quarta-feira, 31 de agosto de 2022

A Festa da Bomba

Foto Tarrenego!
Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Quanto à enormeza da Senhora de Antime, sobretudo da sua incomparável e pungente procissão, suponho que estamos conversados. Do nosso Santo António já aqui dei um lamiré, e é preciso não esquecer que até tínhamos foguetes e altifalantes que o Zé da SIF arranjava e metíamos raivinha às outras ruas todas, incluindo avenidas, rampas, quelhas e largos como o nosso. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver. Mas as festas. Faltava a festa de anos dos Bombeiros Voluntários de Fafe - a Festa da Bomba -, e vamos a isso.

A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Sabença, senhor abade!

Foto Tarrenego!
No tempo em que havia padres em Portugal, Fafe tinha um senhor abade. Uma vez por semana, o nosso senhor abade descia a minha rua de terra e tílias para ir dizer missa na capela de ricos da Casa do Santo Velho, e a minha mãe mandava-me ir ter com ele para lhe pedir sabença. Eu interrompia os deveres da escola primária e ia a correr, todo contente. Fazia fila atrás dos outros miúdos todos e, quando chegava a minha vez, lá dizia, com o respeito que me fora ensinado, "Sabença, senhor abade!", beijando a mão branca que me era estendida. O senhor abade fazia-me uma pequena festa na cabeça, com a mão que tinha de vago, e respondia-me "Deus te abençoe, meu filho", que era o que eu queria ouvir. O senhor abade seguia o seu caminho e eu tornava a casa num sino. Acreditam que aquilo é das coisas mais felizes da minha infância?
O senhor abade cheirava bem, a tabaco e perfume. Andava sempre de batina e, no Inverno, usava uma capa negra revoante que parecia de filme de espadachins. Com o correr dos anos, o senhor abade subiu a senhor arcipreste, pendurou a sotaina e começou a sair à rua de fato preto e cabeção de gola alta, passou a cumprimentar-me de mãozada e fizeram-no senhor cónego, uma desfeita, no meu modesto ponto de vista. Cónego Leite de Araújo. Era um homem elegante, distinto, culto, bom e pobre. Dava. E tinha um sorriso. Era um ser humano com defeitos e extraordinário. E foi meu amigo. Não sei se Fafe tem a contabilidade em dia com a sua memória.
No tempo em que havia padres em Portugal, o senhor abade de Fafe tinha consigo ao serviço da paróquia, para além do padre Adélio que ensaiava o orfeão, dois jovens coadjutores, palavra que eu não sabia dizer mas que me fazia rir, porque imaginava que, com um título assim, aqueles dois eram padres de acender e apagar. Tanto quanto sei agora, apagaram-se quase todos os que por lá passaram. Apagaram-se como padres, quer-se dizer. Tiveram muitos filhos, foram muito felizes e casaram, geralmente por esta ordem. Em todo o caso, a esses já eu não beijava a mão, mas pedia sabença. Tínhamos isso combinado. E eu ganhava o "Deus te abençoe" que me dava tanto jeito.

No tempo em que havia padres em Portugal, não havia Paula Bobone, graças a Deus. Por isso o beija-mão era uma coisa, por assim dizer, pouco higiénica. Porque o beijo era mesmo beijo e não a mariquice do beijo de faz de conta, a "simulação de beijo" recomendada pela etiqueta da treta. Eu pedia sabença com beija-mão também ao meu avô e à minha avó da Bomba e ao meu avô e à minha avó de Basto, gente de trabalho que tinha as mãos como calhava quando eu lá esparramava o reverencial ósculo. Sim, seria talvez pouco higiénico, mas era verdadeiro. E ainda cá estou.
Durante toda a minha vida pedi sabença. Ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Aos poucos fui desfazendo a corruptela, passei pela "sabênção" até chegar ao que peço há anos: "a sua bênção". É verdade, continuo a pedir a bênção à minha mãe e aos meus tios e tias, alguns apenas um pouco mais velhos do que eu. E não é só por respeito ou porque me ensinaram em pequenino. Eu acredito nas bênçãos. Por falar nisso: sabença, senhor abade!

domingo, 28 de agosto de 2022

Moisés, como uma corrente de ar

Hoje é Dia de São Moisés, o Etíope, ou o Negro, ou o Grande, ou o Ladrão, ou o Abissínio, ou o Forte, também conhecido como Aba Moisés, e eu lembrei-me de Moisés, o fafense, ou o gasoso. Naturalmente. E falar de Moisés, o nosso, peço licença a quem me lê, é falar de peidos. Sobretudo.
Mas aviso já. Não admito escândalos burgessos, falsas virgindades ofendidas ou moralismos de trazer por casa! O peido, está provado, é uma insofismável verdade da vida, tal como a morte e dois mais dois serem quatro, e quem disser o contrário é néscio. Ou mentiroso. Ou néscio e mentiroso. Ou mentiroso e néscio. E acima de tudo infeliz.
Infelizes realmente os que nunca ouviram o Moisés a peidar-se pelo soleno da noite, ali para os lados da Feira das Galinhas, que hoje parece-me que é um parque de estacionamento e chama-se Praceta Egas Moniz. Aquilo é que era um artista, um verdadeiro predestinado, o exímio executante em pessoa. O Moisés. Os peidos do Moisés, impõe-se que aqui se diga, eram acutilantes, poderosos como pragas, abriam mares, incendiavam sarças, esculpiam lei na pedra, abanavam os alicerces da Igreja Nova, levantada mesmo em frente, Deus nos perdoe, não sei como é que o Moisés nunca se aleijou. O Moisés peidava a capella. Os peidos do Moisés seriam hoje considerados e explorados e exportados como energia alternativa. Mas também eram mansos, melodiosos, trinados, sin-co-pa-dos, contidos, meditabundos, quase confidenciais. O Moisés solfista trabalhava, com efeito, em vários registos, um dos quais, de interpretação particularmente exigente, mezzo piano, chamava-se "rasgar chita" e costumava encerrar o concerto, com mais dois ou três encores. Os peidos do Moisés, que aceitava pedidos como crooner que se preze, eram um tremendo êxito. Para uma carreira internacional que se adivinhava, faltou-lhe talvez entrar em estúdio e gravar um disco, provavelmente de janelas abertas, e não sei se isso seria tecnicamente possível. Em todo o caso, ficou a perder a posteridade, que realmente hoje em dia não sabe o que era bom.
Para rematar, é preciso que se note que o sintetizador, instrumento musical electrónico tal como actualmente o conhecemos, ainda não tinha sido inventado. Moisés era o seu próprio instrumento. No seu tempo, e no panorama artístico nacional, Moisés foi profético, vanguardista, pioneiro, radical, fracturante. Uma autêntica pedrada no charco. Uma indesmentível lufada de ar fresco, por assim dizer...

A honra dos Silvas

A minha família leva muito a sério o seu apelido Von Doellinger. Eu não. A minha família tem muito orgulho no seu apelido Von Doellinger. Eu tanto se me dá. Para mim, ser Von Doellinger ou ser Silva é igual ao litro, e só tenho pena de não ir ao nome do meu lado de Basto, que é Pereira, mas esqueceram-se.
Quando assim falo, que é sempre, os meus parentes caem-me em cima, protestam a sua mais entranhada vaidade onomástica e ameaçam banir-me do clã, e eu contra isso nada. Ouço-os, isto é, faço de conta que os ouço, mas penso noutra coisa. Penso nos Silvas. Penso como seria bonito ver alguém sair a terreiro em defesa da honra dos Silvas. Exactamente: alguém de velha têmpera e honra antiga que, armado em Von Doellinger de corrida, ousasse chegar-se à frente para gritar alto e bom som, de estandarte em punho e peito inflado de altivez:
- Eu tenho muito orgulho em ser um Silva, há algum problema?!...
Os Silvas, é preciso que se note, não são uma merda qualquer, e não estou sequer a falar do ilustre casal de ex-inquilinos do Palácio de Belém, que faz aqui tanta falta como o queijo gruyère numa caldeirada de enguias. A primeira linhagem de Silvas é de príncipes e anterior à fundação da nacionalidade portuguesa. Os Silvas de pé-rapado conquistaram Portugal e os Brasis, é só ir ver as listas telefónicas. Os Silvas são uns grandes pinantes, é só ir ver os registos dos motéis, mas aqui são nomes falsos. Os Silvas, se um dia se chateiam, o País pára, porque os Silvas são o País. Chamar ó Silva! num autocarro articulado da Carris é um perigo: os 145 passageiros (48 sentados, 96 de pé e um numa cadeira de rodas) olham todos para trás e o motorista também. O Silva dos Plásticos, toda a gente sabe, era mais conhecido do que o Papa. Silva I seria, aliás, um bom nome para um Papa português, e há logo quem pense no poeta José Tolentino Mendonça
Embora de nascença ninguém escolha ser Silva, nem ser nome nenhum, está visto que os Silvas só têm motivos de orgulho. E quem diz os Silvas, diz os Santos, os Ferreiras, os Antunes, os Rodrigues, os Costas, os Oliveiras, os Martins, os Sousas, os Gonçalves, os Almeidas, os Carvalhos, os Farias, os Magalhães, os Alves, os Teixeiras, os Lopes, os Ribeiros e até os Brochados. Sim, porque não os Brochados? Há algum problema?

P.S. - Símbolo do Super-Homem retirado da Wikipédia.

sábado, 27 de agosto de 2022

Quem vê caras não vê orações

Um daqueles famosos restaurantes de peixe aqui ao lado, na Rua Heróis de França, Matosinhos, estão a ver? Pouco passa das oito da manhã, uma velhinha varre cerimoniosamente a esplanada. Asseada como se fosse domingo, como se fosse a minha avó da Bomba de repente, corpo franzino, cabelos brancos de neve, ajeitados, uma carinha doce, redonda como um minúsculo sol resplandecendo bondade, olhos apontados ao chão, espertos, criteriosos, a velhinha varre, varre, vagarosa e competente. Se os anjos varressem e fossem velhinhas, e competentes, os anjos eram ela certamente. A rua naquele sítio àquela hora éramos a velhinha e eu. Eu, que venho de mercar sardinhas, estremeço de comoção.
Varre, varre a velhinha doce e cerimoniosa, olhos espertos e belos. Olhos que não enganam. Bondosos. Cara de sol, de anjo. E diz, como se fosse um mantra ou, vá lá, a recitação do terço: - Filhos da puta! Era mas é fodê-los! Mandá-los a todos prò caralho! À puta que os pariu!...
É. Ninguém diga que está bem.

Lá íamos cantado e rindo...

Foto Hernâni Von Doellinger
A Mocidade Portuguesa era uma organização juvenil do Estado Novo e, em certo sentido-descansar-à vontade, complementava ou concorria na paz do Senhor com os escuteiros de que a Igreja Católica resolvera tomar conta, pelo sim e pelo não. Para os devidos efeitos, e a bem da Nação, a Mocidade Portuguesa era fascista, embora a rapaziada não fizesse ideia, e os escuteiros eram, nas desbragadas palavras do humorista brasileiro Juca Chaves, "um bando de garotos vestidos de idiotas, comandados por um idiota vestido de garoto". Consta que Juca Chaves teve de pedir desculpas pelo abuso. A Igreja não há meio.
Mas vamos ao que interessa: Fafe. Fafe dos anos sessenta do século passado, no vestíbulo da Revolução. Naquele tempo Fafe era uma terra tão fascista como todas as outras terras de Portugal, mas, convém não esquecer, muito mais antifascista do que a maioria. Fafe tinha evidentemente Legião Portuguesa, Mocidade, Concordata, União Nacional, grémios, casas do povo, chapéu na mão, fascistas desde pequeninos, salazaristas mais que o próprio, bufos da Pide, falsos bufos da Pide, simples filhos da puta e regedores de pistola à cinta, mas tinha também a Fábrica do Ferro, o Bugio, operários informados, comunistas, associações culturais, grupos de teatro, jornais, o Senhor Teixeira e Castro, gente a querer saber, o Senhor Maciel, o Teatro-Cinema, a Dona Laura Summavielle, o Major Miguel Ferreira, dezenas de presos políticos, o Café Avenida, o Senhor Saldanha, o Senhor Ferreira do Hospital, outros senhores saldanhas e ferreiras do hospital de quem não sei ou não me lembro agora. Fafe teve mártires do fascismo. Procurem-nos na antiga Feira Velha: estão lá dois nomes importantes - Joaquim Lemos de Oliveira, o Repas, e Gervásio da Costa, fafenses que deram a vida pela Liberdade. Foram levados, torturados e assassinados pela Pide.

O nomes continuam lá, não continuam? A praça foi baptizada por causa deles, dos nossos, fafenses, Mártires do Fascismo. O Repas e o Gervásio. Não era uma homenagem urbi et orbi a todos os mártires de todos os fascismos, de todos os sítios e de todos os tempos. Os nomes dos nossos continuam lá na nossa praça, não continuam? Digam-me que sim, por favor, nem que seja mentira.

A Mocidade Portuguesa (Organização Nacional Mocidade Portuguesa) tinha bandeiras dos Heróis do Mar e as bandeiras chamavam-se pendões ou estandartes, tinha fardas catitas, toques de clarim e toque de caixa, cintos com S de Salazar na fivela, comandantes-de-castelo, saudação nazi-fascista e hino privativo, Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim. Tinha também umas mochilas de lona verde-acastanhada muito jeitosas e tinha tendas, pás, picaretas, cantis e acampamentos, e eu invejava o mundo de aventuras daquela moçarada. E tinha a Chama, assim com capitular.
A Chama era um sarau realizado ao ar livre e à volta de uma fogueira com as achas obsessivocompulsivamente organizadas num círculo mais que perfeito: diziam-se poemas, cantava-se, representava-se teatrinho, ensinavam-se urbanidades, exaltava-se o amor à Pátria. Uma vez houve uma Chama nas traseiras da Escola Industrial, aquele pequeno terreiro hoje esmagado pelo anfiteatro exterior da Biblioteca Municipal de Fafe, o que demonstra mais uma vez que, como dizia o saudoso Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado". Era do lado da frente da escola, actualmente jardim da Casa da Cultura, que a Mocidade montava formatura ao fim-de-semana, para depois arruar vila adiante, e eu atrás, de passo certo, levado, levado sim...
Mas a tal Chama. Eu fui ver. Do meu Santo Velho ao Santo Novo, onde ficava a Escola Industrial, eram campos de milho e quintais com árvores de fruta, para além de uma ou duas ramadas de uvas de onde, na época, gaipelávamos a bom gaipelar até nos desfazermos em tremendas caganeiras, com licença de vosselências. Por aí ia. A meio do caminho havia uma nora desactivada, mais à frente uma mina já com motor, creio que do Sr. Mijão, e o que eu gostava de carregar no botão verde e pôr a geringonça a aguar, sufocando-a logo a seguir com o botão vermelho, para fugir dali a cem à hora, antes que quem de direito desse pelo basqueiro e corresse a esticar-me o orelhame.

Queria também confessar o que se segue, porque esta memória não me larga: o casarão de lavrador anexo ao velho edifício onde funcionava a Escola Industrial tinha uma espécie de túnel, obra em arco, baixinho, esconso, escuro, por onde se passava de um lado para o outro, das traseiras para a frente ou vice-versa, e ali se faziam umas belas emboscadas para apalpar moças, infelizmente com mais vontade do que jeito. Hoje chamam àquilo tudo Avenida das Forças Armadas e é muito bem feito.

A Chama foi uma merda. Os miúdos (mais velhos do que eu, é preciso que se note) representavam muito mal, os poeminhas eram lengalengas, as cantigas desafinadas, e pela primeira vez na minha vida a começar assisti a uma branca: uma menina ou um menino tinha decorado qualquer coisa para dizer mas não se lembrava de quê - e, depois de várias tentativas a seco, encharcou definitivamente e desatou a chorar. Fiquei triste com ele (ou ela), mas não fiquei freguês.

(Especialistas em fivelas de cintos garantem que o S nas fivelas dos cintos da Mocidade Portuguesa não tinha nada a ver com Salazar, posto que quereria dizer, isso sim, "Servir no Sacrifício" ou somente "Servir". Ou Sabrina. Pois. E as SS eram a Segurança Social do Terceiro Reich, Hitler chamava-se assim para não se confundir com Hernâni e o Z não é de Zorro mas de Zeferino. A mim faz-me uma certa diferença: o Zorro sou eu, desde os livrinhos do Marreca, e Zeferino realmente não me dá jeito nenhum.)

Conta a lenda que 4

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Eu sou o outro

Foto Tarrenego!
É uma chatice ter um nome assim como o meu, tão aparentemente distintivo, e afinal não ser caso único. Já não me bastava a complicação de passar a vida a repetir vezes sem conta o meu sobrenome ao telefone, sem que ninguém me perceba, acabando depois por dizer que me chamo Hernâni Silva, e fica o assunto resolvido, descobri aqui atrasado que há dois Hernâni Von Doellinger no Facebook e um deles figura também no catálogo de um site de encontros. Serão meus parentes e boa gente certamente que por acaso não conheço, e a culpa há-de ser minha, mas juro que não sou eu. Não sou nenhum dos dois nem sou os dois. Não aderi ao Facebook, desinteressa-me. E não procuro parceira, estou servido. Eu sou o outro Hernâni Von Doellinger. Ou Silva, se der mais jeito.

Atenção, muita atenção!

- Atenção, muita atenção! Pede-se a comparação dos pegantes ao andor da Senhora do Alípio junto ao clipe onde estão os antifalantes.
Aos anos que isto vai, ali para os lados de Amares, ainda as romarias não eram abrilhantadas com Fernando Rocha e rulotes de fast-food, mas por lá andaria a Banda de Revelhe. E que saudades que eu tenho desse tempo visionário e vanguardeiro em que o acordo ortofónico não havia sido inventado mas já era galhardamente roufenhado por altifalantes elevados às mais eucaliptais cruchas, para que a coisa cá em baixo não passasse despercebida lá em cima a Deus Nosso Senhor, que é praticamente tão brasileiro como português.
Decerto que a procissão saiu e o andor da Senhora do Alívio também. Já não sei como é que correu a "comparação". Nem me lembro em que estado terá chegado ao "clipe" o grupo de "pegantes" retardatários. Mas devia ser líquido, o estado, né?...

O meu cinema paraíso

Foto Hernâni Von Doellinger
Eu era miúdo. Éramos todos miúdos, como nos convinha. E íamos em bando até à porta da Dona Laura Summavielle, filha, que morava à beira da Igreja Nova. Os Summavielles (Sumaviéisss, se lido e dito à nossa moda) eram os donos do Teatro-Cinema de Fafe, do Cinema, assim explicado sem outros salamaleques. E nós íamos pedir à Dona Laura, que devia ser o melhor coração da família e para mim era o melhor coração do mundo, que nos levasse a ver o filme. De graça. E a boa senhora levava.
A coisa tinha o seu ritual. Esperar à porta do cinema não valia, tínhamos de ir mesmo a casa da Dona Laura, que também não era longe. Éramos para aí uns seis ou sete, às vezes menos, consoante o lado para que tinham acordado os pais de cada qual, e devíamos lá chegar pelo menos com uma boa meia hora de avanço em relação à hora de saída prevista da senhora. Chegávamos e esperávamos. Não se batia à porta, não se tocava na campainha, esperávamos apenas, calados como ratos, porque o mais pequeno ruído podia deitar tudo a perder.
A senhora saía, encarava-nos sempre com um grande sorriso e nós continuávamos sem dizer nada, nem era preciso. Púnhamo-nos atrás dela, em fila, como pintainhos seguindo a mãe galinha, e, agora que penso nisto, acho que devia ter sido uma coisa bonita de se ver, aquele extravagante grupo a atravessar o Largo da Igreja e a descer até ao Cinema, na máxima compostura e no mais religioso silêncio.
A Dona Laura entrava e nós ficávamos cá fora, bem guardados pelo Senhor Leitão porteiro, que era mau como as cobras e vestia um capote castanho, com botões dourados e gola vermelha, que até parecia um general soviético, embora na bilheteira é que estivesse o Senhor Castro, comunista, alfaiate e bom amigo.
Perdíamos os desenhos animados, perdíamos os "documentários", mas na horinha do arranque do filme a sério vinha a ordem da Dona Laura e imediatamente desatávamos a correr Cinema acima, dois andares a bater chancas em chão de soalho com escarradores, numa trovoada que quase deitava a casa abaixo, até chegarmos ao nosso sítio. Só ali voltávamos a portar-nos bem, sempre perante o olhar bondoso e compreensivo da nossa benfeitora, que, do seu camarote ao lado da cabina de projecção do Senhor Reinaldo Pires, nos lançava mais um sorriso, com o dedo de chiu sobre os lábios finos.
O nosso sítio era uma frisa e cheirava a veludo velho e tabaco. Quase que pertencíamos ao filme! O som dos altifalantes entrava-nos pelo corpo dentro, estremecia-nos, eu era do tamanho dum buraco do nariz do Maciste e tinha de me afastar para não desaparecer na caverna. Foi ali que eu conheci pessoalmente o Ursus, o Spartacus, o Ben-Hur e o Hércules e podem crer que aqueles cenários de papelão só pareciam de papelão, de resto eram mesmo a sério, e eu acreditava que era por causa do papelão que os filmes eram peplum. Eu sei, porque estive nos filmes. Fui eu que ajudei o Sansão a dizer "morra Sansão e todos os que aqui estão", para eu e ele nos vingarmos da traidora da Dalila e acabarmos com o filme logo ali, porque aquilo não se faz, e não me venham dizer que ele não disse nada disto. Dissemos!
Perguntassem ao "Sandim". Ele é que ia à estação de comboios "buscar os artistas", num carrinho com rodas de madeira. Mas não trazia os beijos todos. Não cabiam nas bobinas, decerto. As cópias dos filmes eram velhas, cheias de cortes, no melhor e mais quentinho passavam sempre à frente. Como o Jornal da Igreja Nova trazia uma sinopse das películas do fim-de-semana, nós achávamos que o Senhor Arcipreste fazia um visionamento prévio e culpávamo-lo por aquele imperdoável acto de censura. Mal eu sabia que ainda havia de ser feito um filme sobre esta minha história, mas em italiano.
No meu Cinema, no tempo em que o que eu queria era crescer para ver filmes "para maiores de 17", havia também umas senhoras da Rua de Baixo e de Santo Ovídio que faziam de arrumadoras e tomavam conta do buffet, onde serviam gasosas, laranjadas, café de cafeteira e rebuçados mulatos. Ao intervalo, enquanto o ardina entrava plateia dentro com a edição do Norte Desportivo de domingo à noite, já com os resultados e relatos dos jogos todos, os espectadores recebiam umas senhas para irem lá fora tomar café em condições.
No meu Cinema liam-se as legendas em voz alta para os analfabetos que não eram poucos. O respeito e a, como hoje se diria, segurança eram zelados pelo Senhor Barroco, pelos Senhor José e Senhor António do Santo e pelo Senhor António Quim, que eu sempre confundi com o outro, o de "Zorba, o Grego". Foi na companhia desta gente que eu cresci. Mal comecei a ganhar, passei a ter bilhete reservado para todas as sessões e, depois do 25 de Abril, até vi o "Último Tango em Paris". Duas vezes. Seguidas, olha o espanto!

Deixei Fafe no início da década de 1980 e o meu Cinema entrou em ruína. Pensei que outros tivessem ficado a tomar conta, mas enganei-me. Depois de 25 anos de inactividade, muita politiquice e um impressionante trabalho de recuperação, o Teatro-Cinema de Fafe reabriu portas em 2009, sem Maciste, sem Sansão nem Dalila, sem o Senhor José do Santo e sem a Dona Laura Summavielle. Já lá não estão, já cá não estão. O novo Teatro-Cinema de Fafe, que só conheço por fora, funciona agora como entreposto cultural camarário. O que é certamente aplaudível e tem muito mais cagança - mas não é a mesma coisa.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Agá Ramos, ao dispor

Foto Tarrenego!
Gosto de palavras, gosto do falar antigo a que amiúde gosto de chamar fafês, gosto de nomes, gosto de brincar com nomes. Gosto de me rir. E às vezes rio-me com os nomes que me vêm à cabeça, por exemplo Al Mirante, Bill Tre, Sam Dwich, Sara Pinto, Rick Ardo, Poly Ban, Bica Bornato, Bee Tock, Herr Nesto, Sade Miranda, Bob Adela, Rui Barbo, Bib Alves, Ono Mástico, Ray Naldo, Ca Trel, Pio Nés, Kris Talino, Dick São, Tony Truante, Sal Amandra, Mick Ose, Lee Moens, Rita Lina, Aury Cular, Ted Io, Nick Utina, Otto Mano, Su Papo, Tuli Creme, Pan Ike, Gal Déria, Philip Inas, Ary Ston, Jerry Kan, Karl Inga, Bruce Li, Bruce Lose, Andy Capp, Car Burant, Lu Na Park e Buzz U-Lak. Rio-me também do meu apelido, doellinger, que não levo a sério e só me arranja confusões. Silva servia-me muito bem. E sabeis que mais? Quem se leva a sério é tolo. Eu sou o principal motivo do meu riso, e, podeis crer, farto-me de rir. Rio-me de mim até na desgraça, e a desgraça é o meu dia-a-dia.
Eu assino agá. Exactamente agá pequenino ponto, h., sei muito bem o meu lugar e o meu tamanho no mundo. É: agá, de hernâni, e pronto.

O meu sonho, um dos meus mais de mil inconsoláveis sonhos, era, porém, chamar-me e poder assinar Ramos. Isso. H. Ramos. Quero dizer, agá ramos.

O rapaz dos altifalantes

Era a sua primeira vez. Agarrou pois no microfone, coçou-lhe a cabecinha com a unhaca da cera, soprou-lhe o pó num imenso e sonoro perdigoto e, sem mais delongas, disse:
- Alô, chape, chape, um, dois. Um, dois, três, microfone, experiência. Chape, chape, um, dois. Um, dois, três, quatro, microfone...
E a multidão irrompeu em aplausos.

A frase era: "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Mas só funcionava, a célebre frase, se fosse metida no meio de uma marcha do John Philip Sousa, que para mim era um músico português de Castelo de Paiva que tinha ido para a América em pequenino. Eu sabia que no Pejão havia por aquela altura uma grande banda de música, quase tão boa como a nossa, a de Revelhe, e era por isso. Quanto à marcha propriamente dita, de preferência Stars And Stripes Forever. Isso, sim, era serviço completo, coisa profissional.
Eu adorava os altifalantes. Longe ou perto, os altifalantes chamavam por mim e eu ia. Eram sinal de futebol no Campo da Granja, eram Festa da Bomba, eram o Santo António na minha rua, eram a Senhora de Antime que vinha à vila numa tremenda e comovente procissão. E eu adorava aquela frase. O meu sonho era dizê-la quando fosse grande.
E disse. Vezes sem conta, anos mais tarde, já os altifalantes tinham sido promovidos a "instalações sonoras" e a bola rolava no Estádio de campo pelado. Sim, o microfone agora era meu, eu era o rapaz da "constituição das equipas" e daqueles reclames muito jeitosos que terminavam todos em "... nesta simpática lo-ca-li-da-deee". E os anúncios pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila, nos altifalantezinhos pendurados nas árvores em Cima da Arcada, sim, também era eu. Mas estavam gravados e a frase era-me impedida. E nem imaginam o que eu sofria quando andava com o Pimenta pelas aldeias de Fafe a apregoar os filmes do cinema ao ar livre, as cornetas atadas às três pancadas no tejadilho da velha catrel e eu, aos solavancos contra o tecto, sem poder dizer a frase. Mas não encaixava de maneira nenhuma a puta da frase. Que seca! E os filmes também.
"E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Era a frase da minha infância e andou sempre comigo. Até na profissão. Quando passei pela Informação da Rádio Comercial, no tempo em que a Comercial fazia parte do universo RDP, muitas vezes a disse, como teste, na gravação de uma notícia ou apenas por brincadeira, de microfone fechado, antes de ir para o ar com o noticiário. "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde".
Nunca chegou cá fora, e foi o que os senhores ouvintes perderam - como certamente estão agora a perceber. Em contrapartida, uma vez, no final de um bloco noticioso particularmente bem conseguido, saiu-nos - ao colega de cabina e a mim - um "Até os comemos!", de microfone involuntariamente aberto e destinatários certos, que ainda hoje é o nosso orgulho.
E realmente "Até os comemos!" também é uma bela frase e resulta muito bem em rádio, sobretudo se for numa rádio sustentada pelos contribuintes. Mas, verdade seja dita, não tem comparação com a outra, a gloriosa, a dos altifalantes, pois não?

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Craque, craque era o Valença

Foto retirado de O JOGO
Foi há coisa de dois anos, esbarrei sem querer nesta fotografia. Encontrei-a na edição digital do jornal desportivo O Jogo, ilustrando um artigo assinado por Filipe Alexandre Dias, sob o título "Jogar, combater e morrer na Guerra do Ultramar". A foto não está assinada, infelizmente, mas eu conheço-a desde moço, passou-me pela mão, tenho-a de memória, porque está lá um dos meus maiores ídolos da bola: o Valença, ou o Fafe, como era conhecido na tropa e naquela superequipa do FC Moxico - mais do que uma equipa de futebol, provavelmente um projecto político do regime. O FC Moxico foi campeão de Angola na época de 1972/73, portanto no tempo ainda da Guerra Colonial, e ao lado do Valença pontificavam outros artistas como Chico Gordo, Varela ou Seninho. Exactamente, esse Seninho supersónico que, pelo FC Porto, foi a Old Trafford enfiar dois ao todo-poderoso Manchester United, em 1977, para a Taça das Taças, e por causa disso acabou por deixar as Antas com um contrato milionário para se juntar a Pelé, Rivelino, Carlos Alberto, Beckenbauer, Chinaglia ou Neskeens nos galácticos originais, os New York Cosmos, nos EUA.
Mas o Valença. O Valença era um médio extraordinário. Um craque com as letras todas, que para ele por acaso até são poucas. Tecnicista, raçudo, clarividente, sensato, malandro, mandão, era quase impossível tirar-lhe a bola sem falta. Tinha tudo. Tinha tudo para muito mais altos voos, mas se calhar faltou-lhe... o feitio. Isso, o feitio - vamos dizer assim. Teve, em todo o caso, uma carreira brilhante. Foi durante anos capitão da AD Fafe e mais tarde treinador, chamando-se agora António Valença.
De resto, pensando bem, Fafe era por aquele tempo uma abençoada terra de médios extraordinários. E lembro-me do Raul, lembro-me do Ismael, lembro-me do Albano, que jogava a régua e esquadro. Que luxo! Que categoria! Que classe!
Claro que o Tónio (António Ribeiro, de baptismo) calha também ser meu amigo. No retrato, para quem não o conhece, o Valença é o segundo de joelhos a contar da direita de quem vê, com a criancinha à frente. E, posto que gozão-mor do reino, era o verdadeiro jogador da bola. Um dos últimos, pelo menos. 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O Baptista de Antime é que inventou as sinergias

Foto Hernâni Von Doellinger
No princípio era a SIF. Depois é que apareceram os altifalantes do Costa e Castro de Travassós. É assim que eu me lembro. A SIF do meu vizinho Zé - o Zé da SIF -, do senhor Vilhena e até do filho do senhor Vilhena. Escrevo de memória, mas creio que estou a dizer bem. Quando não tinha o meu pai, eu entrava no futebol com o Zé da SIF, fazendo de conta que carregava uma corneta que era do meu tamanho, e por isso é que sou um especialista em Campo da Granja e em "amplificações sonoras", com formação em feiras, festas e romarias, missas cantadas e procissões. Desde pequenino.
"Amplificações sonoras" - atentem bem. Façam como eu: digam "amplificações sonoras" em voz alta. Mais alto. Agora repitam com voz de "continue connosco" e arrastando as sílabas. Não são palavras mágicas? São. Mas não é isso que aqui interessa.
Onde eu quero chegar é ao Baptista de Antime. Às "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", e que, quando apareceram no mercado, rebentaram logo com a concorrência.
E eu acho que consigo perceber porquê. O Baptista de Antime era um tipo porreiro. Até tinha um tasco - e isso, salvo duvidosas excepções, é o melhor que se pode dizer seja de quem for. Apesar de disputar a rua com o Lando da Rampa, que era realmente vinho de outra pipa, o bom do senhor Baptista manteve o tasco e lançou-se nos altifalantes com um sucesso que só ouvido. Parece que o estou a ver agora, hiperactivo, falador, a ligar fios atrás de fios, cigarro na boca, a barba por fazer e a mão a mandar para trás a melena rebelde do cabelo brilhantinado, sempre magro, sempre de fato, sempre disponível e sorridente. Tenho ideia de que os altifalantes para a Festa da Bomba eram de graça, mas se calhar aqui estou a exagerar.
De tão bom, de tão dado às pessoas e vice-versa, o Baptista de Antime até cometeu a proeza de ganhar a Junta de Freguesia para o Partido Comunista. Antime fica no concelho de Fafe, é preciso que se note. E Fafe, para quem não sabe, fica no Minho, pertence ao distrito de Braga. Estão a ver a façanha?
Um dia, o Baptista de Antime, que já tinha um tasco e alugava "amplificações sonoras" e electricidade em pó aos fins-de-semana, resolveu alargar a sua carteira de negócios ao ramo da funerária. E em boa hora o fez, numa esperta lógica de complementaridade que continuaria a ser dinheiro em caixa. E em caixão. Romarias e funerais, o casamento perfeito, na alegria e na tristeza, venha mais um copo. O homem estava em todas. E a treta das sinergias foi ele que inventou.

Os funerais do Baptista eram muito gabados. O Zé Maria Sapateiro dizia que eram "uma categoria".
O Zé Maria Sapateiro, que sabia muito de funerais, era também de Antime e pai da minha querida tia Laura. Era, portanto, sogro do meu tio e padrinho Américo. Era avô do Zé e da Zulmira - para que os de agora se situem. Em cima de tudo isto, o senhor Zé Maria era uma figura, malandro e esforçado piadista, com o porém do benfiquismo.
Eu gostava muito de ouvir o senhor Zé Maria. E o senhor Zé Maria gostava de terminar as suas dissertações, à mesa da cozinha da casa do Lombo, com um "Viva o Benfica e mais nada!" que me incomodava um bocadinho. Ainda por cima, conhecendo a cor do meu coração, que era e é só uma - azul e branco -, insistia em reclamar os meus améns, "Não é, Hernâni?", porque, dizia ele, "O Hernâni é que sabe". E eu não sabia.
Uma vez o senhor Zé Maria morreu e eu fui a Fafe ao funeral. Foi um funeral de categoria. Deve ter sido o Baptista. Só pode ter sido o Baptista.

Conheci gente extraordinária em Fafe. E às vezes arrependo-me de ter crescido. Tenho saudades do tempo em que a vida da vila andava ao toque do sino da Igreja Nova e do apito da Fábrica do Ferro. É. A minha terra infelizmente já não existe.

domingo, 21 de agosto de 2022

Passem a bola ao Aníbal!

Foto Hernâni Von Doellinger
Sou do tempo em que havia respeito. No meu tempo havia educação, havia tabuada, havia reguadas e havia catequese, levávamos no focinho em casa, na escola e na sacristia, mas demos todos em homens, incluindo as que, por razões de força maior, deram em mulheres. E hoje em dia?
Hoje em dia não há respeito por nada, nem pelos velhos, nem pelos novos, nem pelos entremeados, nem pelos pais, nem pelos filhos, nem pela missa, nem pelos professores, nem pelo sagrado futebol - e daqui não vamos mais longe. As pessoas pagam fortunas para entrarem no estádio e depois não vêem o jogo, espreitam-no pelo ecrã do telemóvel, "filmam", "fotografam", viram as costas ao campo, telefonam-se, vão ao YouTube, lançam tochas, fazem selfies, mandam sms umas às outras, cadeira ao lado, revelam a emoção do momento no Facebook ou no Instagram, mas não ligam à bola, não sabem o resultado, não sabem sequer quem são "os nossos", querem ver se aparecem na televisão, nem um palavrãozinho ao árbitro, nem um vai à merda! ao defesa-esquerdo que é uma nódoa, nem um uiiii! ao tiro a rasar poste. Como se o futebol sem caralhadas ainda fosse futebol. Que grande falta de respeito pelos intervenientes, que ausência de presença, que ignorância da tradição...
No meu tempo sabíamos como nos devíamos comportar. O futebol à antiga tinha a sua própria gramática. Da bancada (e, aqui, bancada é uma mera força de expressão), tínhamos uma palavra a dizer em campo. Havia um léxico muito concreto e rigoroso que nos era ensinado desde tenra idade, por exemplo:
- Olha a hora!...
- Está a sentar!...
- Já não chove!...
- Não jogas nada!...
- Anjinho de merda!...
- És um arrocho!...
- Abre-me esses olhos, ó cego!..
- Ó bandeirinha, estás fodido comigo!...
- Ó gatuno!...
- Vais levar poucas, vais!...
- Aperta com ele!...
- Dá-lhe!...
- Parte-lhe uma perna!...
- Ó filhadaputa, ó boi!...
- És muito corno!...
- Força prà frente, caralho, pá!...
- Chuta, que o guarda-redes é anão!...
- Chuta, caralho!...
- Corta, caralho!...
- Desce, caralho!...
- Sobe, caralho!...
- Corre, caralho!..
- Tira o gajo, caralho!...
- Mete outro, caralho!...
Pelo menos em Fafe era assim, primeiro no Campo da Granja e depois no "Estádio". A interacção era tão próxima, tão intensa, que, às vezes, mortinhos por fazerem parte, os próprios jogadores tomavam a iniciativa de mandar foder os adeptos, num eloquente gesto largo ou num simples chocalhar de colhões, como quem diz e diziam "ide para o caralho, caralho, correi vós, caralho"...

Na verdade, o vocativo caralho era sacramental. Dissesse-se o que se dissesse, nem que fosse "as horas?", e se, no final, se lhe enfiasse o caralho como se fosse um sufixo, estávamos obviamente a falar de futebol. Do futebol puro, do tempo em que havia educação e respeito pelo jogo. Sobretudo respeito e indesmentível educação. Até durante o intervalo, no bar, mandando vir "seis cervejas, caralho" ou "quatro malgas do novo, caralho"...

Destoava o Aníbal Carriço, isto também é verdade. O bom e querido amigo Aníbal Rodrigues, porém Carriço, que, tantas vezes farto da engonha de falsos habilidosos, algum brinca-na-areia de trazer por casa, gritava de cá de fora com voz pausada e grave, solenemente, de mãos na boca em altifalante: "Passa a bola! PA-SSA A BO-LA!! PA-SSA A BOO-LAA!!!..."
O grande Aníbal Carriço, meu ilustre camarada de jornais e empolgado parceiro de charlas tasqueiras, foi um dos mais promissores jovens jogadores da AD Fafe da sua geração, mas a Guerra Colonial e uma série de balázios no lombo impediram-lhe o futuro. Salvou-se-lhe felizmente a tonitruância.
De acordo com os dados recolhidos pela estação sísmica da Gavieira, em Viana do Castelo, o "PA-SSA A BOO-LAA!!!..." do Aníbal dito no estádio do Fafe ouvia-se (e eu quero tanto que ainda se ouça!), consoante para onde o vento estivesse virado, de Guimarães até Felgueiras, da Póvoa de Lanhoso até Vieira do Minho e de Cabeceiras de Basto até Celorico do mesmo. Isto, se não estou em erro.
A dialéctica e a exegese futebolísticas estão modernamente aos cuidados de especialistas televisivos, de paineleiros. Mas, palavra de honra, por mais paineleiros que os paineleiros sejam: ver a bola simplesmente, desabafar umas litúrgicas caralhadas, ouvir o Aníbal, e depois ir merendar ao tasco - ainda não descobri melhor maneira de passar uma boa tarde de domingo...

Bristol era em Fafe, ao lado do ferrador

Foto Hernâni Von Doellinger
A criança chorava com evidente entusiasmo. Gritava, gritava, gritava. Ranhava, ranhava, ranhava. E esperneava, esperneava, esperneava. Que lindo! Dava mesmo gosto ouvê-la. Que competência! Que performance! Que espectáculo! Que profissionalismo! Que categoria! Que pulmões! Que ginástica! Via-se logo que era uma criança estrangeira, excepcional, alimentada desde a barriga da mãe a iogurtes, papas e boiões. Nada de caldo de couves, sopas de vinho ou aguardente com figos.
Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada Rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça de Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão, ranhoso e contorcionista. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que of couse camones, mas versão bife, de Bristol.

(Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O nosso Bristol era ali a seguir ao Vale D'Estêvão, se não estou em erro, quem vai em direcção ao Largo. No sítio do Vale D'Estêvão, após um enorme portão de casa de lavrador ou talvez ancestral pensão, funcionava um ferrador, que eu ainda vi em acção - o que tem tudo a ver: eu, o calçado e o ferrador. Dizem que também por ali passou Camilo Castelo de Branco, disso não me lembro. O nosso ferrador atendia também na Feira Velha, às quartas-feiras. Quanto ao Senhor Ferreira do Hospital, foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)

Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Excepcional. Em apenas dois dias...
É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro. E lembrei-me desta porque hoje, no Brasil, é o primeiro dia da Semana Nacional da Criança Excepcional, outra coisa, assunto sério.

Não aldrabem o sinal-da-cruz, valha-me Deus!

Foto Hernâni Von Doellinger
Outro dia, nas cerimónias de Fátima, vi pela televisão e nem queria acreditar. Um sacerdote a fazer um sinal-da-cruz tão aldrabado, tão aldrabado, que se a minha mãe o visse naqueles atabalhoados preparos o mais certo era enfiar-lhe duas ou três lamparinas bem mandadas. Um padre, e ainda por cima no altar, no altar do mundo, a dar o mau exemplo, a gatafunhar um sinal-da-cruz como se fosse jogador de futebol entrando em campo. Só faltou fazê-lo três vezes a trezentos à hora, destrambelhadamente, e depois beijar o dedo ou o pulso, levantar e assoar-se à sotaina e apontar para o emblema. Bem sei que a Igreja portuguesa anda um bocadinho nervosa derivado a isso da pedofilia e outros abusos, mas, valha-me Deus, é o nosso santo-e-senha, é o sinal-da-cruz... 

sábado, 20 de agosto de 2022

E tudo começou no Campo da Granja

Foto Hernâni Von Doellinger
Comecei a ir ao futebol pela mão do meu pai. Íamos ao Campo da Granja ver o Fafe. O Campo da Granja tinha uma bancada pequena apontada ao grande círculo e uma nora atrás da baliza do lado de São Gemil. A nora, neste caso, era um engenho para tirar água de um poço e não funcionava. Mas ficava num altinho muito jeitoso para a assistência. A assistência naquele tempo não era passe para golo, era pessoas. Eu e o meu pai víamos os treinos, os jogos, os juniores em vez da missa (o que arreliava sobremaneira a minha mãe), as reservas e, ao domingo à tarde, o primeiro time. Os domingos à tarde da minha infância eram os melhores dias do mundo. Até tinham altifalantes com marchas do John Philip Sousa, e é preciso que se note que os altifalantes são um acontecimento muito importante na minha vida. Depois o meu pai deixou de ir à bola, por razão de força maior, e eu continuei.
O Campo da Granja desistiu para dar lugar a uma escola de pré-fabricados. E foi bom para todos. Ganhámos o ciclo preparatório e um estádio que havia de ser, mesmo encostado aos Bombeiros. Apareceu-me o buço e, embora uma coisa não tenha a ver com a outra, passei a acompanhar a Associação para todo o lado, pendurado na generosidade de amigos mais velhos e com emprego. Frequentei todos os campos e estádios do Norte do País e, já praticamente de bigode, até fui ao Barreiro arrancar à CUF um lugar nas meias-finais da Taça de Portugal que nos roubaram.
Quando mudei a minha vida para o Porto ainda se ia ao futebol em família. Quero dizer: famílias inteiras, com pai, mãe, avós e netos, sobrinhos, primos, namoradas e namorados. Podia-se ir, não era perigoso. Eu fui logo morar para o Estádio das Antas, Superior Norte, porta com porta com o meu tio Zé da Bomba, que já lá morava há que anos. Consegui converter a minha mulher ao FC Porto, fi-la também sócia e passámos a ir à bola os dois, eu e ela com a cesta do merendeiro atrás, porque naquele tempo não havia lugares marcados e para jogos grandes era mesmo preciso entrar de véspera. E quando digo merendeiro quero dizer exactamente merendeiro: frango assado, sandes de vitela ou lombo de porco, panados, bolinhos de bacalhau, bacalhau frito, pataniscas, feijoada, salada russa, iscas de fígado, rojões, moelas de coelho, arroz à valenciana, filetes de pescada, salpicão, presunto e rebentos de soja, uma toalha de linho em cima dos joelhos, uma garrafosa de verde tinto bem fresquinho, ou duas, e uma garrafa de litro de cerveja, ou duas, por causa dos descontos. Entrava tudo. E marchava tudo. Para não virmos carregados para casa. Aquilo é que era futebol!
Se o FC Porto não jogava nas Antas, então eu ia ao Mar torcer pelo Leixões ou ao Bessa ver o Boavista. Aos sábados puxava pelo Salgueiros em Vidal Pinheiro que Deus tem ou matava o vício no claustrofóbico campo do Infesta, que me dava falta de ar. Sempre que podia, levava comigo o Kiko, meu filho, que tinha a quem sair e gostava muito de ir lanchar aos campos de futebol. Às quartas, dia da minha folga do trabalho, papava campeonatos de reservas, desempates da Taça de Portugal, liguinhas de subida de divisão e torneios de apuramentos de campeões. Em Santo Tirso, em Vila do Conde, na Póvoa de Varzim, em Espinho, em Aveiro, onde calhasse aqui à roda. Havia jogo, eu estava lá. E regalava-me. Mas depois chegaram as sades e as claques "organizadas", como se diz para o crime, e eu vim-me embora.

Às vezes tenho saudades. Tenho saudades do tempo do futebol ingénuo, em estado quase puro, futebol asseado, sem sades, sem ceos e sem administradores e consultores e assessores pornograficamente remunerados e premiados no final do ano ainda que não ganhem nada em campo, ainda que destruam a equipa de futebol e ainda que levem o clube à falência. Do tempo em que os clubes de futebol eram clubes de futebol, associações, colectividades, agremiações. Do tempo em que os presidentes e os directores dos clubes de futebol punham dinheiro do próprio bolso e ainda biscatavam graciosamente ou, como o Fernando da Sede ou o Chester, carregavam botijas de gás às costas até aos balneários para que nada faltasse aos seus "meninos". Do tempo em que dirigentes pagavam bifes a jogadores à rasca da vida. Do tempo dos espectadores, da massa associativa, dos adeptos, dos apaniguados, dos grupos excursionistas, das comissões de auxílio, dos grupos de apoio espontâneos, com bombos e até gigantones e cabeçudos, que não eram poucos. Era o futebol, e o futebol era uma festa! Confesso: às vezes tenho saudades - mas não torno!
O meu pai compreenderá.

Agora dou-me por satisfeito com o que tenho aqui à porta. Aos domingos de manhã eles lá estão. Na praia, fora da época balnear. Jogam à bola porque gostam, são amigos e compinchas, para além disso dá-lhes imenso jeito ganhar apetite para o almoço, Deus os farture. Jogam a sério, têm árbitro, capitães de equipa, minuto de silêncio, estão organizados, já vi assembleias gerais antes dos prélios e minis geladinhas ao intervalo. Há os da praia seca e os da praia molhada. A paixão pelo futebol é a mesma, tremenda e pura. Olímpica. São amadores como quer dizer a palavra. Eles são do meu campeonato. Este futebol basta-me. Para mim, é quase um regresso às origens, com as cores certas e tudo, as cores que até o Vitória de Guimarães acaba de copiar, reconfortante ironia para os fafenses da minha geração. Mas pronto, é o fecho de um círculo praticamente perfeito. Aqui estou, sem nunca ter sabido dar um toque. Foi uma longa e gloriosa caminhada, eu e o futebol. E tudo começou no Campo da Granja...

Sempre atrás do solidó

Foto Hernâni Von Doellinger
Eu não posso andar na rua e ver bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Vou atrás, sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas? Ou era para dar a contagem da luz? Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E da saudade.

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João Massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do seu tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo manso e exacto que ele gostava de explicar, maestro, como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante, por correspondência. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.

A bisculeta

Foto Hernâni Von Doellinger
A bisculeta é um utensílio doméstico com quatro rodas, no mínimo: a roda da frente, a roda de trás, a roda pedaleira e o pinhão. O Chico Americano, por exemplo, tinha uma bisculeta que estacionava à porta do Nacor às vezes em contramão mas sempre de vidros fechados por causa da chuva que também podia aparecer sobretudo no tempo dela. O tempo da chuva antigamente chamava-se Inverno, pelo menos em Fafe. O aparelho que aparece ali representado na fotografia com um homem em cima não é a bisculeta do Chico. A bisculeta do Chico era mesmo uma bisculeta. Vulgarmente conhecida como velocípede sem motor ou bicicleta, há também quem lhe chame automóvel derivado exactamente àquilo das quatro rodas.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Quando a "puta" tocava

Foto Tarrenego!
A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. Os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando ela tocava era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros largavam em pleno andamento ao chegarem ao quartel e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a estorvar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.

(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)

Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...

Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é,  faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Quero denunciar o meu pai

Foto Tarrenego!
Quero fazer uma denúncia: o meu pai era benfiquista e morreu quando eu tinha dez anos. Isso faz-se? Tem algum jeito? Não sei se a CMTV e a TVI vão pegar no caso, mas justificava-se. Porque desgraça tamanha é para dar na televisão. Há que tempos que eu sou mais velho do que o meu pai, e acho mal. E o meu pai ainda me faz falta e tenho essa razão de queixa. E às vezes sinto-me órfão, como por exemplo hoje, e já não tenho idade para isso. Na minha ideia, a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Judiciária também deviam fazer alguma coisa. Quando ao ministro da Administração Interna, só tem uma saída: a demissão. E o Chega devia exigir uma comissão de inquérito.
O meu pai era portanto benfiquista e penso que só isso é mais do que suficiente para abrir um processo. Era benfiquista e levava-me a ver os treinos do Fafe no Campo da Granja que também já não existe. O meu pai, apesar de breve, ensinou-me o futebol e outras coisas boas da vida. Uma vez levou-me às Festas Gualterianas a Guimarães, fomos a um tasco e eu pedi-lhe para comer feijão com tripas, que nunca tinha provado, e gostei que eu sei lá. Se calhar por isso é que ainda hoje gosto tanto e faço tão bem. Outra vez trouxe-me de presente uma pistola Luger P08 de brincar, pesada e igualzinha às dos nazis dos filmes, e gostei que eu sei lá. Não sei o que me deu na cabeça, mas cresci e não gosto de armas. Continuo a gostar do meu pai.
Para além de benfiquista - repito, benfiquista -, o meu pai era também novo, bonito e bom, mas suponho que isso não interesse para os autos, e era excelente operário tecelão, músico, bombeiro e jogador de dominó. De bombeiro, levava-me ao cinema e ao circo à borliú. E contava-se que no dominó, jogado na mesa do canto direito para quem entrava na sala das traseiras do café Peludo, o meu pai até escondia pedras na boca para enganar parceiros e ganhar mais uns tostões para casa. Eu ia chamá-lo, bem ensaiado pela minha mãe para que ele não ficasse mal perante os amigos. "A mãe manda dizer que a comida está pronta", era o que eu dizia, uma e só uma vez, baixinho, e ficava ao lado dele todo contente à espera.
É preciso que se note: o meu pai, também conhecido como Lando Bomba ou Lando da Bomba, não era só dominó. Nas festas onde a Banda de Revelhe ia tocar, o meu pai, que tocava saxofone, tinha também sociedade com o homem da roleta de feira, artesanal e viciada. Nos intervalos dos concertos, fartava-se de ganhar canivetes, cintos, saca-rolhas, tesouras, baralhos de cartas e gaitas de beiços. O meu pai era o engodo. "Mais uma para o senhor músico. Está em dia de sorte, o raisparta o músico!", gritava o homem da roleta, feitos um com o outro, a chamar o povo. No final, o meu pai devolvia tudo a troco de umas coroas ou de mais uma navalha para oferecer.
Calhava-me, de vez em quando, levar o almoço do meu pai à fábrica. Estando sol, o meu pai e outros operários da Fábrica do Ferro comiam num terreno muito jeitoso para o efeito, a caminho do rio. Do Comporte, e por favor não confundir com Comporta. Sentávamo-nos numas pedras à sombra de pinheiros geralmente mansos e eu adorava estar ali com o meu pai aquela meia hora. Era como se fosse um piquenique, mas eu ainda não conhecia a palavra.
O meu pai dizia "Lá estara?". "Lá estara?" era cumprimento, saudação tirada de ouvido entre amigos e compinchas, da rua, da fábrica, dos bombeiros, da bola e da banda. "Lá estara?" queria dizer mais ou menos "Olá, tudo bem?" ou "Viva, como é que vai isso?". O meu pai fazia também questão (que se dizia "questã") de reinventar os nomes das pessoas, e por isso o nosso bom Berto Dantas era o Berteira, o monossilábico Augusto da esquina era o Gustaveira, e assim sucessivamente.
O meu pai gostava muito de fazer rir a minha mãe e, de malandrice, lia-lhe o jornal metendo as expressões "pelo cu acima" e "pelo cu abaixo" entre as palavras das notícias. Se fosse hoje, ficaria, por exemplo, assim: "A atriz pornográfica, pelo cu acima, Stormy Daniels, pelo cu abaixo, descreveu, pelo cu acima, o pénis, pelo cu abaixo, do ex-presidente, pelo cu acima, dos Estados Unidos, pelo cu abaixo, Donald Trump, pelo cu acima, comparando-o, pelo cu abaixo, a um cogumelo, pelo cu acima." Eu e os meus irmãos, que arranjávamos sempre maneira de ouvirmos aquela comédia, escangalhávamo-nos a rir. A minha mãe repreendia o meu pai, tentava tirar-lhe o jornal das mãos, pareciam o Charlot mas a cores, e nós ainda nos ríamos mais. Éramos pobres, mas tínhamos o riso. E o riso é muito bom, é uma riqueza alternativa. Éramos então remediadamente felizes.
O meu pai foi para França, Belfort, resvés com a Suíça, e escrevia-nos cartas numa letra muito perfeitinha em papel quadriculado que nós líamos à nossa mãe. Nós também íamos para França, estávamos de partida, mas não tivemos tempo. O meu pai morreu, acredito que de saudades, numa véspera de Natal. Em França. Sozinho. No dia seguinte nasceu o Menino Jesus, disseram-me que de propósito para tomar conta na minha mãe, de mim e dos meus três irmãos. Que Deus me perdoe, mas o velhote, que nunca pôde ser, ter-nos-ia dado muito mais jeito...

Os apaixonantes

Foto Hernâni Von Doellinger
Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes, simetricamente filarmónicos e copofónicos. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Há-os em Fafe. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser avistados numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, como lhe contei. Se por caso os vir, respeite-os, admire-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, fiéis e mansos, doces, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. É. No dia em que desaparecer o último apaixonante, enterrem-se também as filarmónicas. E que permaneçam juntos, para toda a eternidade.

Conta a lenda que 3

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Nelo Barros, treinador e cavalheiro

Tive a sorte de conhecer Nelo Barros. Manuel Coelho de Barros (1917-2007) foi um grande treinador de futebol e um mestre de treinadores de futebol que nunca fez primeiras páginas de jornais porque sempre se recusou a deixar o emprego no escritório da que era então a maior fábrica de Fafe e uma das maiores do País. Equipas da 1.ª divisão chamavam por ele, ano após ano, pediam-lhe disponibilidade total, trabalho a tempo inteiro, mas ele nunca quis ir por aí. O Nelinho era assim.
Pessoa excelentíssima, homem elegante, distinto, culto, carismático, Nelo Barros era reconhecidamente um catedrático da táctica, sabia muito de bola e dava gosto ouvi-lo falar de futebol. Ele entusiasmava-se e entusiasmava. O futebol de Nelo Barros tinha pessoas e histórias dentro. O futebol contado por Nelo Barros era simples, percebia-se à primeira, batia certo, era lindo!
Uma noite, no velho salão dos Bombeiros (Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes), o treinador encantou uma plateia à pinha que o foi ouvir falar de desporto e de futebol, de jogadores e de jogos, de treinadores e de tácticas, como nunca se tinha ouvido falar por aquelas bandas. O Nelinho falou como de costume, sem tabus, sem grandes teorias, sem peneiras. Até eu, que era um rapazola, entendi tudo. E fiquei a gostar ainda mais de futebol.
Perguntaram-lhe o que é que era preciso para se ser um bom treinador. Nelo Barros, provavelmente um dos melhores treinadores portugueses de todos os tempos, respondeu assim simplesmente, que esta cá me ficou: "Não há bons treinadores. Os bons jogadores é que fazem os bons treinadores". E depois desenvolveu, desmontou a aparente contradição, mas nem era preciso.
Eu gostava tanto de ouvir Nelo Barros, que ia assistir a todos os treinos, que eram sempre ao fim da tarde, por causa do tal emprego do treinador na fábrica. Uma vez, o jogo em preparação era contra o Riopele. E digo contra de propósito, porque aquele era um tempo de rivalidades à moda antiga, dentro e fora do campo, acabando quase sempre tudo à trolha.
Mas, voltando ao treino, o Nelinho reuniu os jogadores à sua volta e deu a táctica. E eu por perto, de radar ligado. Fiquei deslumbrado: eram indicações precisas para cada um dos jogadores, para o funcionamento da defesa, para o desempenho do meio-campo, para o trabalho dos avançados, para as movimentações da equipa como um todo, até o Berto Magalhães (um suplente muito fraquinho, mas generoso e com um pulmão se faz favor) ia jogar como médio vadio para secar os criativos riopelenses. Tudo encaixava, tudo fazia sentido. E tudo dito com uma convicção, que no domingo só podia dar certo.
Mas não deu. Do outro lado estava uma equipa poderosíssima (se a memória não me atraiçoa, no Riopele jogariam, por essa altura, o Piruta, o Vital, o Barros, o Albano, o João, o Luís Pereira), treinada por outro que a sabia toda: Ferreirinha. Saímos de Pousada de Saramago vergados a uma pesada derrota, já não sei por quantos, mas eu não perdi a fé no nosso Nelo Barros. Pelo contrário. Na humilhação da goleada, aprendi a beleza original do futebol, tal como o mestre o ensinava: onze contra onze e uma bola que é redonda. O resto é treta.

Hoje, uma nova raça de colunistas, comentadores, ex-treinadores-comentadores e ex-comentadores-treinadores, todos paineleiros enfim, quer fazer-nos acreditar que o futebol é praticamente uma ciência oculta, só percebida por uns poucos predestinados que, modéstia à parte, são eles próprios. E inventam palavras e expressões para complicar o que é simples. E já não há bola nem futebol. Eles, que sabem inglês, "inventaram" o jogo. O jogo. Pois, pela parte que me cabe, parabéns à prima. Sou um simples já com razoável uso. E tenho é saudades de ouvir o Nelinho a falar de bola. De bola simplesmente.

P.S. - Que pena tenho de não contar no meu arquivo com uma foto de jeito do Senhor Manuel Coelho de Barros. Peço desculpa pela falha.

Urbanismo e estupidez natural

Roubam-nos os jardins e dão-nos desertos em forma de praça, arrancam-nos as árvores e impingem-nos guarda-sóis publicitários. Os senhores doutores engenheiros da Câmara chamam-lhe "urbanismo". Eu digo que é estupidez. Natural.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Era uma bola a pinchar


Ainda que não se pense muito nisso, há uma certa diferença entre a defesa mista e a sandes mista. A primeira, como toda a gente sabe, não leva queijo nem fiambre. Mas, ainda assim, pode ser comida. Basta às vezes uma pequena distracção, um lateral que ficou em casa, um fora-de-jogo mal alinhavado, um avançado matreiro e rápido como um raio que o parta.
O futebol moderno é feito de palavrões. Já não é futebol nem desporto, é indústria, chama-se jogo mas com conotação cibernético-filosófica, e é uma ciência praticamente. Tem unidades de treino, periodizações tácticas, trabalho específico, fundamentos. No meu tempo ia-se à bola, e os palavrões eram outros, palavrões a sério (ou à séria, se lido em Lisboa), palavrões do piorio mas sem ofensa. O futebol era paixão, entretimento. Sim, entretimento.

Era uma bola a pinchar e onze contra onze numa luta brava em campo pelado, campo de batalha. Naquela altura eu acreditava no futebol. Era o jogo da bola, só isso, mais uma que outra coça aos desgraçados dos árbitros, para desopilar. Lembro-me dos jogadores com camisas de botões e das chuteiras remendadas e de travessas. Os pitões ainda não tinham sido inventados e as travessas eram de sola, pregadas com tachas, e as tachas entravam não raras vezes pelos pés dentro dos jogadores. O meu coração era amarelo e preto, Faaaaaafeee!..., todo branco em alternativa, com o azul e branco ainda guardado para segundas núpcias. Lembro-me dos jogadores que nasciam e morriam no clube da terra onde nasceram. Lembro-me de jogadores que verdadeiramente morreriam em campo pelo seu clube, sem eufemismos, era só dizerem-lhes que era preciso. Lembro-me de jogadores que corriam como se treinassem todos os dias e só treinavam durante o jogo. Lembro-me de jogadores que fugiam da tropa para jogar e depois iam presos. Lembro-me de jogadores que chegavam da guerra carregados de paludismo e queriam lá saber. Lembro-me de jogadores que choravam nas derrotas e embebedavam-se nas vitórias, porque era assim. O Fafe era a Associação. A Associação era Fafe. Lembro-me e gosto. Sou um bocado velho, o que se há-de fazer?

Os palavrões futebolísticos com nada dentro não nasceram agora, neste tempo insosso cheio de conferências de imprensa pré-maquetadas, reclames a champôs e espaços entre linhas. Os comentadores são palavradores, decerto ganham à sílaba, falam muito e não dizem nada, inventam vacuidades, falam também pelos cotovelos mas já ninguém distingue. O parlapiê vem de longe. Há mestres antes dos mestres e eu prefiro os de antigamente. E nem vou falar dos estimáveis Gabriel Alves e Rui Tovar. Mas do consagrado Alves dos Santos, que nos deu a "pertinácia" e o "arreganho", e viu um golo "exactamente igual ao golo anterior", quando a Eurovisão estreou as repetições (que era só uma, com um inesperado e mal amanhado R no canto superior direito do ecrã da televisão do Peludo) e ele não sabia. Ou do bom do Mário Wilson, então treinador do Boavista, quando perdeu nas Antas e queixou-se dos golos de "bola parada". José Maria Pedroto, então treinador do FC Porto, disse que não podia ser: bola parada não anda, logo não entra, explicou.

Sou, portanto, antigo. Gosto de futebol, da bola. Dos noventa e tal minutos que se jogam em campo, porque para mim um jogo não dura uma semana. Quero lá saber de opiniões alheias. Eu tenho a minha e chega-me. E tenho memória, memórias, que é o que me remedeia hoje em dia.

Por obséquio: ponham os olhos na extraordinária fotografia que abre este apontamento. Retirei-a, à foto, do livro "Associação Desportiva de Fafe - 50 Anos de História", de Artur Ferreira Coimbra. É a nossa equipa da época 1965/66. Da esquerda para a direita, de pé: Toneca, Germano, Apolinário, Ricoca, Costa, Adelino, Manel Zebras e o massagista João Americano; de joelhos: Júlio Alves, Fernando Alves, Berto Dantas, Mário Machica, Adriano e Avelino Lopes. Só craques, quem mos dera outra vez. Conheci-os a todos e alguns deles fizeram-me até o impagável favor de serem meus amigos, apesar da evidente diferença de idades. E os nomes? Que categoria!
Fafe, diga-se em abono da verdade, deu ao mundo do futebol, para além dos exemplaríssimos supracitados, nomes tão formidáveis como Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Caganito, Trolas, Feira Velha, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós e de nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos. Os meus cromos. Os meus heróis.

Tocavam sempre duas vezes

Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A sit...