Quarta-feira era e é dia de feira semanal em Fafe. E eu perdia-me ali, naquele pedaço de passeio junto às escadas que desciam para o Largo antigo, mesmo em frente à actual praça de táxis. Adorava as lérias do cavalheiro das limas, facas e tesouras, que afinal vendia tudo e um par de botas, ajudado pela mulher, uma senhora toda jeitosa, em cima da camioneta. Falava pelos cotovelos, o homem, embora, derivado aos perdigotos, tivesse pendurado ao pescoço, por um arame, um potente microfone envolto num lenço de assoar que era uma categoria. Dizia que tinha nascido numa freguesia de Fafe, não me lembro em qual - e Serafão vem-me agora à cabeça, mas não sei porquê -, e contava as aventuras passadas nas suas mais de mil voltas ao mundo, sobretudo a África, e daí certamente o capacete. Para mim, estava tudo explicado. Com aquele capacete, o arame, o microfone e o lenço, eu via-o até, ao intrépido Rei das Limas, a ir à Lua ou mesmo a Marte, assim equipado de explorador. Ainda por cima, o astronauta era nosso, de Fafe, eventualmente de Serafão, não sei porquê, insisto, e quem diz Serafão pode dizer Moreira de Rei ou Pedraído...
Eu admirava os propagandistas. Profetas, apóstolos, missionários, pregadores, palavristas. Propagandistas. Costumava, aliás, colaborar com o da banha da cobra, era o seu habitual ajudante naqueles números gagos de chamar povo e enganar tolos, a promessa sucessivamente adiada de exibir a gigantesca cobra jibóia guardada na velha mala de cartão colocada, sob rigorosas medidas de segurança, em cima de um banco de cozinha manco de uma perna. Competia-me alinhar em duas ou três pataqueiras habilidades de circo. Eu era o palhaço pobre, a cobaia, a vítima, e gostava de fazer parte. No término do espectáculo, ou da apresentação, digamos assim, o vendedor de banha da cobra dava-me de pagamento um pequeno sabonete que eu, de todas as vezes, entregava religiosamente à minha mãe, e a esperadíssima cobra, ia-se a ver, pouco maior era do que a bicha solitária exposta num frasco cheio de álcool e que, colocada sobre o capô do carro, como prova, ao lado das dezenas de embalagens da famosa pomada multifunções, atestava aos mais cépticos, caso os houvesse, que o assunto era científico, e de cura garantida, como estava ali à vista de toda a gente.
Eu deixava-me seduzir. Os da Bíblia explicavam os desenhos, um atrás do outro, qual deles o mais impactante e sugestivo, com aquelas senhoras muito vestidas e de cabelos compridos e aqueles senhores muito barbudos e grisalhos, as senhoras e os senhores em respeitosas poses colossais, e seguiam-se confortáveis paraísos terreais, e serpentes onzeneiras, e dilúvios vingativos, e cordeiros degolados, e sodomas e gomorras, e sarças ardentes, e cavalos e lanças, e baleias e leões, e pragas de gafanhotos, e mares abertos ao meio, e davides e golias, e céus escancarados, e bastante inferno, e raios e coriscos, e o fim do mundo, que por acaso em Fafe era feminino, dizia-se "a" fim do mundo. Cada conjunto de desenhos era um história inteira, completa, um filme. Pelo menos para mim. Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, eu via-os ali, claramente vistos. Até via o Homem Mais Forte do Mundo, que mais tarde conheceria pessoalmente, não é para me gabar, eu vi-o antes de o ver, juro, lá estava ele estampado de pleno direito nos santos desenhos, mas essa parte os da Bíblia às quartas-feiras infelizmente nunca viram, não sabiam, não faziam ideia. Eram, Deus lhes perdoe, uns circunspectos.
Ainda a respeito da Bíblia. Ando a ler "O Reino", de Emmanuel Carrère. Uma delícia, uma obra-prima.