os olhos à espera que o tempo à minha volta não passasse. É. Fafe cheirava à minha mãe.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
O caralho é o nosso metro-padrão
A medida do homem
Alice no País das Maravilhas
Hoje, amanhã e domingo, o Multiusos de Fafe acolhe "Alice no País das Maravilhas", espectáculo em patins organizado pelo Grupo Nun'Álvares. Mais informações, aqui.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
Fafe já não tem piononos
Assim com maiúscula, o Pionono era exactamente em São Jorge, é justo que se diga. Pionono era nome próprio, sítio, geografia. Era topónimo com alvará. "Vou ao Pionono". Ia-se ao Pionono. Ao Pionono ia-se aos pinheiros pelo Natal, ia-se esgaçar umas pernadas de carvalho para o trono da cascata do Santo António, ia-se aos fentos ou ao mato para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem ainda conseguir alcançar o que ela quereria dizer. Nem de propósito, São Jorge parece que também tinha mamoas, eu confesso que não sabia mas fiquei a saber no final do ano passado.
(As giestas, por falar nelas, davam umas vassouras de categoria e o Trancadas era um barbeiro mesmo ao lado do tasco do Neca do Hotel, proximidade que se revelava de uma comodidade extrema. Por falar nisso, lembro-me de descer um degrauzinho, mais cá para o centro da vila, ali entre a sombria loja da Rosindinha Catequista e a Cafelândia, mas esse era o Sr. António Grande, o segundo barbeiro do meu padrinho Américo. Eu ia lá com o meu padrinho mais o meu tio Zé da Bomba, aos sábados de manhã, que naquele tempo eram sempre de sol. Na espera lia-se "O Primeiro de Janeiro", mal eu sabia que ainda o haveria de fazer. O meu padrinho Américo e o meu tio Zé da Bomba eram irmãos do meu pai, o grande Lando Bomba, e depois foram meus pais, à falta do propriamente dito, por razão de força maior.)
Hoje os montes de São Jorge e de Castelhão são casas e é o progresso. Os montes foram capados, terraplenados, desarborizados, alcatroados, liquidados. Os montes morreram de morte matada e a culpa morreu solteira. Fafe já não tem piononos. Mas, dizem-me, tem ainda a "Garrafinha" e historiadores até dar com um pau. Um deles, quem dera que não chova, ainda há-de contar esta como deve ser.
E agora, só para que conste: pio-nono será a forma "correcta" de escrever, se nos referirmos ao meco. Mas pionono pode ser também nome de doce muito popular em Espanha, na América Latina e nas Filipinas. Por outro lado, Pio IX, que se chamava Giovanni Maria Mastai-Ferretti, teve o segundo maior pontificado da história da Igreja, logo a seguir a São Pedro. E foi o primeiro papa a ser fotografado. Foi também um sacana do piorio e o Vaticano fez dele santo. Pio IX, que tratava os judeus como "cães" e abaixo de cão, foi o responsável pelo rapto de Edgardo Mortara, um menino de seis anos baptizado em segredo e retirado à força da sua família judaica, história contada por Marco Bellocchio no filme "O Rapto", estreado no Festival de Cannes do ano passado e que em Abril andou pelas salas de cinema.
Leões do Ferro apresentam... "A Nossa Bela Adormecida"
No próximo dia 28 de Dezembro, no Teatro-Cinema de Fafe, o Grupo Desportivo e Cultural Leões do Ferro apresenta o espectáculo "A Nossa Bela Adormecida". É um sábado, às 21h30, e o bilhete custa 4 euros.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Mas que bem que elas tangam
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Todos à sacristia!
Eu ainda não tinha sido apresentado à palavra pragmatismo. Quando, bastante mais tarde, tomei conhecimento, percebi logo que pragmatismo era aquilo da comissão e da procissão.
Atenção, muita atenção!
Aos anos que isto vai, ali para os lados de Amares, ainda as romarias não eram abrilhantadas com Fernando Rocha e rulotes de fast-food, mas por lá andaria a Banda de Revelhe. E que saudades que eu tenho desse tempo visionário e vanguardeiro em que o acordo ortofónico não havia sido inventado mas já era galhardamente roufenhado por altifalantes elevados às mais eucaliptais cruchas, para que a coisa cá em baixo não passasse despercebida lá em cima a Deus Nosso Senhor, que é praticamente tão brasileiro como português.
Decerto que a procissão saiu e o andor da Senhora do Alívio também. Já não sei como é que correu a "comparação". Nem me lembro em que estado terá chegado ao "clipe" o grupo de "pegantes" retardatários. Mas devia ser líquido, o estado, né?...
O rapaz dos altifalantes
Era a sua primeira vez. Agarrou pois no microfone, coçou-lhe a cabecinha com a unhaca da cera, soprou-lhe o pó num imenso e sonoro perdigoto e, sem mais delongas, disse:
- Alô, chape, chape, um, dois. Um, dois, três, microfone, experiência. Chape, chape, um, dois. Um, dois, três, quatro, microfone...
E a multidão irrompeu em aplausos.
E disse. Vezes sem conta, anos mais tarde, já os altifalantes tinham sido promovidos a "instalações sonoras" e a bola rolava no Estádio de campo pelado. Sim, o microfone agora era meu, eu era o rapaz da "constituição das equipas" e daqueles reclames muito jeitosos que terminavam todos em "... nesta simpática lo-ca-li-da-deee". E os anúncios pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila, nos altifalantezinhos pendurados nas árvores em Cima da Arcada, sim, também era eu. Mas estavam gravados e a frase era-me impedida. E nem imaginam o que eu sofria quando andava com o Pimenta pelas aldeias de Fafe a apregoar os filmes do cinema ao ar livre, as cornetas atadas às três pancadas no tejadilho da velha catrel e eu, aos solavancos contra o tecto, sem poder dizer a frase. Mas não encaixava de maneira nenhuma a puta da frase. Que seca! E os filmes também.
"E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Era a frase da minha infância e andou sempre comigo. Até na profissão. Quando passei pela Informação da Rádio Comercial, no tempo em que a Comercial fazia parte do universo RDP, muitas vezes a disse, como teste, na gravação de uma notícia ou apenas por brincadeira, de microfone fechado, antes de ir para o ar com o noticiário. "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde".
Nunca chegou cá fora, e foi o que os senhores ouvintes perderam - como certamente estão agora a perceber. Em contrapartida, uma vez, no final de um bloco noticioso particularmente bem conseguido, saiu-nos - ao colega de cabina e a mim - um "Até os comemos!", de microfone involuntariamente aberto e destinatários certos, que ainda hoje é o nosso orgulho.
E realmente "Até os comemos!" também é uma bela frase e resulta muito bem em rádio, sobretudo se for numa rádio sustentada pelos contribuintes. Mas, verdade seja dita, não tem comparação com a outra, a gloriosa, a dos altifalantes, pois não?
O Baptista de Antime é que inventou as sinergias
Foto Hernâni Von Doellinger |
Onde eu quero chegar é ao Baptista de Antime. Às "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", e que, quando apareceram no mercado, rebentaram logo com a concorrência.
E eu acho que consigo perceber porquê. O Baptista de Antime era um tipo porreiro. Até tinha um tasco - e isso, salvo duvidosas excepções, é o melhor que se pode dizer seja de quem for. Apesar de disputar a rua com o Lando da Rampa, que era realmente vinho de outra pipa, o bom do senhor Baptista manteve o tasco e lançou-se nos altifalantes com um sucesso que só ouvido. Parece que o estou a ver agora, hiperactivo, falador, a ligar fios atrás de fios, cigarro na boca, a barba por fazer e a mão a mandar para trás a melena rebelde do cabelo brilhantinado, sempre magro, sempre de fato, sempre disponível e sorridente. Tenho ideia de que os altifalantes para a Festa da Bomba eram de graça, mas se calhar aqui estou a exagerar.
De tão bom, de tão dado às pessoas e vice-versa, o Baptista de Antime até cometeu a proeza de ganhar a Junta de Freguesia para o Partido Comunista. Antime fica no concelho de Fafe, é preciso que se note. E Fafe, para quem não sabe, fica no Minho, pertence ao distrito de Braga. Estão a ver a façanha?
Um dia, o Baptista de Antime, que já tinha um tasco e alugava "amplificações sonoras" e electricidade em pó aos fins-de-semana, resolveu alargar a sua carteira de negócios ao ramo da funerária. E em boa hora o fez, numa esperta lógica de complementaridade que continuaria a ser dinheiro em caixa. E em caixão. Romarias e funerais, o casamento perfeito, na alegria e na tristeza, venha mais um copo. O homem estava em todas. E a treta das sinergias foi ele que inventou.
Os funerais do Baptista eram muito gabados. O Zé Maria Sapateiro dizia que eram "uma categoria".
O Zé Maria Sapateiro, que sabia muito de funerais, era também de Antime e pai da minha querida tia Laura. Era, portanto, sogro do meu tio e padrinho Américo. Era avô do Zé e da Zulmira - para que os de agora se situem. Em cima de tudo isto, o senhor Zé Maria era uma figura, malandro e esforçado piadista, com o porém do benfiquismo.
Eu gostava muito de ouvir o senhor Zé Maria. E o senhor Zé Maria gostava de terminar as suas dissertações, à mesa da cozinha da casa do Lombo, com um "Viva o Benfica e mais nada!" que me incomodava um bocadinho. Ainda por cima, conhecendo a cor do meu coração, que era e é só uma - azul e branco -, insistia em reclamar os meus améns, "Não é, Hernâni?", porque, dizia ele, "O Hernâni é que sabe". E eu não sabia.
Uma vez o senhor Zé Maria morreu e eu fui a Fafe ao funeral. Foi um funeral de categoria. Deve ter sido o Baptista. Só pode ter sido o Baptista.
Conheci gente extraordinária em Fafe. E às vezes arrependo-me de ter crescido. Tenho saudades do tempo em que a vida da vila andava ao toque do sino da Igreja Nova e do apito da Fábrica do Ferro. É. A minha terra infelizmente já não existe.
Podiam ser de Fafe, os Dalton
Houve também o bando dos Dalton a sério (à séria, se lido em Lisboa). Eram especialistas em bancos e comboios, actuaram com assinalável sucesso no Velho Oeste americano entre 1890 e 1892 e chamavam-se Tim Evans, Bob Dalton, Grat Dalton e Dick Broadwell. Foram abatidos pela polícia durante o assalto a uma dependência bancária em Coffeyville, Kansas, e tiveram todos um lindo enterro.
Há ainda a registar Dalton Trumbo, tão excelente quanto controverso romancista e argumentista norte-americano, Timothy Dalton, aquele actor galês e fraquinho que fez por engano dois 007, o Dalton Ico e o Dalton Trevisan, famoso escritor brasileiro entendido em vampiros e ganhador dos prémios Camões e Machado de Assis, entre outros. O mais destacado membro da família terá sido, no entanto, o cientista inglês John Dalton (1766-1844), químico, meteorologista e físico, um dos primeiros a defender que a matéria é feita de pequenos nadas, os átomos, e inventor da "lei das proporções múltiplas", melhor chamada Lei de Dalton evidentemente para não se confundir com a Lei de Ohm.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2024
Aldrabons e aldramaus
Andava com esta dúvida fisgada nem sei há que tempos, mas no outro dia tive a inesperada revelação, quase sem querer, ao ouvir um minhoto retinto a falar. Um minhoto de Fafe, evidentemente, dos nossos. O homem antigo falava de não sei quem e chamava-lhe aldrabom. Aldrabom. Os minhotos de cá de baixo agarramo-nos ao pouco que já nos resta do galego purinho e falamos assim (e eu, como sabem, até tenho uma certa vaidade na nossa maneira de falar), trocamos o excêntrico ão pelo ancestral om, daí a confusom, e se calhar acreditamo-nos: ora aí está um aldra que é bom, pensamos na melhor das nossas intenções e caímos na esparrela. Porque aí é que a porca torce o rabo: eles não são aldrabons - são aldramaus.
sábado, 7 de dezembro de 2024
O Febras levava tudo à frente
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Quando a "puta" tocava
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Foto Tarrenego! |
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.
Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...
Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
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