domingo, 21 de agosto de 2022

Bristol era em Fafe, ao lado do ferrador

Foto Hernâni Von Doellinger
A criança chorava com evidente entusiasmo. Gritava, gritava, gritava. Ranhava, ranhava, ranhava. E esperneava, esperneava, esperneava. Que lindo! Dava mesmo gosto ouvê-la. Que competência! Que performance! Que espectáculo! Que profissionalismo! Que categoria! Que pulmões! Que ginástica! Via-se logo que era uma criança estrangeira, excepcional, alimentada desde a barriga da mãe a iogurtes, papas e boiões. Nada de caldo de couves, sopas de vinho ou aguardente com figos.
Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada Rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça de Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão, ranhoso e contorcionista. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que of couse camones, mas versão bife, de Bristol.

(Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O nosso Bristol era ali a seguir ao Vale D'Estêvão, se não estou em erro, quem vai em direcção ao Largo. No sítio do Vale D'Estêvão, após um enorme portão de casa de lavrador ou talvez ancestral pensão, funcionava um ferrador, que eu ainda vi em acção - o que tem tudo a ver: eu, o calçado e o ferrador. Dizem que também por ali passou Camilo Castelo de Branco, disso não me lembro. O nosso ferrador atendia também na Feira Velha, às quartas-feiras. Quanto ao Senhor Ferreira do Hospital, foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)

Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Excepcional. Em apenas dois dias...
É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro. E lembrei-me desta porque hoje, no Brasil, é o primeiro dia da Semana Nacional da Criança Excepcional, outra coisa, assunto sério.

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