sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Tocavam sempre duas vezes

Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A situação económica, a saúde, o casamento, os filhos, as inclinações políticas, desportivas e religiosas, sabiam de quem saltava o muro ou mijava fora do penico. Sabiam de mortos e de vivos. De virgindades, desconsolos, infidelidades e viúvas. Isso, de viúvas é que eles sabiam! E eram casamenteiros. Viesse algum homem de fora à procura de uma viúva fafense ainda em uso para casar, era só perguntar ao carteiro. Ele levava o pretendente à porta certa. Para os nossos carteiros, não havia segredos na vila e arredores. Seriam um perigo, se por acaso não fossem também boas pessoas - e realmente eram-no.
A Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, com boné e tudo, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos. Gente de categoria, profissionais prestáveis, pessoas decentes. Fafenses excelentíssimos, sem dúvida e sem favor.
Lembro-me do João da Quintã, irmão do Avelino do Café e casado com a Deolinda do Tónio Quim Calçada, o João que depois desistiu de ser carteiro e foi com a família para o Canadá, se não estou em erro. Lembro-me do António Cunha, também bombeiro e assíduo camarada de conversa. Lembro-me do bom Belarmino Freitas, casado com a Licinha Mota da Casa Satierf, que queria dizer Freitas ao contrário. Lembro-me evidentemente do pândego Aristides e estou em crer que ainda me lembro também do pai do Aristides, o carteiro Egídio, se a memória não me atraiçoa. Deveria decerto lembrar-me de mais ilustres carteiros da nossa terra, parece-me até que estou a vê-los, os rostos, as figuras, o modo de andar, mas infelizmente não me ocorrem os nomes que lhes correspondam. E peço desculpa pela involuntária omissão.
Para além de poderosos, eram intrépidos os nossos carteiros. Valentes. A calcantes, de bicicleta chocolateira ou numa velha motorizada de serviço, saca de couro a tiracolo, enfrentavam as mais violentas intempéries e até cães. E eram persistentes. Tocavam sempre duas vezes, como no cinema, e três e quatro e cinco e seis, tantas vezes quantas fossem necessárias para serem atendidos, se sabiam - e sabiam sempre - se havia gente em casa. Eles é que decidiam o que era urgente e o que podia esperar para o dia seguinte. Se fosse preciso, tratando-se de dinheiro ou de documentação importante com prazos a respeitar, diligências melindrosas que não podiam nem deviam ficar ao cuidado de vizinhos, então eles próprios, os carteiros, extrapolando obrigações e abandonando a rota determinada, iam à procura dos destinatários aos sítios alternativos do costume, aos locais mais extraordinários mas já conhecidos, habituais, na feira, na poça, no tanque público, no rio, nos campos, no café, no tasco, no campo da bola, à porta da igreja, palavra de honra, era mesmo assim que as coisas se passavam.
"Que nós bem, graças a Deus", dizíamos nas cartas que mandávamos aos nossos entes queridos, e estava certo, quero acreditar. Graças a Deus, que tudo sabe e por todos olha. Mas também graças aos carteiros. Pelo menos os de Fafe não Lhe ficavam muito atrás. E por eles esperávamos, ansiosos mas confiantes, "até à volta do correio"...

P.S. - Publicado há dois dias no meu blogue Tarrenego! "O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes" é um dos mais famosos romances do jornalista e escritor norte-americano James M. Cain. Adaptado para o cinema por David Mamet, deu origem ao filme homónimo de Bob Rafelson, com Jack Nicholson e Jessica Lange.

O princípio da sabedoria

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Os filósofos fafenses

Eu ouvia-os. Ouvia-os atentamente. E aprendia. O Sr. Ferreira do Hospital, o Sr. José do Santo, o Lininho Leite, o David Alves, o Zé Manel Carriço, o Mola, o Sr. Lem, o Landinho Bacalhau, o Sr. Aristeu da Loja Nova, o Aristides Carteiro, o Tónio da Legião, o Sr. Saldanha, o Cunha da Fazenda, o Zé de Castro, o Manel da Pinta, Nélson Fafe, o Guia, o Júlio Barbeiro, o Zé do Registo, o Quinzinho da Farmácia, Nelinho Barros, o professor Alberto Alves, o Carlos Alberto, o Pimenta, o Toninho da Luísa, o Varinho Dantas, Serafim d'Eiteiro. Era. Eu ouvia-os. Atenta e reverentemente. E aprendia vida. Mas ainda não sabia que eles eram filósofos.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Filosofia.

Serafim d'Eiteiro, filósofo da hora de almoço

Serafim d'Eiteiro tinha uma sombria loja de fazendas em Cima da Arcada, por baixo do Club, e era homem de voz grave e piada fina, um figurão. O apelido "d'Eiteiro" suponho que fosse natural corruptela de "do Outeiro". Lugar do Outeiro, Antime, donde creio que era este ilustríssimo fafense, ou seriam pelo menos os seus ancestrais. Serafim do Outeiro igual a Serafim d'Eiteiro, assim terá decidido o povo, na sua provecta e indesmentível sabedoria - mas estou a deitar-me a adivinhar.
Alto, magricela, de fato todos os dias, Serafim d'Eiteiro frequentava a sala das traseiras do Peludo, onde, após almoço, se jogavam umas bilharadas iglantónicas. Aquilo era coisa constada, só para artistas diplomados e (aqui que ninguém nos ouve) até metia apostas a dinheiro, reunindo sempre uma pequena multidão de espectadores dados ao palpite e a gozar o parceiro. Um mundo! Em Fafe era assim.
E uma vez foi demais. Eu era puto e estava lá. Um dos jogadores, desgraçadamente em dia não e alvo único e reiterado da chacota geral, perdeu de repente as estribeiras e, varando com os olhos a plateia ali à roda, atirou, cheio de raiva e perdigotos: - Ide todos para o caralho! Todos...
Mas nisto encarou o respeitável comerciante, pessoa de outra idade e estatuto, teve um rebate de consciência e resolveu abrir uma honrosa excepção: - Todos, não. Faz favor de desculpar, senhor Serafim, não é para si -, corrigiu o bilharista azarado e despeitado porém atencioso, botando giz no taco.
Sentado logo à entrada depois do degrau, lado esquerdo, no canto por baixo do velho rádio Philips dos relatos domingueiros, Serafim d'Eiteiro disfarçou um sorriso maroto atrás do fumo do ininterrupto cigarro sem filtro e respondeu naquela maneira vagarenta de falar que dava ares de sabedoria: - Muito obrigado pela deferência, mas aqui sozinho é que eu não fico. Se o amigo não leva a mal, eu também vou...
E era assim a vida.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Filosofia.

A mão que cumprimentou Agostinho da Silva

Ainda hoje guardo religiosamente a mão com que uma vez, há mais de trinta anos, cumprimentei mestre Agostinho da Silva.

P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Novembro de 2023. Hoje é Dia Mundial da Filosofia.

O despertar do filósofo

- A vida é uma imensa linha recta cheia de curvas, e cada subida concomita-se numa irrefutável descida, vice-versando - disse o filósofo, ao pequeno-almoço.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Filosofia.

Banda de Revelhe em concerto

No próximo domingo, dia 24 de Novembro, pelas 17 horas, o Teatro-Cinema acolhe o concerto comemorativo do 170.º aniversário da Banda de Revelhe - Sociedade Filarmónica Fafense. A entrada é livre, mediante apresentação de bilhete que pode ser levantado na Loja de Turismo de Fafe.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O Alto das Freiras e outros pecados velhos

Chamava-se Alto das Freiras e não Monte das Freiras, como alguns lhe chamam hoje em dia, ou Monte das Freitas, como também já por aí li, Deus lhes perdoe a ignorância e o atrevimento, mas antes Freitas do que Serafão, como quem vai para a Póvoa de Lanhoso. Isto não é resolvido por decreto, apetecimento ou alvará camarário - os sítios têm o nome que o povo lhes chama, e mais nada. E Alto das Freiras era o que o povo chamava àquele sítio lá em cima no antigo monte de São Jorge. Exactamente, quando era monte, isto é, antes de ser capado e desaparecido, o monte ali existente e agora extinto chamava-se monte de São Jorge, e na crucha do falecido monte de São Jorge é que dominava o Alto das Freiras e era no Alto das Freiras que se acoplava o famoso pionono, a garrafinha, de que já aqui falei.
Agora, Alto das Freiras porquê, isso é que eu já não sei. E não é que não me lembre, que se calhar me tenha esquecido, não, na verdade nunca soube, nunca fiz nem faço a mais pequena ideia. Cheguei a imaginar que era dali que saíam as irmãzinhas que tomavam conta do Hospital, incluindo a "Mamer", a primeira dona daquilo tudo, ainda hoje suspeito que sim, mas nunca ninguém mo confirmou capazmente nem alguma vez vi documento que o garantisse, e portanto continuo neste impasse. Em todo o caso, um sítio assim chamado Alto das Freiras, e ainda por cima com pionono e garrafinha, punha-me a cabeça às voltas. Eu sempre fui um bocado tolo e, confesso, bastante dado a elucubrações amiúde lúbricas e libidinosas, desculpem-me a expressão, porque ele há palavras que realmente nos levam por maus caminhos, e "elucubração", "lúbrica" e "libidinosa" são dessas tais, sugestivas até mais não, gráficas como nem era preciso, palavras estuporadas, descaradas e fonéticas, das que dizem logo ao que vão, xô diabo vem cá toma!
Que se segue. O busílis nem estava bem no alto das freiras, que, no entanto, por si só, bem trabalhadinho, já daria pano para mangas. O problema era meter na mesma frase, no mesmo pensamento, as palavras freiras, alto, pionono e garrafinha. E agora dizem que também tem mamoas. Estão a ver o filme? Estão a ver onde é que ia parar a minha cabeça-de-alho-chocho?
Ademais, a fama do monte andava pelas ruas da amarguras. Ou pelas alamedas dos prazeres, consoante o ponto de vista. Naquele tempo não havia motéis, os carros eram poucos e as quelhas e os montes prestavam-se ao necessário, eram albergue de amores ilícitos, clandestinos, era ali que tudo acontecia. E ia-se ao monte. Ia-se ao monte esgaçar umas pernadas de carvalho para o trono da cascata do Santo António da minha rua, ia-se aos fentos ou ao mato para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se ipso facto dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem ainda conseguir alcançar o que ela quereria dizer, não desfazendo do Trancadas propriamente dito, que era um barbeiro estabelecido na vila, mesmo ao lado do tasco do Neca do Hotel.
E hoje? Hoje as antigas quelhas são avenidas e os velhos montes são urbanizações. Resumindo e concluindo, não sei como é do amor em Fafe.

(Em apêndice. Só para os sacristas do costume, faço notar que o próprio Papa garantiu, há dois ou três dias, que se pode brincar com Deus. E, se se pode brincar com Deus, como disse Francisco, muito mais se pode brincar com freiras, digo eu. Creio, aliás, que elas até agradecem.)

P.S. - Publicado originalmente no passado dia 16 de Junho. Hoje é Dia dos Sistemas de Informação Geográfica ou Dia dos SIG.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

O banheiro e a banheira

Foto Hernâni Von Doellinger
Havia o banheiro. Que era um senhor geralmente concessionário de um pedaço de praia camarária e que, pelo Verão, na chamada época balnear, alugava barracas e cadeiras, e disso fazia modo de vida para o ano inteiro. É só ir à Póvoa, à nossa Póvoa, a Póvoa que alimentamos e que nos chama "parolos", aos fafenses. Havia o banheiro. Que era um senhor robusto de calças arregaçadas que se embrulhava numa vestimenta de oleado de cor mais ou menos berrante, velho salva-vidas que levava ao banho de mar, a bem ou a mal, adultos enfermos e sem poder de locomoção ou crianças renitentes e ganintes, como no meu tempo de miúdo, na Colónia Balnear Doutor Oliveira Salazar, na Gala, Figueira da Foz, para pobres registados, após vistoria relâmpago no Posto Médico de Fafe, ou ainda hoje em dia no ritual do banho santo de São Bartolomeu do Mar, Esposende. Havia o banheiro. Que era a retrete, a sentina, a latrina, a privada, o WC, a casa de banho, a casinha, o lavatório, a tina, o lavabo, o sanitário, a sanita, o toalete, sobretudo no Brasil. Portanto havia o banheiro. E havia a banheira. A banheira era a mulher do banheiro.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Casa de Banho.

O chichi e a discriminação de género

Antigamente as mulheres urinavam de pé. Quem for de Fafe e provecto, faz uma ideia. Não vou explicar pormenores, a não ser que me peçam muito, mas urinavam de pé. De pé, como as falecidas árvores da Senhora Dona Palmira Bastos. De pé, como as vítimas da fome. De pé, como os homens em geral. De pé! Homens e mulheres eram iguais. Depois as mulheres resolveram amouchar para o acto e passaram a ir aos pares à casa de banho. Hoje em dia as mulheres queixam-se de discriminação de género.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Casa de Banho.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

O Dia do Bruxo

Foto Bruxo de Fafe

Eu parece-me um disparate que Fafe celebre a americanice do Dia das Bruxas, quando tão bem servidos estamos com o produto local, o inestimável Sr. Fernando Nogueira, que tanta fama traz ao nome da nossa terra. E se traz fama, decerto também trará proveito, que o povo vem-lhe de todo o lado e estou em crer que há-de fazer despesa ali pelos estabelecimentos das redondezas, portanto é dinheiro que fica em caixa e, se não me engano, foi mais ou menos assim que Fátima e Lourdes começaram.
Para além disso, o Sr. Fernando Nogueira é uma figura nacional, é procurado por gente da alta, do futebol, do poder, até do estrangeiro, trata o diabo por tu, fala aos jornais, aparece na televisão, é entrevistado pelo Manuel Luís Goucha, é assunto da Joana Marques na Rádio Renascença, acerta amiúde no euromilhões, tem sítio oficial na internet e, sendo de Guimarães, porque ninguém é perfeito, podia muito bem escolher o nome que lhe apetecesse, com mais ou menos molho e lantejoulas, mas não, preferiu-nos, faz questão de ser o Bruxo de Fafe, sorte a nossa. Simplesmente Bruxo de Fafe, insistentemente Bruxo de Fafe, e, orgulhoso, dá a esta marca que também nos envolve o indesmentível cunho de garantia: "Eu sou o Bruxo de Fafe, não sou charlatão!", costuma declarar quando interpelado por desconfiados ou incréus, honrando-nos a todos, e eventualmente nem todos o merecemos.
Torno, por isso, à minha. Mas qual Dia das Bruxas, mas qual Halloween, ó meu Deus, ainda por cima Halloween! Em Fafe, não! Estamos servidos. Em vez de encher a Biblioteca, o Teatro-Cinema e as ruas, se não chover, com bichas cabeçudas, pragas de conserva, abóboras de plástico, esqueletos desengonçados, teias de aranha a fingir, morcegos em cartolina, rolos de papel higiénico e bruxas desencartadas, tudo à americana, tudo copiado de lá de fora, tudo tão longe das nossas verdadeiras tradições, melhor faria o Município se olhasse para o que tem à mão e declarasse oficialmente o dia 31 de Outubro, hoje mesmo e doravante, Dia do Bruxo. Do Bruxo de Fafe. Era de justiça.

P.S. - Publicado originalmente no dia 31 de Outubro de 2023, em pleno Dia das Bruxas. Hoje é Dia do Ocultismo. Na fotografia lá de cima, oficial, é vê-los, o nosso Sr. Fernando Nogueira mai-la Senhora Dra. Lucília Gago, vigente ainda como procuradora-geral da República, ambos em agradável convívio durante as merecidas férias, na ilha do Sal, Cabo Verde.

Passagem de testemunho

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 17 de novembro de 2024

Estamos no fim do ano, meus meninos!

O Natal começa cedo cá em casa. Este ano começou no dia 9 de Novembro, sábado passado, aproveitando que estivemos o fim-de-semana de plantão, portanto sem direito ao costumado laréu. A minha mulher tirou o dia, desencaixotou o Natal e espalhou-o pela casa inteira. O pinheiro, os presépios, a aldeia de Natal, bonequinhos de neve, arranjos de mesa, canecas de Natal, Pais Natais de todos os materiais, tamanhos e feitios, laços, lacinhos, azevinhos, estrelas-de-natal naturais e artificiais, soldadinhos de madeira a fazerem de soldadinhos de chumbo, peluches alusivos e musicais, Ferrero Rocher, Mon Chéri, calendários do Advento, bengalinhas, comboiinhos, renas e grinaldas e estrelinhas e anjinhos, velas, bolas e embrulhinhos por todo o lado, em todos os cantos e corredores, em todas as portas, em todas as divisões, incluindo casas de banho, despensa e quarto de arrumos. A iluminação foi inaugurada anteontem, quinta-feira, quando o Kiko e a Sara vieram jantar. A minha mulher gosta muito do Natal, o meu filho gosta muito do Natal. Eu gosto muito da minha mulher e do meu filho.

No ano passado metemos o galo no presépio. Todos os anos experimentamos um melhoramento natalício, há muito que andávamos com o galo debaixo de olho, e foi no ano passado. Agora lá está ele outra vez, pelo segundo ano consecutivo, já afeito aos seu novos quefazeres, altaneiro e bico calado, mas imaginamo-lo todo kikirikiki como o Jerónimo do reclame da Compal, a anunciar o nascimento do Menino Jesus exactamente às 7h30, conforme muito bem podia constar da Bíblia.
O nosso galo do presépio é um galo de Barcelos, mas, atenção, não é o Galo de Barcelos. Nada de parolices, valha-nos Deus! É um galo de capoeira, obra de mestre barcelense, isso sim, 6x4 centímetros, a obra, um euro e meio, o preço. É arte.
Só presépios temos oito, para além de mais meia dúzia de Meninos Jesus avulsos, e nem a varanda e o escritório escapam ao nosso Natal. Pusemos o galo novo no presépio principal, evidentemente. O nosso é um presépio inclusivo, ao contrário do presépio do falecido papa Bento XVI, que em 2012 resolveu expulsar a vaca e o burro, porque, sentenciou, no local do nascimento de Jesus "não havia animais". Portanto, concluí eu, também não havia ovelhinhas, o que quer dizer que também não houve pastorinhos do deserto. Sobravam, inequivocamente, os três reis magos. Gente fina, vinho de outra pipa. Reis. E magos (porque o champanhe ainda não tinha sido inventado). Esses, é certo, estiverem lá, em representação de toda a humanidade - segundo Ratzinger. Estiveram os reis magos e os anjos cantadores. Os anjos também estiveram.
Que se segue? Eu por acaso até era mais dado a acreditar no burro e na vaca do que na mirabolante história de Gaspar, Melchior e Baltasar, uma boa linha média para quem jogue em 4-3-3, mas que se há-de fazer? Na verdade, eu por acaso até sou capaz de acreditar mais no burro e na vaca do que nos anjos e no presépio completo, a começar pelo dogma da virgindade de Maria tal como está estabelecido. Mas quê? Mais de dois mil anos a aquecerem o Menino com os respectivos bafos, e foi este o pagamento que o burrinho e a vaquinha receberam.
Cá em casa não expulsamos ninguém, pelo contrário. No nosso presépio entram todos. Todos são bem-vindos, sem excepção. Pastores, trolhas, cabrinhas, escafandristas, empregados de mesa, com e sem-abrigo, prostitutas, levandiscas, lambe-botas, grilos, reis magos e outros artistas de circo, polícias municipais, cães e gatos, sapos e ciganos, evidentemente o burro e a vaca, que se lixe o Vaticano!, e desde ano passado o galo, este ano a minha mulher ainda não se decidiu pela novidade, se calhar para o ano um porco e depois uma avestruz, o Ben-Hur, se também quiser, o He-Man, o Super-Homem, o homem-estátua, a Justiça de Fafe, a Barbie, o Nenuco, a Popota, a Irmã Lúcia, os Power Rangers, o Padre Cruz, os Transformers e as Tartarugas Ninja, o Zé Povinho e o Fradinho das Caldas, o Tutankhamon, o Yoda, Marcelo Rebelo de Sousa e até Bento XVI se entretanto sair em boneco.
Deus é grande, e o nosso presépio será cada vez maior.

É. Chegamos ao Verão e a minha mulher começa logo a programar o Natal, a fazer compras de Natal, a falar do Natal, e realmente num lampo estamos lá, num lampo estamos cá. Agora, nesta idade, os dias fogem-nos com uma bolina que já não conseguimos controlar. "Estamos aqui, estamos no Natal!" E de repente estamos, mal acabamos de dizer. Como se estivéssemos sempre no Natal. Como se o Natal fosse um presente contínuo. E, olhem, do mal o menos.
Faz-me lembrar o padre Fraga, mestre e amigo na minha infância sacrista. Há muitos anos, no seminário, em Braga, o querido padre Fraga passava a vida a tentar chamar-nos à razão, a apelar ao redobrar do esforço no estudo, à recuperação de notas, ao brio escolar. O bom padre Fraga, Albano Teixeira Fraga, que é fafense de Travassós e que se desfazia em riso de cada vez que queria falar de mau, perorava com os braços cruzados no peito, gesticulando com uma mão de cada vez, "por um lado isto, por outro lado aquilo", coisa bonita de se ver. Ele tinha uma teoria, um argumento poderoso. Estávamos ainda em Janeiro, no início do 2.º período, e o padre Fraga agitava as juvenis (in)consciências, alertando, apocalíptico: "Porque, meus meninos, estamos no fim do ano!..."
Isso. A urgência da vida. Com o padre Fraga, desde o princípio do ano que estávamos no fim do ano, não havia tempo a perder. Cá em casa, a Mi é com o Natal. Os nossos Natais, verdade seja dita, são como os cigarros das férias grandes, fumados às escondidas atrás do Jardim do Calvário - acendem-se uns nos outros.

(Publicado ontem, sábado, no meu blogue Tarrenego!)

sábado, 16 de novembro de 2024

Delícias do mar, o raio que vos parta

Foto Hernâni Von Doellinger
Areia macia e morna, água, espuma, o sal da terra, cheiro a argaço, sol quando Deus quer, a brisa nas ventas, o falar das ondas, o silêncio do horizonte a ganhar de vista, madrugadas de pés molhados, ocasos de fogo, um fino bem tirado, pescadores, peixeiras, surfistas, parassurfistas, ciclistas e todos os tipos de nudistas, vagas memórias infantis de uma semana em família na Póvoa de Varzim, a Foz, Matosinhos, a ver navios, os números repetidamente extraordinários do Porto de Leixões, camarão da costa, gambas cozidas e "tigres" grelhados no Peixoto de Fafe que já não é, cracas em São Mateus, alcatra de peixe no Boca Negra, lapas em casa do Victor e da Ana, ilha Terceira, ilha Terceira, ilha Terceira, ecos de Nemésio, mexilhões de vinagreta, masoquistas esturricando agosto e areando os entrefolhos, amêijoas à Bulhão Pato no portinho de Âncora, o bacalhau assado na brasa do Senhor Álvaro em Valença, o bacalhau assado no forno pela minha mãe, o bacalhau de quarto da minha avó de Basto, os bolinhos de bacalhau da Albertininha da Lameira, as patanisca da minha mulher, as sardinhas fritas do Paredes, a punheta de bacalhau do meu cunhado Álvaro, as trutas "do Coura" do querido amigo Vilaça Pinto, que, palavra de honra, era como se fossem marítimas, polvo de molho-verde, o meu polvo frito, as lulas recheadas da minha sogra, as sardinhas assadas da saudosa Dona Dina na Apúlia, o esplêndido rodovalho para "o senhor do rodovalho" que era eu mal entrava a porta, navalhas na chapa, arroz de tomate com petinga, ou com jaquinzinhos, ou arroz de grelos com, ou arroz de feijão com, mas malandro, malandro, malandro, ou, supra-sumo dos supra-sumos, o arroz de feijão vermelho com grelos e bacalhau frito da minha cunhada Isabel, as fanecas do Manel do Campo, biqueirão, marmotinha de rabo na boca, filetes de peixe-galo, a raia frita no Salta o Muro aqui à porta, a lagosta na ilha de São Jorge comida à ganância e à moina, as percebes na ilha do Sal, as bandejas nas rias galegas, fish and chips num velho pub irlandês, carapaus grelhados no quintal do meu sogro, ostras de Setúbal degustadas em Bordéus, a mastodôntica cabeça de pescada que vou cozer para o jantar de hoje, os tremoços da Marrequinha da Recta, as castanhas assadas da Maria Barraca e até bolas de berlim bissextamente compradas na Rua da Junqueira mais famosa do país. Isto são delícias do mar. Outra coisa não:
Fitas de nastro tingidas de cor-de-rosa gomitado, cortadas em palitos empacotados e refrigerados em vácuo e vendidos à babuge nos supermercados não são, por mais que lhes chamem, delícias do mar! Não, não e não! Serão tudo o que quiserem - delícias do mar, não!

P.S. - Hoje é Dia Nacional do Mar.

O nosso mar

Foto Município de Fafe
Ou por outra. Os oceanos são na verdade seis: Atlântico, Pacífico, Índico, Glacial Árctico, Glacial Antárctico ou Austral e Barragem de Queimadela. O oceano Atlântico separa a Ásia e a Oceania da América. O oceano Pacífico separa a América da Europa, da Ásia e de África. O oceano Índico banha o sul da Ásia e separa África da Oceania. O oceano Glacial Árctico banha os arredores do Pólo Norte, entre limites da América, Europa e Ásia. O oceano Glacial Antárctico ou Austral circunda a Antárctida. A Barragem de Queimadela diz respeito às freguesias de Monte, Queimadela e Revelhe, evidentemente em Fafe.

P.S. - Hoje é Dia Nacional do Mar.

O mar começa em Fafe, devagarinho

O rio Vizela nasce em Fafe, exactamente no Alto de Morgair, antiga freguesia de Gontim. Depois de banhar Fafe, sobretudo na barragem de Queimadela, o rio Vizela passa também, por esta ordem, pelos concelhos de Felgueiras, Guimarães, Vizela e Santo Tirso. Neste seu interessante percurso, o rio Vizela acolhe diversos e variados influentes. O influente mais importante é o rio Ferro, mas não podemos esquecer o rio Bugio e, se não me engano, as ribeiras de Docim, de Moreira e de Ribeiros e o ribeiro de Costas Antas. São influentes porque eles é que abastecem de água o rio Vizela, que, por sua vez, é influente do rio Ave, que desagua no oceano Atlântico. Creio portanto não ser exagero nenhum dizer que o mar começa em Fafe, pelo menos um bocadinho.

P.S. - Publicado no dia 2 de Fevereiro de 2023, sob o título "Os influentes (Ou o mar começa em Fafe)", a propósito do Dia Nacional do Vigilante da Natureza e Dia Mundial das Zonas Húmidas. Hoje é Dia Nacional do Mar.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Então pastéis era aquilo?

Foto Tarrenego!
Conhecia-os de vista. De passar pelas montras ou das mesas do Peludo, mas nunca me tinham sido apresentados. Até que uma vez o meu pai trouxe meia dúzia para casa. Vinham naquela caixinha de papel, obra de engenharia feita na hora, ali mesmo aos olhos do freguês, com a habilidade e o requinte de quem constrói um avião a jacto. Se me estou a lembrar bem, havia, naquele tempo, os bolos de arroz, as bolas de berlim, os queques, os jesuítas, os caramujos, os mil-folhas, as natas e os cocos. As tíbias apareceram depois, já na era das minissaias. O meu pai chegou muito tarde "da música" e se calhar os pastéis vinham por isso, como pedido de desculpas, para adoçar a boca à minha mãe. Não tenho a certeza. Era pequeno demais para então perceber o que agora sei tão bem. Mas gostei da festa que foi: acordámos - a Nanda, o Nelo e eu -, sentámo-nos todos na beira da cama da frente, ao lado da nossa mãe, provámos apressados a novidade, o nosso pai fez-nos rir como de costume e fomos felizes. Então pastéis era aquilo? Era bom. Para mim, quase tão bom como uma côdea de broa coberta com açúcar amarelo, e já lá irei.

Fafe era um terra de antonomásias, estoufarto de dizer. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, a Quelha, o Santo e o Café, que era o Peludo e que na verdade se chamava Cine-Bar, eventualmente dada a sua proximidade e até uma certa ligação ao Teatro-Cinema e à família Summavielle. Mas cafés, tascos e afins havia muitos. Uma mão-cheia de cafés, e tascos até dar com um pau, para ser mais preciso. Pastelarias, salões de chá ou snack-bares é que nada, até aparecer o Dom Fafe, mesmo no centro da vila, coisa fina e para clientela sem gases. O Dom Fafe, respeitando a tradição, passou a ser "o" Snack-Bar.

Eu era calisto. Calisto televisivo. A preto e branco e com muitos pedimos desculpa por esta interrupção. Para me fazer pagar a moina, o Sr. Avelino do Café, que era o Hoss do "Bonanza" em pessoa menos o chapéu alto, entregava-me umas moedas e mandava-me à cozinha do Hospital buscar uns enormes tijolos de gelo que ele depois partia e metia no barril de tirar finos (imperiais, se lido em Lisboa). No fim do recado dava-me o troco? É o davas. Oferecia-me um pastel? Fodias-te. Eu tinha para aí sete anos, o meu pai ainda não tinha trazido pastéis para casa e o Sr. Avelino punha-me à frente a merda de um cimbalino. Sete anos, e ele dava-me um café (bica, se lido em Lisboa). Se ainda ao menos fosse um cigarro!...
Eu e o Sr. Avelino, o tempo haveria de fazer-nos bons amigos, mas nunca lhe perdoei a desfeita do café.

Não sou de doces. E, dos pastéis que o meu pai trazia para casa, o que eu gostava mais era da festa, do riso. Daquela meia hora extra fora da cama. Da sensação de família e fartura, da felicidade antes do sono. Porque o meu doce preferido era outro: era a côdea de broa, "grande daqui até ao céu", enfiada às escondidas na lata do açúcar amarelo e comida na clandestinidade do fundo do quintal. Subia a um banco para subir à mesa da cozinha para chegar ao armário, abria a lata, passava o pão, fechava a lata e saía dali a cem à hora mas com mil cuidados para não entornar o "recheio". Côdea de broa com açúcar amarelo, isso, sim, era o meu bolo. Havia lá coisa melhor no mundo!? Por acaso até havia: era a gemada. Gemada simples e honesta: gema de ovo batida numa malga com muiiiiiito açúcar. Mas essa só podia ser duas vezes por ano, acho eu, pela passagem de classe e no meu aniversário. Com os ovos, lá em casa, todo o cuidado era pouco. Estavam contados, eram para deitar. E ao açúcar para a broa a minha mãe fechava os olhos. Fazia de conta que não sabia...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Diabetes.

A receita da receita (ou da remessa)

Uma infusa de satisfatórias dimensões. Vinho, branco ou tinto, e açúcar, de preferência amarelo, à moda de Fafe. Mexe-se com uma colher se houver, ou com os dedos. Da mão. Junta-se-lhe cerveja ou, para coninhas, seven up. O equilíbrio das quantidades fica ao gosto do fabricante. Chama-se a isto "receita" ou "remessa" e deve beber-se bem fresco, mas sem gelo, porra! Os coninhas podem chamar-lhe cocktail...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Diabetes.

A problemática da xalxixa

Atenção. Si six scies scient six saucisses ici, six cent six scies scient six cent six saucisses ici. No seminário, também aprendíamos coisas assim, interessantes para a vida. Esta foi-me ensinada pelo padre Américo Ferreira Alves (1917-2013), na aula de Francês. O tonitruante e escuteiríssimo padre Américo era um excelente professor, moderno, por estranho que possa parecer. O Francês que aprendi com ele nos dois primeiros anos do "Ciclo" chegou-me e sobrou-me para todo o "Liceu", com dispensa de exames, para o linguajar de férias com os nossos emigrantes, em Fafe, e até para viagens a França sem sobressaltos linguísticos de maior. O padre Américo, depois monsenhor, era autor de um livrinho muito prático para Português e Francês, de aquisição obrigatória, creio que se chamava "Analyse", e gostava muito de poetar. Escrevia os seus versinhos no quadro, para que os copiássemos, se quiséssemos, e declamava-os a ritmo marcial, num vozeirão de bradar aos céus. Se os sargentos fossem diseurs, diriam certamente assim. Já lá vão mais de 50 anos, mas lembro-me de um poema, tremendo, que começava talvez desta maneira, citando de cor:

Céu de puro anil
e de graças mil
pelo mês de Abril
és a beleza.

Só pra ti olhar
faz-me suspirar
e em ti buscar
toda a riqueza.


Quer-se dizer: não tenho a certeza quanto à localização certa de "beleza" e "riqueza", se era por esta ordem ou ao contrário, também não sei se "riqueza" entra mesmo, ou seria "tristeza" ou "clareza" ou "leveza" ou "pureza", mas "beleza" é exacto que constava e a rima era realmente esta, em "eza". Em todo o caso, estão a ver a profundeza?

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Tarrenego!, numa série dedicada aos 100 anos do Seminário de Nossa Senhora da Conceição, em Braga, que hoje se cumprem, e a propósito  do Dia Internacional do Trava-Línguas.)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O Menino Jesus era português


As coisas em que a gente acredita quando é miúdo! Eu, por exemplo, acreditava piamente que o Menino Jesus era português, nosso - morra já aqui se estou a mentir. Eu ia à missa, ajudava, ouvia com gosto aqueles bocadinhos de Bíblia e fazia a conexão que se impunha: se Nossa Senhora é de Antime, se São José é no Lombo, se os pastorinhos são de Fátima e a Samaritana é de Coimbra, se o Moisés é de Fafe e o Abraão também, se o João Baptista tem altifalantes, se os apóstolos são todos portugueses, sobretudo pescadores da Póvoa e de Matosinhos, é só ver os nomes - João e Tiago, filhos de Zebedeu, Pedro, André, Filipe, Mateus, Tomé, Bartolomeu, e por aí fora -, se o Jordão é em Guimarães e o Calvário é à beira do posto da Polícia de Viação e Trânsito e do Hotel, se a Avenida de Roma é em Lisboa, se Nazaré e Belém são obviamente em Portugal, se Damasco é alperce, se até o Espírito Santo saiu à casa, e deu no que deu, então o Menino Jesus também é daqui, aqui nasceu e cresceu, por aqui andou, faleceu e ressuscitou, também é português, um de nós. Deus é nosso. Se Deus quiser, até joga pela Selecção. Era o que eu pensava. Já grande, e após alguns anos de desengano e reeducação religiosa nos trabalhos forçados do seminário, passei a olhar com um certo carinho e determinada melancolia para esta minha crença infantil e patriótica. Depois veio Cavaco Silva, em 2006, e eu, após profunda reflexão, deixei finalmente de acreditar. Dediquei-me à exegese, à hermenêutica, à toponímia, à topogígia, à geografia e à natação sincronizada sob chuveiro, sem ofensa para os presentes e apenas às segundas quartas-feiras de cada mês, de três em três meses, dez minutos antes de me deitar. E é hoje.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Tarrenego!, na série dedicada ao centenário do Seminário de Nossa Senhora da Conceição, de Braga. A foto, sem autor referenciado, tirei-a da página de Facebook "Memória e história de Fafe e dos fafenses".)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O gestor de projectos

O gestor de projectos instalou-se em Fafe e foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de cartão canelado, exactamente no sítio onde fora outrora a velha Fábrica do Papelão, no rio Ferro, em Cavadas, a seguir ao extinto monte de Castelhão, entre as pontes de Ranha e de São José, investimento para cima de diversos milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez vinte e duas e meia ou vinte e três e meia, ainda não sabia bem. O senhor do banco pediu-lhe a identificação de gestor de projectos, e o gestor de projectos respondeu prontamente: "Não tenho. Ainda estou a começar. Este é o meu primeiro negócio, mas toco muito bem ocarina". O senhor do banco tomou devida nota e observou, rindo: "Fábrica de cartão canelado? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro. Em todo o caso, se eu fosse vigarista, e dos antigos, como vosselência fez questão de caracterizar, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco", ripostou o gestor de projectos, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.

(Versão revista e aumentada, publicada originalmente no meu blogue Tarrenego!, a propósito do Dia Internacional da Gestão de Projectos.)

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O Sr. Órfo, no seu merecido dia

Foto Memória e história de Fafe e dos fafenses
Em Fafe, Órfão era nome próprio e dizia-se Órfo. O Órfo trabalhava no Talho, isto é, o Órfo era o Órfo do Talho, do Talho do Órfo, que realmente não se chamava desta maneira mas Talho Novo, decerto para se distinguir do outro talho da terra, localizado no início da Avenida, quem ia para a Estação, o talho do Tininho, ou dos do Souto, como então se dizia. Os do Souto eram os Barros, essa família antiga de futebolistas extraordinários - Nelo, Armando, Nelito, Zeca e Fernando, irmãos, nomes grandes que digo de cor, apenas de ler e ouvir dizer, porque já cheguei tarde para os ver jogar. E o Souto ficava à face da estrada que desce para a Fábrica de Ferro, quem deriva para o Lombo. Era ali a casa-mãe do clã, no Souto, e eles eram os do Souto. O nosso Talho, isto é, o Talho Novo, era, como o deles, no centro da vila e do mundo, no Largo, mas mais puxado ao lado do Mário da Louça e do Café Império, ali no enfiamento do Fernando da Sede, do Foto Jóia, do Romeu e outros que tais, tudo gente porreira, excelentíssima, o Órfo incluído. Para a mim, que era mocico e tinha medo à mão lampeira da minha mãe, o Órfo só podia ser Senhor Órfo, por respeito obrigatório, mas a expressão assim composta parecia-me um bocado parva só de a pensar da cabeça para dentro, e portanto eu nunca a disse da boca para fora. Quer-se dizer. A vida em Fafe era muito simples naquele tempo, mas às vezes fazia-me confusão...

Ora bem. Para quem não sabe, hoje é uma efeméride. Aliás, hoje é várias efemérides, pelo menos cinco, mas centremo-nos na efeméride que nos interessa e que, modéstia à parte, nos diz respeito. Isto é: hoje é Dia Mundial do Órfão. Do Órfo, sim senhor! É realmente uma grande honra para Fafe. E é merecida...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Órfão.

domingo, 10 de novembro de 2024

A landre

Foto Hernâni Von Doellinger
A landre, é preciso que se note, já serviu para a nossa alimentação. O povo - isto é, o pobo - chamava-lhe também bolota ou glande. Há quem agarre na glande e dela faça carvalho.

Também há quem diga que Fafe tem a maior mancha contínua de carvalhal da Península Ibérica, e até quem, achando pouco, acrescente que é a maior mancha contínua de carvalhal de toda a Europa. O fenómeno será ali por aquela corda de Aboim e Várzea Cova, realmente carvalhal até dar com um pau - muito ainda para arder, como costuma dizer o meu amigo Lopes. 
Na vila antiga também tínhamos o nosso Carvalhal, assim com maiúscula inicial porque era nome de sítio, entre a Fábrica do Papelão e o Picotalho, ladeando o rio Ferro e estendendo-se aos pés do extinto monte de Castelhão até Cavadas, onde agora vicejam campos de futebol, rotundas e supermercados. Chamávamos-lhe Carvalhal porque tinha carvalhas, bem jeitosas para fazer baloiços e outras brincadeiras, chão ervado, sombreado, um mimo para passar tardes de sábados e domingos à roda de um bom merendeiro, famílias, grupos de amigos ou bandos de moços, com todo o respeito pelos campos cultivados ali à beira. Era o verdadeiro parque da cidade, mas ainda não se sabia. Fafe era o paraíso e havia outros Carvalhais.
 
Por outro lado. Hoje é Dia Mundial da Bolota. E amanhã, fica desde já o registo, é Dia de São Martinho. Não sei se estais a ver a sorte: bolotas aqui e castanhas ali. Estais a ver como seriam os magustos se alguém fizesse confusão? Safámo-nos por pouco...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Bolota.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Mataram os vizinhos

Foto Hernâni Von Doellinger
É. Mataram os vizinhos e agora somos condóminos. Éramos vizinhos, lembram-se? E a palavra vizinho queria dizer coisas boas: proximidade, amizade, companhia, ramo de salsa, comunidade, confiança, solidariedade, copinho de vinho novo partilhado, malga de marmelada, frasquinho de geleia, as primeiras uvas, cumplicidade, visita ao hospital, dar a camisa, porta aberta, conselho pedido e recebido, comadre, quase família, melhor que família, tu cá, tu lá, serões no nosso passeio pelas noites quentes de luar, a rua inteira sentada em banquinhos de costura, em mantas ou almofadas, no chão estreme e morno, cantando modinhas, contando histórias, vidas. No Santo ou no Assento. No Picotalho ou na Cumieira, na Rua de Baixo ou na Fábrica. Éramos vizinhos. Agora somos condóminos. E a palavra condómino tem uma carga que é um pesadelo: propriedade, despesa, individualidade, indiferença, reunião, ausência, chatice, discussão, impessoalidade, porta fechada a sete chaves (três, pelo menos), queixinha, fracção, má-língua, elevador, o tempo, bom dia e boa tarde, eu cá, tu lá. Solidão, solidão. E é irónico. Há mais de trinta anos que eu sou um condómino exemplar, um condómino da melhor pior espécie - não apareço, só pago -, mas hoje deram-me as saudades de ser vizinho. Sei que já vou tarde. Estamos todos condenados a sermos condóminos para o resto das nossas vidas, enjaulados em aldeias-bairros verticais. Penitenciárias. Se ainda ao menos fôssemos conDominus nobiscum...

É. Cavamos as nossas próprias trincheiras, os nosso túmulos. As pessoas vivem fechadas em caixotes. Em caixinhas dentro de caixotes. E cada caixinha tem um respiradouro chamado varanda - ou sacada, se for na minha terra. E as pessoas fazem marquises!

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Urbanismo. Sobre o assunto, torno a recomendar a leitura ou releitura de "Jardins era um coisa que existia antigamente", "Urbanismo e estupidez natural", "Traz uma árvore também" e, já agora, "Afinal havia outras".

Come respo!

"Não queres sopa, não queres frango, não queres peixe, não queres batatas, não queres arroz, não queres massa, não queres salada, não queres fruta, não queres pão - olha, come respo!", dizia a mãe desesperada ao filho fastiento e mal-agradecido. Respo. Que quer dizer saliva ou excremento humano. Isto é, "come merda!", dizia a mãe. Assim se falava em Fafe naquele tempo, e falava-se muito bem.

P.S. - Hoje é Dia Europeu da Alimentação e da Cozinha Saudáveis.

Os paliteiros do Miranda

Os paliteiros do Miranda eram muito jeitosos. Eram uns prismas triangulares direitos ou rectos feitos em cartão coberto por papel colorido com desenhos e dizeres e um furinho na ponta. O prisma é um ponto de vista mas também um poliedro. Os poliedros são sólidos geométricos limitados por faces que são polígonos planos. O prisma triangular é um poliedro chamado prisma triangular porque as suas bases são triângulos. Tem seis vértices, nove arestas, cinco faces e duas bases, as tais. E é considerado direito ou recto porque os seus lados são rectângulos, de outro modo correria o risco de ser oblíquo. A especialidade da casa eram, no entanto, as pataniscas. As famosas pataniscas do Miranda.

P.S. - Hoje é Dia Europeu da Alimentação e da Cozinha Saudáveis.

O roxis


O roxis, quereis saber o que é? Então cá vai. O roxis é da família do taco, mas muito mais antigo, e é sinónimo de chapa, porque ir fazer um roxis ou ir fazer uma chapa era exactamente a mesma coisa. O Hospital de Fafe, no tempo em que quem lá mandava era a "Mamer", tinha uma máquina de roxis muito velha, numa sala muito escura ao lado da urgência, que era o banco, e da escadaria interior que levava à capela, que era salão nobre. Apesar da sua estratégica localização, ali entre a vida e a morte, o aparelho tinha dia certo e horário de expediente para funcionar. A sua operacionalidade dependia, se não estou em erro, da indispensável presença ou pelo menos orientação do Dr. Mota Prego, que tinha um nome de categoria e vinha de Guimarães para tratar destes assuntos.
Quer-se dizer, o Dr. Mota Prego era o nosso especialista em roxis e uma vez ele e o Dr. Antero, creio, trataram-me muito bem de uma clavícula partida que era a minha vaidade na escola e hoje em dia ainda me dói.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Radiologia.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

O incansável fazedor de sestas

Foto Hernâni Von Doellinger
Eu ainda não sabia que aquela "meia horinha" se chamava assim, mas o primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da Bomba, que não era terrorista e ganhara a explosiva alcunha derivado a ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos bombeiros de Fafe. O meu avô morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, era a Bomba.
Naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor, embora regrado. Muito regrado. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, a primeira à entrada do lado esquerdo, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era naquela altura um jornal grande, quase um lençol, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob aqueles assuntos.
As minhas tarefas em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. Tinha uma terceira tarefa, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Senhor Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora da manhã eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Senhor Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Senhor Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Senhor Ferreira era um homem bom, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e sem emprego, o Senhor Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida na mão tremente.
O meu avô da Bomba fazia a sesta muito bem. Naquele tempo ainda não era moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até viria mesmo a calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho que tenho bem a quem sair.
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava e polia os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor - já disse.

Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Senhor Ferreira do Hospital. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Eu também já durmo a sesta, percebo-os agora. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Preguiça.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Fulanos, sopranos e beltranos

Foto Hernâni Von Doellinger
Os sopranos têm, por definição, o tom de voz mais agudo e com mais alcance de mulher ou de rapaz muito novo. Se os sopranos forem homens, os puristas preferem chamar-lhes contratenores, que há quem confunda com contentores. Os sopranos dividem-se essencialmente em sete partes: soprano ligeiro, soprano lírico-ligeiro, soprano lírico, soprano lírico-spinto, soprano lírico-dramático, soprano dramático e soprano ultraligeiro. Também podem ser saxofones ou clarinetes, por exemplo, amiúde utilizados no jazz. Nos Estados Unidos, os Sopranos ainda piam mais fino: são mais que as mães, maus como as cobras e convictos frequentadores de meretrizes. São extremamente mafiosos e profundos conhecedores, estes sim, de contentores, blocos de cimento, peixes e rios, para além de cabeças de cavalo, que há quem confunda com cabeças de cavala. De escabeche. Quando inadvertidamente apanhados por famílias inimigas, liquidados e desmembrados como manda a lei, os Sopranos são chamados, por divertimento, meios-sopranos. Os Sopranos americanos fizeram uma excelente série de televisão e posteriormente derem em filme, que deveria ter por título, corrigido, digo eu, "Os Contratenores". O melhor Soprano do mundo (portanto, o pior) chamava-se Tony e padecia de ansiedade.

Hoje é Dia do Saxofone, em homenagem ao inventor deste instrumento musical, o belga Adolphe Joseph Sax, que nasceu no dia 6 de Novembro de 1814. Como já aqui contei, o meu pai era músico e tocava saxofone na Banda de Revelhe. Isto antes de ir para França. O que não tinha contado é que o meu irmão Orlando também. Também foi músico e também tocou saxofone na Banda de Revelhe. Isto antes de se dedicar a outros consertos.

P.S. - Hoje é Dia do Saxofone.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Salazar via tudo

Foto Tarrenego!

Sessão solene na Sala da Direcção dos Bombeiros Voluntários de Fafe, quartel antigo, Rua José Cardoso Vieira da Castro, entre os dois palacetes e ao lado da garagem do Zé Bastos, como quem vai para o Hospital, algures pelas décadas de cinquenta ou sessenta do século passado. Uma sala que eu frequentei e conheci muito bem. Da esquerda, Deus me perdoe, para a direita: o eterno presidente da corporação, Albino Fernandes; o então presidente da Câmara, Manoel Cardoso, no uso da palavra; o cónego Leite de Araújo, que ainda não era cónego e estava a gostar muito; e, fumegante e condecorado, condescendente, João Mendes Ribeiro, discreto comandante da Legião Portuguesa, deputado à Assembleia Nacional e procurador à Câmara Corporativa, dois anos presidente da Câmara Municipal de Guimarães, golfista amador, benfeitor à la carte, senhor da Fábrica do Ferro e dono daquilo tudo. Pregado à parede como Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz, pairando sobre presentes e ausentes, tomando conta da Nação - Salazar.

domingo, 3 de novembro de 2024

Anthony Bourdain não passou por Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger
Numa das suas visitas oficiais ao Porto e Norte de Portugal, o saudoso Anthony Bourdain (1956-2018) andou pela Invicta, deu um salto aos vales do Douro e do Tâmega, comeu por lá umas especialidades de carregar pela boca e teve o duvidoso privilégio e manifesto incómodo de assistir a uma matança de porco e às litúrgicas operações de desmancho e salga, acabando o dia a jogar à bola com a bexiga do bicho, como mandava a tradição.
E depois foi-se embora. Atenção: foi-se embora sem antes ir à Conga comer uma bifana. Mas, desta ou doutra vez, comeu bifanas em Lisboa. Isto cabe na cabeça de alguém? As bifanas da capital sempre me mereceram as maiores reservas e, francamente, a equipa do No Reservations deveria estar na posse desta importante informação. Perguntassem-me, porra!
Bourdain, mestre de culinária e estrela de televisão, disse que gostou muito das lisboetas "sanduíches gordurosas de porco", com carne "imunda e cortada em fatias finas". É uma definição elegante e que se aceita, acho eu. Mas havia de ter provado as bifanas à moda do Porto, na Rua do Bonjardim! E não me venham dizer que as bifanas são iguais em todo o lado. Porque não são. E não me venham dizer que é tudo uma questão de picante - mais ou menos. Porque não é. E não me venham dizer que é só temperar com vinho branco e mais não sei quê (o resto fica cá comigo, que também as faço uma categoria). Porque não é. É com o vinho (e com o resto), mas também com cerveja, ou para onde é que vocês cuidam que vão as sobras dos barris e a espuma que esborda dos finos (ou imperiais) mal tirados? Vai tudo lá para dentro, para o caldeirão da molhanga, e aqui é que bate o ponto. Aqui é que a porca torce o rabo. É que as bifanas do Porto chafurdam em Super Bock. E a Super Bock faz toda a diferença.

Por outro lado, Anthony Bourdain não passou por Fafe. O que é absolutamente lamentável. E indesculpável, por maioria de razão. Se o famoso chef americano queria falar de sandes com conhecimento de causa, primeiro haveria de informar-se acerca da posta de bacalhau frito dentro de biju, no Paredes, a acompanhar um sino de verde branco só para abrir apetite para o almoço. Haveria de perguntar pela sandes de pescada frita e fria no Lameiras da Rua de Baixo. Haveria de pedir que lhe contassem das sandes de vitela assada no Zé da Menina ou no Nacor, aqui também com batata para fazer fartura. Não poderia deixar Portugal sem antes provar a francesinha e o prego do Peixoto, e as moelas de coelho e os ovos de galo. Em pão. Haveria de tomar conhecimento da incontornável sandes de pastelão e da sandes de chicharro de cebolada retrasado. Haveria de querer saber das pataniscas do Miranda. Haveria de exigir que lhe apresentassem a minha côdea de broa com açúcar amarelo, que, sendo dobrada ao meio, sobe também à categoria das sandes certamente, apesar da sonsa oposição dos puristas e outros alegados diabéticos, e talvez até lhe ensinassem a sandes de bolacha maria com marmelada. Mas Bourdain não passou por Fafe. E portanto nunca soube nada disto. Foi o que perdeu. Foi o que se perdeu.

P.S. - Hoje é Dia da Sanduíche, quer-se dizer, da sandes. E em Fafe chicharro dizia-se chucharro e até havia uma família, gente boa, com esse nome posto. Sim, os Chucharros, do Lombo. Quanto às pataniscas do retrato, são cá de casa e não servimos para fora.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Antes que seja crime

Foto Município de Fafe
Reuniram-se em segredo - disfarçados, desconfiados, culpados e urgentes. Uma candeia sigilosa e tremelicante alumiava resumidamente o silêncio. Sentaram-se à volta de uma generosa vitela assada à moda de Fafe, clandestinos no fim do tempo. Antes que seja crime.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Veganismo.

Um dia sumamente produtivo

Hoje celebra-se, não cá em casa, o Dia Mundial do Veganismo ou do Vegano. E também é Dia de Cailleach, na mitologia celta, Dia de São Cesário de Terracina, Dia de Pão por Deus, Dia do Início do Ano Hidroeléctrico, dia das calendas de Novembro, dia de caminhada em Ribeiros, Fafe, e Dia de Todos os Santos, que eu sempre achei que devia ser a festa principal e de maior alegria da Igreja Católica. Os Mortos é só amanhã, estou farto de dizer, mas os veganistas parece que estão com pressa.

Um cisne, que fugira da gaiola

Foto Hernâni Von Doellinger

Tocavam sempre duas vezes

Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A sit...