sábado, 1 de novembro de 2025

Um dia sumamente produtivo

Hoje celebra-se, não cá em casa, o Dia Mundial do Veganismo ou do Vegano. E também é Dia de Cailleach, na mitologia celta, Dia de São Cesário de Terracina, Dia de Pão por Deus, Dia do Início do Ano Hidroeléctrico, dia das calendas de Novembro e Dia de Todos os Santos, que eu sempre achei que devia ser a festa principal e de maior alegria da Igreja Católica. Os Mortos é só amanhã, estou farto de dizer, mas os veganistas parece que estão com pressa.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Despesas de manutenção efectivamente

"Despesas de manutenção?", perguntei, desconfiado. "Efectivamente despesas de manutenção, meu caro senhor", respondeu-me o senhor do banco. "Mas qual manutenção e qual efectivamente?", insisti, porque padeço dessa mania tola de insistir. "Efectivamente temos destacado um colega que diariamente e em exclusivo põe a arejar, limpa o pó e passa a ferro as vinte notas de cinquenta euros que o caro senhor em boa hora fez o favor de entregar à nossa guarda. É o gestor de conta de vosselência, assim lhe chamamos...", explicou-me o senhor do banco. "Ah, bom!, nesse caso efectivamente...", disse eu.

Eu acho estranho. Quanto mais faço o serviço do banco, mais o banco me cobra pelo serviço que não faz. É só comigo?

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Poupança.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Os meus mistérios de Fafe


É no blogue Mistérios de Fafe que eu publico, desde o início do ano, os meus textos sobre Fafe, sobre vidas, pessoas, usos, falares e acontecimentos do meu tempo de Fafe e após, isto é, sobre o modo como o recordo ou quero recordar. Histórias e memórias pessoais, juvenis e profissionais, velhas amizades, cromos e admirações, cenas gagas ou desgraçadas, pilhérias, peripécias, é o que por lá conto. E mantenho activos os blogues Tarrenego!, mais generalista e "nacional", e Fafismos, este.

(Mistérios de Fafe pode ser visto e lido em - https://misteriosdefafe.blogspot.com/)

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Halloween adiado


Devido às previsões de mau tempo para sexta-feira, a Câmara de Fafe adiou todas as atividades da iniciativa "A Bicha das 7 Cabeças" para o dia 7 de Novembro. Mais informação, aqui.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Inscrições para o Natal

Foto Município de Fafe

Estão abertas as inscrições para o Mercado de Natal de Fafe, no âmbito do programa Fafe Natal 2025, que o Município promove durante o mês de Dezembro. O período de admissão de candidaturas termina no próximo dia 14 de Novembro. Mais informação, horários, normas de participação e fichas de inscrição, aqui.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Vou-te cascar!

À Lagardère
Contava fábulas de La Palice e dizia verdades de La Fontaine. Com ele, era tudo à Lagardère...

Cascar, ou por outra, malhar. Cascar significa descascar ou perder a casca, pode também querer dizer desprezar, descompor, censurar, criticar, mas em Fafe, no Minho de antanho, com ecos galegos na língua, cascar era bater, dar pancadas, dar tareia, ir ao focinho, afinfar, espancar, sovar, surrar, fustigar, açoitar, enchousar, zupar. Isso, zupar. "Vou-te cascar!", prometia-se antigamente. Aliás, o cascudo era, e creio que ainda é, entre outros menos interessantes significados, pancada dada na cabeça com os nós dos dedos, carolo, coque ou croque, como muito bem se dizia na nossa terra.
Malhar significa bater com malho, debulhar nas eiras com o mangual ou com a malhadeira, fazer troça, escarnecer, gozar, mangar, zombar, ridicularizar, falar mal de alguém ou de alguma coisa, cair de repente e desamparado, mas, naquele tempo, para nós, também queria dizer, exactamente como em cascar, dar pancadas, bater, contundir, isto é, dar tareia, ir ao focinho, afinfar, espancar, sovar, surrar, fustigar, açoitar, enchousar, zupar. Isso, zupar. Levar uma malha era apanhar uma coça.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Com o Zegolina, ninguém estava livre

Missais terra-ar
Portugal enviou missais para a Ucrânia. Pequenos missais de rito bracarense praticamente novos. As ordens eram para mandar mísseis, mas alguém da intendência fez confusão ao aviar a encomenda.

Armando Zegolina, isto é, o Zegolina, sobrenome conquistado na rua pelo cidadão Armando Sousa, era um fafense excelentíssimo e campeão mundial da maledicência. Campeão invicto e ininterrupto pelo menos enquanto foi vivo, e não sei se também depois, é preciso que se note. O Zegla dizia mal de tudo e de todos. Pelas costas, pela frente e pelos lados. Com razão, sem razão e antes pelo contrário, apenas por uma questão de princípio. Nasceu para aquilo. Dizia mal do futebol. De quem ia ao futebol e de quem não ia ao futebol. Dizia mal da religião. De quem ia à missa e de quem não ia à missa. Dizia mal da política. De quem era dos partidos e de quem não era dos partidos. Dizia mal da televisão. De quem via e de quem não via. "E tu também te podes ir foder!", dizia-me regularmente. Era. Com o Zegolina, ninguém estava livre.
E como é que lhe veio o nome fantástico? Assim. Em pequeno, ali para os lados de Portugal e do Lombo, de onde ele era, o Armando gostava muito de brincar esvaziando os pneus de todos os automóveis que lhe calhassem à mão de semear e longe da vista dos donos. Ele explicava que lhes estava a tirar a... zegolina. E daí o nome e a lenda.
O nosso Zegolina jogou futebol até aos juniores na AD Fafe e, entre 1968 e 1971, foi soldado pára-quedista e tratador-treinador de cães de guerra. Voluntário. Cumpriu oito meses de Guiné, durante os quais realizou 21 saltos, quase sempre em situações de combate. Foi operário têxtil evidentemente na Fábrica do Ferro, emigrante em França no ramo dos elevadores, e quando tornou a casa, em 1979, fez-se electricista por correspondência e montou negócio. Frequentávamos ambos o inevitável Peludo e acompanhámos depois a módica deslocalização do Peixoto, que foi só virar a esquina. Éramos amigos, eu e o Zegolina - mais o estimado Manel Zebras, velha glória da Desportiva, os três à mesa pária em que mais ninguém queria entrar. Éramos amigos. O Zegolina ansiava pelas minhas férias e pelos meus bissextos retornos a Fafe, para pormos a conversa em dia, e tínhamos uma certa pressa nisso. Éramos amigos conversantes, confidentes, cúmplices e leais, como o aço. E o Zegla até nem era nada disso de amizades derivado à língua, embora por detrás da língua desgovernada estivesse um homem generoso, bom rapaz, talvez tímido, mas ele não queria que se soubesse. Ele era ruim só da boca para fora, e essa era a sua magnífica fraqueza.
O Zegolina morreu há anos e praticamente novo, muito antes do prazo, muito antes do que seria decente ou razoável, morreu devagar, quero dizer, foi morrendo a olhos vistos, com o corpo de atleta e militar de elite cobardemente escangalhado pela sorrateira doença dos pezinhos ou paramiloidose, que só não lhe atacou a língua. E isso, estou em crer, foi o seu derradeiro consolo.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. De acordo com um estudo hoje revelado, Portugal continua a ser o país do mundo com mais casos de paramiloidose, esmagadoramente no Norte do País, com o distrito do Porto à frente de Braga e Aveiro.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Encontros Literários de Fafe


Malas literárias, poesia, cinema de autor, música, bailado, exposições e tributos, um verdadeiro encontro entre palavras, arte e cultura. É a primeira edição de Salto - Encontros Literários de Fafe, já sexta e sábado, dias 24 e 25 de Outubro, iniciativa do Núcleo de Artes e Letras de Fafe. Dois dias dedicados à "Memória, Viagem e Resistência", com homenagens a Mário Cláudio e Vicente Alves do Ó. Mais informação, aqui.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Posse da Câmara de Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger

Os eleitos locais de Fafe para o mandato 2025-2029 tomam posse no próximo sábado, 25 de Outubro, pelas 15 horas, no Pavilhão Multiusos. A cerimónia é aberta ao público e a entrada é livre. O presidente reeleito, Antero Barbosa, convida a população a "participar neste importante momento da vida democrática do concelho". Parece-me bem.

Figos de seira baixa

Fruta da época
Era Dezembro. Perguntaram-lhe sobre frutas da época, e ela respondeu ferrero rocher e mon chéri.

Consta que existem no mundo mais de 750 tipos de figos, entre os quais os nossos muito apreciados preto de Torres Novas, lampa preta, pingo de mel ou roxo de Valinhos, por exemplo. Há figos verdes, vermelhos, amarelos, roxos ou pretos. Há figos lampos ou temporãos, os que amadurecem mais cedo, habitualmente entre Maio e Julho, e figos vindimos, que se aprontam mais tarde, entre Agosto e o início do Outono. Há figos frescos e figos secos. E havia figos de seira alta e figos de seira baixa. Pelo menos em Fafe.
A seira é um cesto ou saco de esparto, onde se deita a azeitona depois de moída, para a espremer, ou onde se guardam ou levam pregos, ferramentas ou figos. As seiras com figos, geralmente frescos, eram carregadas à cabeça das antigas vendedeiras para mercados e feiras, ou de rua em rua, com velhos pregões a condizer. E também iam de burro, três ou quatro seiras de cada lado do lombo, julgo ainda ter visto esta cena uma ou duas vezes, à porta dos tascos do Zé Manco e do Paredes, e nestes casos seriam seiras com figos secos. Os figos transportados lá no topo das senhoras e em cima dos jericos eram, para nós, "figos de seira alta". Por outro lado, havia os "figos" que os burros iram largando naturalmente pela retaguarda, primeiro frescos, fumegantes, e depois secos, com o tempo, e esses, na nossa terra, naquela época, eram "figos de seira baixa"...

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Daniel Bastos em Nova Iorque


Daniel Bastos, historiador e escritor fafense, vai a Nova Iorque apresentar o livro "Monumentos ao Emigrante - Uma Homenagem à História da Emigração Portuguesa", obra concebida em parceria com o fotógrafo Luís Carvalhido. Trata-se de um trabalho bilingue, com tradução para inglês de Paulo Teixeira, prefácio de Onésimo Teotónio Almeida e posfácio de Maria Beatriz Rocha-Trindade.
"Monumentos ao Emigrante - Uma Homenagem à História da Emigração Portuguesa" assenta no levantamento dos monumentos de homenagem ao emigrante existentes em todos os distritos de Portugal continental, Madeira e Açores. O livro será apresentado, primeiro, no dia 25 de Outubro, às 17h30, na Portuguese Heritage Society, em Mineola, e depois, no dia 29 de Outubro, às 18 horas, no centenário Sport Club Português de Newark, Nova Jérsia.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O enchousado

Advérbios
- Sobretudo ou principalmente?
- Com este frio, sobretudo!

O indivíduo de triste figura, enfezado, talvez torto, talvez sujo, talvez faminto, acabrunhado, macambúzio, encolhido, atafulhado de roupa desaparelhada, quatro pares de calças, três casacos, dois sobretudos e uma gabardina, como se fosse um guarda-vestidos ambulante, como se tivesse acabado de assaltar uma loja de vestimentas velhas e invernosas - esse, assim nestes preparos, estava enchousado, era enchousado. Enchousar, o verbo, pode também querer dizer espancar, sovar, bater em. E confere. Para isso servem os pobres enchousados, para sacos de pancada.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Era uma vez em Fafe

Marcos históricos
Marco Polo, Marco Aurélio, Marco António, Marco de Canaveses, Marco do Big Brother, Marco dos Apeninos aos Andes, Marco Caneira, Marco Chagas, Marco Pantani, marco miliário, marco quilométrico, marco geodésico, marco temporal, Marco do Correio, Marco ni, Marco Bellini e João Simão da Silva, aliás, Marco Paulo.

Se me dão licença, eu creio que não está devidamente estudado o papel de Fafe e dos fafenses ou protofafenses na fundação da nacionalidade. E esta é uma lacuna particularmente repreensível numa terra que exabunda de historiadores e simpatizantes, amiúde galardoados.
Entendamo-nos. A mim nem me passa pela cabeça que Portugal tenha nascido em Guimarães, aqui a menos de três léguas ou, vá lá, digamos a quatrocentos tiros de besta, em qualquer caso perto e bom caminho, e quase sempre a descer depois de Paçô Vieira, nem me passa pela cabeça, dizia, que Portugal tenha nascido em Guimarães, que é do que eles se gabam, e que em Fafe, ao mesmo tempo, não tenha acontecido nada, eles lá em baixo à batatada, à grandessíssima trolha, um vasqueiro desgraçado, e nós aqui como se nada fosse, a vermos a Gabriela na televisão a preto e branco. É impossível. Portugal de certeza que nasceu também em Fafe, nem que tenha sido só um bocadinho, mas os historiadores - são, infelizmente, os historiadores que temos - ainda não deram fé. Esta é a minha ideia.
Eu lembro-me muito bem, e posso testemunhar, em tribunal se for preciso, que, enquanto jovens e antes do futebol e outras vidairadas, os manos Pimenta Machado, ilustres fidalgos vimaranenses, passavam a vida em Fafe. Ora, se os Pimenta Machado, que eram quem eram, uma ínclita geração praticamente, e, para além de outros cabedais, possuíam um considerável estabelecimento em frente às camionetas do João Carlos Soares, cujo escritório ficava praticamente ao lado do Café do Franklin que é o Café Vitória, na parte de fora do mercado de Guimarães, se os Pimenta Machado, enfatizo, não nos desamparavam a loja, o mais certo é que, antes deles, o próprio Afonso Henriques desse também as suas voltas pelos nossos lados, nem que fosse só para desenfastiar ou beber um copo no Nacor, nada mais natural.

Afonso Henriques, esse gabiru de estilo motoqueiro que gostava de vestir saias e há quem diga que batia na mãe, tinha uma espada que pesava toneladas e não cabia no guarda-vestidos e, em rigor, nem sequer existiu. O espadalhão, quero eu dizer. Já o jovem Afonso ficou na história da moda por ter sido o criador da maxissaia. Morava geralmente no austero Castelo de Guimarães e tinha um anexo charmoso chamado Paço dos Duques onde dava as suas festas que eram sobremaneira constadas. No dia 24 de Junho de 1128, tomai nota, depois de uma dessas iglantónicas farras, noitada de São João ainda por cima, Afonsinho do Condado acordou digamos maldisposto, bebeu um copo de água da mina com bicarbonato, mandou chamar o pessoal e os cavalos e derrotou a progenitora, Dona Teresa de Leão, mailo seu amante galego, Fernão Peres de Trava, na Batalha de São Mamede, levada a efeito ali mesmo nos arredores, para evitar deslocações e despesas, que o País ainda estava a começar.

Acontece que a Batalha de São Mamede, aviso já, nunca me convenceu. Custa-me a aceitar que sítios como Creixomil ou Cano (Cáno, como dizem os locais) possam ser mais importantes no que nos é contado como sendo a História de Portugal do que, por exemplo, e não vamos mais longe, Arões ou Cepães, ali mesmo ao pé, mas do lado de Fafe, do nosso lado. Duvido, de resto, que Guimarães tivesse naquele tempo equipamentos, nomeadamente hoteleiros, para acomodar aquela espanholada toda e ainda por cima recinto preparado e certificado para a pancadaria. É que, parecendo que não, um evento desta natureza, uma batalha com cavalos e tudo, implica muita logística. Olhem só a confusão que são hoje em dia as chamadas feiras medievais! Por outro lado, o Multiusos vimaranense funciona apenas desde 2001 e o Estádio, embora chamado D. Afonso Henriques, só ficou uma coisa em condições para o Euro 2004.

Eu cuido que Fafe teria recebido muito mais condignamente a Batalha de São Mamede. Não é por acaso que chamamos a nós próprios, embora sem razão que se perceba, Sala de Visitas do Minho. Olho para a zona de Rilhadas, vamos um supor, e vejo a batalha ali. Vejo claramente vista. Uma zona devidamente infra-estruturada e onde sobejam as condições e comodidades para a organização de uma batalha com todos os matadores e que certamente não envergonharia ninguém.
As pistas estão aí. Há que repor a verdade dos factos. Fafe não pode continuar à porta, nas bordas da História. De uma vez por todas, Fafe deve ocupar o lugar a que tem direito. Se São Mamede foi em Rilhadas, isto é, se a Batalha de São Mamede foi de facto levada a efeito em Rilhadas? Não sei. Esse é o desafio que eu deixo de borla aos historiadores encartados, particularmente aos intrépidos historiadores fafenses, se a tanto os ajudar o engenho e arte. E não me venham dizer que, a esse respeito, a História é omissa. Omissa? Homessa!

(Em nome do rigor histórico, refira-se que, regra geral, os vimaranenses de bom beber e satisfatório comer vinham muito a Fafe e, lá com aquelas manias deles, chamavam Toninho dos Canários ao tasco do Nacor.)

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Nacional dos Castelos.

Fafe e a Guerra dos Cem Anos

Desarmado em parvo
Era tão pacifista, tão pacifista, tão objector de consciência, tão objector de consciência, tão não-violento, tão não-violento, que havia quem dissesse que ele andava constantemente desarmado em parvo.

A Batalha de Castillon foi levada a efeito no dia 17 de Julho de 1453 e ficou para a História como a derradeira e decisiva batalha da Guerra dos Cem Anos, que decorreu razoavelmente entre franceses e ingleses. A França ganhou, e félicitations à la cousine. A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas bancários, e assim começaram os arredondamentos, que saem sempre à casa. Por outro lado, a Guerra dos Cem Anos ostenta este curioso e inusitado nome, Guerra dos Cem Anos, para se distinguir da Guerra dos Oitenta Anos, que se verificou não sem alguns sobressaltos entre os futuros holandeses, actuais neerlandeses ou, quiçá, países-baixistas, e Espanha, com a Guerra dos Dez Anos, entre cubanos e espanhóis, com a Guerra dos Treze Anos, entre prussianos e teutónicos, com a Guerra dos Trinta Anos, entre a Alemanha e quem lhe aparecesse à frente, com a Guerra dos Sete Anos, entre França mais aliados e Inglaterra mais aliados (incluindo Portugal), com a Guerra dos Seis Dias, entre árabes e israelitas, com a Guerra das Audiências, entre a SIC e a TVI, e até com a Guerra das Rosas, entre a Rosa Maria e a Rosa Beatriz, que não se dão nem à lei da bala e andam sempre à trolha uma contra a outra derivado ao Anacleto Lingrinhas, que por acaso é pintor de automóveis e aquece a cama a ambas. A História, assim maiusculada, não se compadece realmente com equívocos.

E quereis saber como é que começou a Guerra dos Cem Anos? Então, cá vai.
Era um encontro previsto para ser aprazivelmente diplomático e discutido à melhor de três sets, quando Mister Cheddar, pela Inglaterra, e Monsieur Camembert, pela França, reuniram em Sherwood, sob os auspícios do Robin dos Bosques e a bênção de Frei Tuck, tendo sobre a mesa, já naquele tempo, a delicada questão das quotas leiteiras. Estava tudo a correr bem, estava-se até bastante agradável, entre uísques e champanhes perfeitamente bebidos, mas era um cheiro a chulé que não se podia. Foi então que o inglês, já com um grãozinho na asa e uma mola de roupa no nariz, não aguentou mais e questionou o francês, com a ajuda do José Milhazes, que fazia as traduções: - Porque é que o caro amigo (old chap, no original) não vai mas é lavar os pés no Sena?...
O franciú levou a mal e foi assim que começou a Guerra dos Cem Anos. Até hoje.

Ora bem. Eu cuido que a Batalha de Castillon ocorreu em Fafe, exactamente em Fafe, aqui mesmo nas nossas barbas, numa antiga elevação situada entre a Ponte do Ranha, o Socorro, a Alvorada, a Fábrica do Papelão, a casa da Dona Aurora e o Estádio, com o rio Ferro a passar e os campos e bouças de Cavadas aos pés. Ali se alcandorava, com efeito, o famoso monte de Castelhão, como se diz em português corrente, ou Castilhom, como se diz em fafês correcto - e portanto está fácil de ver onde franceses e ingleses foram buscar local e nome para a refrega. O monte de Castelhão era, na verdade, um sítio aprazível para a realização de todo o tipo de batalhas, como por exemplo brincar aos cobóis, e tinha um belíssimo pionono, de que infelizmente não há muita certeza. Mas isso é outra história.

Em todo o caso, não será certamente despiciendo relembrar que Fafe, o seu centro histórico e arredores consuetudinários, sempre dispôs das melhores e mais vantajosas condições naturais e estruturais para a realização de grandes eventos e mesmo certames de índole nacional e, como se vê, até internacional ou mais, nomeadamente batalhas e guerras de uma forma geral e dos mais diversos feitios. É uma terra que fica à mão e onde medram e farturam equipamentos a esse respeito e subsídios camarários. Não por acaso, suspeito e defendo que a própria Batalha de São Mamede, fundadora da nacionalidade, foi em Fafe que realmente se desenrolou, pelo menos um bocadinho, e ainda ninguém me conseguiu provar o contrário.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Nacional dos Castelos.

A esfera armilense

Carlota Joaquina, Teolinda Joaquina de Sousa Lança (aliás, Linda de Suza), Joaquina de Vedruna, Mariana Joaquina Apolónia da Costa Pereira de Vilhena Coutinho, Joaquina Lapinha, Joaquininha, a minha sogra, e a Quininha "Varandas", de Fafe. Sete Quinas, como dizia o outro.

A esfera armilar só pode ter sido inventada em Armil, talvez no tempo dos romanos, que é um tempo do mais antigo que pode haver. Mais antigo do que o tempo dos romanos, só o tempo dos dinossauros, que, no entanto, não eram um povo assim tão evoluído. Mas quanto à invenção da esfera, que não haja dúvidas: em Armil, como o próprio nome indica, armilar, para não dizer armilense, e nem é de admirar, tendo em conta que a História de Portugal e até de outros países mais ou menos estrangeiros passou-se bastante aqui em Fafe, basta ver as batalhas de São Mamede e de Castillon, para não irmos mais longe.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Nacional dos Castelos.

domingo, 5 de outubro de 2025

Meninos, à mesa!

Espanto gastrointestional
Ele era vegetariano e cagava postas de pescada. A ciência nunca soube explicar o fenómeno.

Quando a corneta, ou olifante, tocou para o tacho, eram mais de três mil cavaleiros, de faca e garfo em punho como se fossem para uma justa, mas sentados e com um apetite escancarado e lavajão, posto que estávamos na Idade Média, e higiene e boas maneiras não eram com eles naquele tempo. Manifestamente atónito e arreliado assim assim, o rei Artur fez contas à vida, pelos dedos, apaziguou a algazarra da turba colorida e apenachada com meia dúzia de flechas cirurgicamente colocadas e obviamente fatais, invocou o regimento e colocou um ponto de ordem à mesa. O seguinte: "Embora nunca tenhamos realmente existido, está historicamente provado que vocês não podem ser mais de doze, talvez 24, ou, para não me chamarem unhas de fome, temos sala para 150, fora as crianças, que pagam metade. Agora, famílias inteiras, 3.145 adultos e gordos, menos os seis que eu vindimei, já é uma escandalosa moinice. De onde é que me apareceu esta gente toda, que ainda por cima não traz o Magriço, que até nem dá despesa nenhuma, como o próprio nome indica? Por São Jorge, isto é a Távola Redonda, não é a sopa dos pobres"...

Moral da história: Por isso é que os Fins de Semana Gastronómicos e o Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe são comidos em mesas corridas, geralmente rectangulares. Para evitar confusões.

P.S. - Versão revista e apurada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é o último dia do Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe.

sábado, 4 de outubro de 2025

O melhor dia do anho

É preciso ter lata
O confinamento da pandemia fez dele um verdadeiro especialista em atum, preparando-o para toda a espécie de apagões. Bom Petisco à segunda, Ramirez à terça, Tenório à quarta, Minerva à quinta, Pitéu à sexta e Inês ao sábado. Ao domingo, sardinha em tomate, evidentemente.

Quatro ou cinco dias antes do domingo da Senhora de Antime, que é o segundo domingo de Julho, um pastor mailo seu rebanho davam entrada no largo do Santo Velho, mesmo em frente a nossa casa, e ali se estabeleciam, montando pasto, posto de venda e açougue, até que o último anho fosse despachado, isto é, até ao extermínio total. O pastor tinha cajado de pastor e cão de pastor, mas não era um verdadeiro pastor, era um senhor creio que da Rua de Baixo ou Santo Ovídio com faro para o negócio e habilidade para matar cabritos. Só era pastor, quer dizer, cabriteiro, naquela época do ano. E o rebanho também era um falso rebanho, os animais não se conheciam de lado nenhum, juntavam-se apenas para aquilo, naquela ocasião, mal eles sabiam com que fim, eram recrutados nos lavradores das redondezas e levados ao engano e ao altar do sacrifício, quer-se dizer, ao forno do fogão a lenha, de preferência, com batatinha dourada e arroz seco e solto, tudo muito bem comido e regado, na mesa grande e em família alargada, logo a seguir à procissão mas sem pressas. O fogão era amiúde na vizinha, por favor, bastava ir lá às horas certas para dar as devidas voltas à pingadeira.
Antes que me esqueça, para os de fora: o cabrito, generalizemos assim por bondade, era e suponho que ainda é o prato oficial das Festas de Fafe, isto é, da Senhora de Antime. O que não deixa de ser irónico, na terra da vitela assada. Naquele tempo, o cabrito entrava em nossa casa apenas uma vez por anho, e, é preciso que se note, em anhos bons...
No Santo Velho acontecia tudo, o Santo era um largo multiusos. Portanto também servia de matadouro e talho, escancarado e a céu aberto. O Santo era o centro do mundo. Os clientes vinham de toda a parte, da Feira Velha, da Fábrica do Ferro, do Retiro, da Ponte do Ranha, da Fonte da Cana, de onde calhasse. As pessoas escolhiam o animal que queriam levar para casa, maior ou mais pequeno, vivo ou morto, como os bandidos procurados no Velho Oeste americano. O peso e o preço eram combinados a olho, entre vendedor e comprador, e mais tarde eventualmente ajustados, coisa de nada, após pesagem da carcaça numa balança de mola propriedade do magarefe e viciada com toda a certeza.
Se era para seguir cadáver, o bicho morria logo ali, encostado ao muro do quintal da Senhora Carolina, avó do Naninho. O matador tinha um tenebroso conjunto de facas ou navalhas de diversos tamanhos e feitios, mas todas muito bem afiadas. E tinha também um pequeno tubo de cana que usava para, soprando-lhe do fundo da alma, com a cara a passar perigosamente pelas três cores dos semáforos, amarela, verde e vermelha, por esta ordem, inflar grotescamente a pele do animal, separando-a da carne e dobrando-lhe o tamanho, aquilo tudo quase a rebentar, o homem e o odre, cuidava eu, e era realmente uma coisa extraordinária de se ver, para depois proceder à esfola, facilmente, com uma perna às costas, como quem limpa o cu a meninos. E antes assim.
Era uma mortandade que só vista, caíam uns atrás dos outros. O chão do Santo enchia-se de vísceras e tripas e peles vazias e varejas grandes, feias e verdes. O Santo era uma poça de sangue, uma vala comum, uma estrumeira. O ar do Santo tornava-se irrespirável, cheirava a erva, a merda, a palha, a sebo, a azedo, a peste, e até as tílias se afligiam. O Santo fedia. Mas era por uma boa causa...
Por pobreza ou conveniência, havia quem comprasse o cabritinho a meias, ou até em quartos, mas quanto a isso os clientes é que se entendiam. Quem tivesse um galinheiro de vago ou um bocadinho de quintal, aproveitava para comprar o anho mais cedo, quando a possibilidade de escolha era maior, e levava o anho vivinho da silva para dois ou três dias de engorda. Na sexta-feira e não sei se ainda no sábado, o matador ia a casa e acabava de vez com a conversa.
Cá fora, o refugo aguardava pelos retardatários do costume.
Quem tinha de aparecer, por aqueles dias, era o Landinho, o Nosso Menino. E aparecia, porque o Landinho aparecia sempre. O Landinho andava de porta em porta e navalha na mão oferecendo os seus préstimos como matador de cabritos. Isso. O nosso Landinho, que era, entre outros afazeres delirantemente encartados, fiscal da câmara, polícia de trânsito, passador de multas e até padre, também matava muito bem cabritos, embora nunca o tivesse feito nem chegou a fazer, para sorte dele, dos cabritos e de nós todos.

Portanto, meus amigos fafenses, o segundo domingo de Julho, dia da Senhora de Antime, é agnus day, quer-se dizer, dia do anho. Mas também da vitela. E, se calhar, das tripas, aquele meio tachinho que sobra estrategicamente do almoço de sábado. E atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada", com os ésses muito bem condimentados. Vitela e falar à moda de Fafe, sempre! Isto é, "sémpre"! A vitela assada à moda de Fafe, minhas senhoras e meus senhores, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo. E isso nem tem discussão.

P.S. - Versão revista e apurada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Arrancou ontem e vai até amanhã a décima edição do Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Adeus, confrade, até outro dia

Foto Expresso de Fafe

A bela foda
Iam receber visitas e ela não sabia o que lhes havia de dar. "E se lhes déssemos uma boa foda?", sugeriu ele. Eram, com efeito, uma família tradicional, monçanenses dos quatro costados.

E agora, o que vai ser das nossas confrarias? Agora, quero dizer, agora que está tão próximo o dia infame da vitória de todos os veganismos e vegetarianismos, o que vai ser, repito, das nossas queridas confrarias. E penso muito especialmente, com o coração pesado e não sem um amargo de boca, na Confraria Gastronómica da Região de Lafões, na Confraria da Carne Barrosã, na Confraria Gastronómica da Raça Arouquesa, na Confraria Gastronómica do Toiro Bravo, na Confraria da Foda de Pias-Monção ou, puxando a brasa à nossa sardinha, na Confraria da Vitela Assada à Moda de Fafe, honradas e orgulhosas confrarias que destaco ao acaso entre as cento e vinte e três mil novecentas e oitenta e sete confrarias gastronómicas de Portugal. E agora as confrarias? Agora que o consumo de carne está à beira de ser crime, o que vai ser daquelas fatiotas todas janotas? E dos pins? E das fitas? E das medalhas? E dos chapéus tão pândegos? E dos sarrafos? E das tainadas quinzenais? E das passeatas? E dos desfiles? E daquele sentimento de casta superior e há uns que são sempre os mesmos? E das viagenzinhas eventualmente de geminação, de preferência ao estrangeiro, sempre que possível ao Brasil, o que vai ser, agora?
Teremos sempre, graças a Deus, a Confraria de Nossa Senhora das Neves e a Confraria da Folha de Alface Repolhuda. Mas terão estes dois oásis, digamos confreiráticos, condições para acolher, pelo menos com o conforto devido a uma galinha pedrês, os milhões de confrades e confreiras assim de repente despejados dos seus deveres e haveres por esse país fora, como se fossem bandidos, refugiados, imigrantes ilegais praticamente?
Estou bastante preocupado.

A respeito do título. A lengalenga dos antigos em Fafe lengalengava-se assim como se segue, fazendo o sinal da cruz, Deus me perdoe: "Pelo sinal, bico real, comi toucinho no teu quintal, se mais me desses, mais eu comia, adeus, compadre, até outro dia."

P.S. - Versão revista e apurada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Está aí mais uma edição do Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe. Os confrades são muitos, mas os restaurantes aderentes são apenas cinco. Começa hoje e vai até domingo, no Parque da Cidade. E tem workshop, evidentemente...

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A guardar-se para a vitela

À moda de Fafe
Podem-lhe pôr rodela de laranja. Podem. Podem pôr-lhe, até, rodela de ananás ou rodela de quivi ou fatia de abacate ou, se calhar, morangos com chantili, picles, frutas cristalizadas, farofa, "ketchup" ou mostarda de Dijon, claro que podem. Ponham! Mas, se é vitela assada à moda de Fafe, melhor fariam se não pusessem. Como diziam os antigos: não é dado...

Os domingos tinham esse pequeno problema, e quem for de Fafe e antigo sabe do que falo: tripas ou vitela assada? Era a verdadeira questão, o dilema do almoço dominical. Os fafenses de antanho, gente de bom comer e satisfatório beber, resolveram facilmente o assunto: isto é, em vez de tripas "ou" vitela assada, o almocinho de domingo passou a ser tripas "e" vitela assada. Até hoje. Nem o bíblico Salomão, nos seus melhores tempos, tomaria decisão mais acertada.
vitelinha guiava-se em casa, com vagar e carinho, com as voltinhas todas, se possível em forno ou fogão de lenha, pingadeira de barro, velhinha, bem tarimbada, e as tripas, regra geral, iam-se buscar num tachinho à Esquiça ou à Pacata, consoante a ideia que cada um tinha acerca da sua própria posição social - o que agora até dá para rir, sabendo-se da história completa e vendo-se assim a coisa à distância...
Começava-se, portanto, pelas tripas, e a seguir vinha a vitela. O apetite era gerido ao milímetro, mais ou menos um bocadinho daquelas, mais ou menos um bocadinho desta - porque, como determina o princípio da impenetrabilidade da matéria, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, e as vacas é que têm quatro estômagos, melhor para nós. Ora bem: a malta nova, pouco dada à tripalhada, reservava-se para a chicha com batatinha de ouro e arroz seco e solto. Mas, de quando em quando, reservava-se mal. Como daquela vez em que o nosso Zé não tocou no feijão. Perguntaram-lhe se estava doente, se tinha fastio, se queria um caldinho branco, se queria meter o termómetro. Que não, que não, que não e que não, respondeu respectivamente, e explicou todo gaiteiro: - Estou a guardar-me para a vitela!
Naquele domingo não havia vitela. E as tripas já tinham saído da mesa...

Agora, muita atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada". À moda de Fafe. E, repito, mais atenção ainda: a vitela assada à moda de Fafe, quando bem trabalhada, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo.

P.S. - Versão revista e apurada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Está aí mais uma edição do Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe. É já de amanhã a domingo, no Parque da Cidade. E tem workshop, evidentemente...

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Provavelmente a melhor vitela assada mundo

Assim e assado
- Há dias assim.
- E dias assado?
- Assado? Foi tempo... 

Eu às vezes temo pelo futuro da nossa vitela assada. A existência da confraria respectiva não me sossega e por acaso até já me preocupou. Isto é, não sei se a nossa vitela assada à moda de Fafe está realmente em boas mãos. O circo chegou à cozinha. Lembro-me das nossas Feiras Francas de 2013 e de uma programação toda modernaça que até meteu workshoppingshowcasing e showcooking, e esta parte afligiu-me desde logo. Anunciava-se "a tradição e a inovação de mãos dadas", prometia-se a "elaboração de pratos tradicionais recriando com inovação", e eu, à rasca, só pedia aos Céus: - Com a nossa vitela, não! Senhor, fazei com que eles deixem estar tudo como está, que está tão bem, graças a Deus! São Lourenço, padroeiro dos cozinheiros, segundo uns, rogai por nós! São Benedito, padroeiro dos cozinheiros, segundo outros, rogai por nós! Minha rica Senhora de Antime, livrai-nos dos estragadores e salvai a nossa vitela assada, amém!
É. Eu sou muito religioso, embora amiúde não pareça, e levo a comida muito a sério, mas isso já se sabe. A honesta vitela assada à moda de Fafe até poderá ter os dias contados, porque os comedores de rúcula e outros tofus ainda nos vão proibir o consumo de carne, mas, enquanto não é crime, eu faço questão que a deixem em paz. Uma simples rodela de laranja a enfeitar, ainda que com a melhor das intenções, pode deitar tudo a perder.
E por isso digo e redigo: não mexam na nossa vitela assada! A vitela assada à moda de Fafe é o que é. É à moda mas não há modas. É, sem tirar nem pôr. Não tem variações, não admite inovações, dispensa recriações ou até interpretações. É vitela assada à moda de Fafe. Tal e qual como a recebemos dos nossos avós e dos avós dos nossos avós. Assim.

Sei muito bem o que fizeram à lampreia. A lampreia é, para mim, o supra-sumo da melhor gastronomia alto-minhota. Uma gastronomia apurada, robusta, variada, generosa, com personalidade, como eu gosto e como é, no geral, toda a honesta cozinha tradicional portuguesa. Há o arroz de lampreia, há a lampreia à bordalesa. E até admito mais duas ou três bondosas variantes (como a lampreia fumada, a lampreia recheada ou a lampreia assada), mas que, não desmerecendo, já não me são a mesma coisa. Eu fico-me pela arrozada a fugir do prato a todo o vapor e pela bordalesa intensa e substancial - embora, como a maioria dos portugueses, já só coma lampreia praticamente de memória.
No Alto Minho, a lampreia é justamente considerada "um prato de excelência" e de tradição. Sim, de tradição. "Para confeccionar um produto de qualidade com paixão e arte, nada melhor que as mãos de afamadas cozinheiras que receberam os testemunhos e segredos de gerações passadas, com raízes na ancestral tradição culinária do Vale do Minho", lia-se, uma vez, num opúsculo que chamava visitantes e promovia o consumo do apreciado ciclóstomo nos restaurantes da região.
E até aqui tudo bem. Só que, na capa do tal prospecto, a lampreia era apresentada num empratamento aguado e triste, desenxabido, somítico, obra certamente de um daqueles famosos jovens chefs da televisão que não cozinham nada mas têm muito jeito para as artes plásticas. Resultou assim uma coisa de snack-bar cantineiro, algures entre Nova Iorque e Bogotá, sem passar por Bouças, espécie de nouvelle cuisine pretensiosa e escusada, que envergonha a velha lampreia e a tradição gastronómica alto-minhota. Uma desgraça.
Assusta-me que venha a passar-se o mesmo com a nossa vitela. Quer-se dizer: temos provavelmente a melhor vitela assada do mundo, vamos agora inventar o quê?...

P.S. - Versão revista e apurada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Está aí mais uma edição do Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe. É já de sexta-feira a domingo, no Parque da Cidade. E tem workshop, evidentemente...

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Deus falava às quartas-feiras


O pecado original
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.

O sítio da Bíblia, em Fafe, era em Cima da Arcada, às quartas-feiras, entre o homem da banha de cobra e o triciclo motorizado com as mezinhas e os milagres da santa Alexandrina de Balasar, tudo muito bem documentado. Ficava-me no caminho para a escola. Em certas ocasiões também por lá constava o Rei das Limas, que usava um capacete colonial e tinha lábia de encantador de serpentes. A Bíblia apresentava-se nuns grandes desenhos muito coloridos e muito bonitos, montados num cavalete de madeira, e eu tinha-lhes muita devoção porque me pareciam cartazes de cinema, cenas de filmes de gladiadores e pirâmides, e o cinema, naquela altura, era a minha verdadeira religião. Eu creio que foi assim que despontou a minha "vocação" sacerdotal, a minha irreprimível vontade de ir para padre.
Quarta-feira era e é dia de feira semanal em Fafe. E eu perdia-me ali, naquele pedaço de passeio junto às escadas que desciam para o Largo antigo, mesmo em frente à actual praça de táxis. Adorava as lérias do cavalheiro das limas, facas e tesouras, que afinal vendia tudo e um par de botas, ajudado pela mulher, uma senhora toda jeitosa e chamativa, em cima da camioneta. Falava pelos cotovelos, o homem, embora, derivado aos perdigotos, tivesse pendurado ao pescoço, por um arame, um potente microfone envolto num lenço de assoar que era uma categoria. Dizia que tinha nascido numa freguesia de Fafe, não me lembro em qual - e Serafão vem-me agora à cabeça, mas não sei porquê -, e contava as aventuras passadas nas suas mais de mil voltas ao mundo, sobretudo a África, e daí certamente o capacete, Júlio Verne não o faria melhor. Para mim, estava tudo explicado. Com aquele capacete, o arame, o microfone e o lenço, eu via-o até, ao intrépido Rei das Limas, a ir ao centro da terra ou ao fundo do mar, à Lua ou mesmo a Marte, assim equipado de explorador. Ainda por cima, o astronauta era nosso, de Fafe, eventualmente de Serafão, não sei porquê, insisto, e quem diz Serafão pode dizer Moreira de Rei ou Pedraído...
Eu admirava os propagandistas. Profetas, apóstolos, missionários, pregadores, palavristas. Propagandistas, isso. Costumava, aliás, colaborar com o da banha da cobra, era o seu habitual ajudante naqueles números gagos de chamar povo e enganar tolos, a promessa sucessivamente adiada de exibir a gigantesca cobra jibóia guardada na velha mala de cartão colocada, sob rigorosas medidas de segurança, em cima de um banco de cozinha manco de uma perna. Competia-me alinhar em duas ou três pataqueiras habilidades de circo. Eu era o palhaço pobre, a cobaia, a vítima, e gostava de fazer parte. No término do espectáculo, ou da apresentação, digamos assim, o vendedor de banha da cobra dava-me de pagamento um pequeno sabonete que eu, de todas as vezes, entregava religiosamente à minha mãe, e a esperadíssima cobra, ia-se a ver, pouco maior era do que a bicha solitária exposta num frasco cheio de álcool e que, colocada sobre o capô do carro, como prova, ao lado das dezenas de embalagens da famosa pomada multifunções, atestava aos mais cépticos, caso os houvesse, que o assunto era científico, e de cura garantida, como estava ali à vista de toda a gente. - Não estou aqui para enganar ninguém!...
Eu deixava-me seduzir. Os da Bíblia explicavam os desenhos, um atrás do outro, qual deles o mais impactante e sugestivo, com aquelas senhoras muito vestidas e de cabelos compridos e aqueles senhores muito barbudos e grisalhos, as senhoras e os senhores em respeitosas poses colossais, e seguiam-se confortáveis paraísos terreais, e serpentes onzeneiras, e dilúvios vingativos, e cordeiros degolados, e sodomas e gomorras, e sarças ardentes, e cavalos e lanças, e baleias e leões, e pragas de gafanhotos, e mares abertos ao meio, e davides e golias, e céus escancarados, e bastante inferno, e raios e coriscos, e o fim do mundo, que por acaso em Fafe era feminino, dizia-se "a" fim do mundo. Cada conjunto de desenhos era um história inteira, completa, um filme. Pelo menos para mim. Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, eu via-os ali, claramente vistos. Até via o Homem Mais Forte do Mundo, que mais tarde conheceria pessoalmente, não é para me gabar, eu vi-o antes de o ver, juro, lá estava ele estampado de pleno direito nos santos desenhos, mas essa parte os da Bíblia às quartas-feiras infelizmente nunca viram, não sabiam, não faziam ideia. Eram, Deus lhes perdoe, uns circunspectos.
Era. Deus falava às quartas-feiras. Em Fafe. Entre a banha da cobra e o Rei das Limas. Na feira. A Bíblia contada aos simples, vendida a retalho, em folhetins.
No seminário, nos silenciosos dias de retiro, era mesmo desta parte que eu gostava mais. No grande salão de estudo, estores corridos, luzes apagadas, o tripé com cartazes substituído pelo projector de slides, o vozeirão do narrador saindo de um enorme gravador de bobinas com colunas como se fosse do céu, uma ou outra sacramental dessincronização e banda sonora de Vivaldi e Beethoven, o que certamente seria do particular agrado do incontornável padre Coutinho, que tinha tanto de melómano como de pide. As palestras cheias de aventuras do padre Fernando Leite, da revista Cruzada e do jornal Clarim, compunham-me a alma, é verdade, quase tanto como ler "O Meu Cristo Partido", de Ramón Cué, ou ouvir Ruy de Carvalho a dizer "Desiderata", mas, confesso, a Bíblia assim contada à moda das Testemunhas de Jeová, cataclísmica como na feira de Fafe e ainda por cima em versão eléctrica, isso é que era a minha cena. 
Ah! A Bíblia! Eu adorava a Bíblia. Eu adoro a Bíblia. E ainda estou para perceber como é que nunca cheguei atrasado à escola por causa da banha da cobra e porque é que me mandaram embora do seminário...

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de FafeNo dia 30 de Setembro de 1452, faz hoje anos, começou a ser impressa a chamada Bíblia de Gutenberg, considerada o primeiro livro do mundo. Hoje é Dia da Bíblia Católica e Dia Internacional da Tradução, crê-se que em homenagem a São Jerónimo, doutor da Igreja e conhecido por ser o primeiro tradutor das Escrituras para o latim vulgar, popularizando assim o seu conteúdo. Já agora, e só para que conste: a minha Bíblia é protestante. Curiosamente, hoje é também Dia da Blasfémia ou, melhor dito, Dia Internacional do Direito à Blasfémia.

Festival da Vitela Assada


Já no próximo fim de semana, de sexta a domingo, 3 a 5 de Outubro, X Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe, no Parque da Cidade. Gastronomia, música, com destaque para os espectáculos de Mariza e Bárbara Tinoco, animação, artesanato, exposições e workshops. Participam cinco restaurantes da cidade, chancelados pela Confraria da Vitela Assada à Moda de Fafe: Adega Popular, Casa de Pasto Reis, Desigual, Dom Egas e Feira Velha. O menu tem o preço de 17,50€, incluindo vitela assada, vinho verde de Fafe e doces de gema. Mais informação, aqui.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Antes que lhe caia a pirângula

O perigo de ougar
Os anjos não têm sexo. Quer-se dizer: tinham, mas queriam mais, ougaram e caiu-lhes a pirângula, como se dizia em Fafe.

Em terra de pobres, a norma era desougar. Não havia fartura, faltava até o mero suficiente, mas procriava-se com prazer, abundavam evidentemente as crianças, e então dava-se-lhes apenas a provar, e por uma boa razão, essencial, para manter os futuros homens inteiros e artilheiros, como adiante se verá. Ougava-se muito, antigamente, sobremaneira cá em cima, no velho Douro, em Trás-os-Montes, no nosso Minho, em Fafe especialmente, lembro-me bem, ougava-se, noutros sítios do Portugal triste e escanzelado dir-se-ia decerto doutra maneira também pândega para disfarçar, mas a querer dizer sempre o mesmo: pobreza. Fome, quando não.
Ougar, ou ògar, de augar, de aguar. Ougar, isto é, salivar ao olhar para comida ou bebida de outrem, ficar com água na boca, sentir grande desejo de. Ougar era muito perigoso naquele tempo, porque, dizia o povo, que sabia tudo embora morresse cedo, quem ficasse ougado, quer-se dizer, desconsolado, contrariado, carente, invejoso, em situação de grande desprazer ou de pasmaceiro apetite ao ver, caía-lhe redondamente a pirângula, isso mesmo, a pirângula, não sei se os acessórios também, e a ideia de um futuro homem sem pirângula e quiçá também sem acessórios, hoje em dia a coisa mais natural do mundo, não era ideia que se tivesse naquela altura sem o incómodo de um penetrante arrepio pela espinha acima.
Por isso, entre os pobres, era muito importante atalhar a coisa, desougar - o gado, com um pequena porção de penso, mas não é isso que vem aqui ao assunto, e fundamentalmente as crianças, coitadinhas, mais que as mães, ruins de aturar, com mais olhos do que barriga, borradas, chorosas, moncosas e cobiçosas de tudo o que viam ou pressentiam à frente dos outros. Desougar era dar um bocadinho. Desougar era uma urgência. Desougava-se para impedir o ougamento, para poupar um par de estalos (geralmente não, acumulava), para acabar de vez com a lamúria e, em todo o caso, para preservar a integridade pelo menos física do pedinchoso. À mesa, mandava, solene, quem era de lei, o homem: - Caralho, mulher, desouga o moço, dá-lhe um cibo antes que lhe caia a pirângula!...

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia dos Arcanjos. Miguel, Rafael e Gabriel.

sábado, 27 de setembro de 2025

Movo aeroporto de Lisboa é em Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger

Foi no final de 2023. A notícia saiu no insuspeito tablóide britânico The Sun e portanto só pode ser verdade: Fafe é "a cidade mais barata de Portugal". Pelo menos, para inglês ver. Quem me alertou para a magnífica novidade foi o nosso Pedro Dantas, que está lá na Velha Albion e sempre atento a estas extraordinarices. De acordo com o bem informado artigo, que, nem de propósito, confunde o Palacete dos Dantas com a Igreja Românica de Arões, Fafe, "uma cidade pouco conhecida em Portugal", ficou em primeiro lugar num ranking de barateza turística elaborado por uma entidade alegadamente chamada Porto Travel Guide. Mais de cem cidades portuguesas terão sido "analisadas por especialistas", e Fafe ganhou, à frente de Oliveira de Azeméis, Famalicão, Ovar e Amarante, só para se ter uma ideia.
E o que é que Fafe tem? Pois, para além da igreja e do palacete levados ao engano, Fafe tem a Casa do Penedo e a Casa do Santo Velho, na minha rua, e "um enorme parque aquático ao ar livre", embora os indígenas prefiram refrescar-se "no reservatório local chamado Barragem de Queimadela". Para além disso, garante o indesmentível The Sun, Fafe tem "comida e bebida baratas", "restaurantes baratos e hotéis económicos". É pouquinho? Mas é de boa vontade.
Isto aqui vai ser outra vez o fim do mundo, vamos ficar a nadar de camones. E convém que parem por aí os estudos uns atrás dos outros que só dão despesa e não vão a lado nenhum. Nem Portela, nem Portela + 1, nem Portela + 2, nem Montijo, nem Alcochete, nem Santarém, nem Pegões, nem Rio Frio, nem Poceirão, nem Beja, nem Monte Real, nem Alverca. Nada disso. O novo aeroporto de Lisboa só pode ser em Fafe! Em Fafe, mais exactamente na freguesia de Golães, cumprindo-se enfim a viperina profecia da má-língua de outros tempos.
Ó gente da minha terra, abaixaide-vos! Vai vir charters...

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! e, depois, aqui, no dia 20 de Novembro de 2023. Hoje é Dia Mundial do Turismo. Por falar nisso, o Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe está marcado já para a próxima semana, de 3 a 5 de Outubro, no Parque da Cidade.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A côdea e o côdeas

O bem-mandado
Mandaram-no ir chamar nomes a outro. E ele foi.

Côdea é a parte exterior endurecida de algo, do pão, do queijo, das árvores. É a casca, a crosta, a tona. Côdea pode ser pequena refeição ou merenda de ovos fritos com farinha, molhados em mel, entre o almoço e o jantar. Côdea é pão, pão duro, porção pequena e insignificante de comida, ou por outra, comida reles e em diminuta quantidade, um nico, um cibo. Côdea é nódoa, camada exterior de sujidade ou coisa de nada. É pedaço, bocado - "uma côdea de sabão para lavar as mãos". É pagamento miserável - "trabalho 12 horas por dia e o patrão dá-me uma côdea". O plural de côdea é côdeas, e muda do feminino para o masculino. Côdeas é uma pessoa muito pobre, pobretão, um homem sujo, um indivíduo grosseiro, um labrosta, um carroceiro. Em Fafe, antigamente, chamar côdeas a alguém era insulto do piorio, ia fundo no carácter. Ser côdeas não era só aspecto, tinha mais a ver com o asseio moral. O côdeas, o verdadeiro côdeas, até podia andar sempre muito limpinho, mas, por dentro, não deixava de ser um indivíduo asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil, mesquinho. O côdeas era um bandalho, um pulha, um bardamerda, um filhodaputa. No insultómetro da nossa terra, um côdeas, um verdadeiro côdeas, estava ao nível do moncoso e do ranhoso, mesmo até do piolhoso. Portanto, estais a ver...

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Às carreiras

O dorsal
O dorsal chama-se dorsal porque é para usar ao peito - ou, vá lá, na barriga do atleta. Se fosse para usar nas costas, isto é, no dorso do atleta, chamar-se-ia peitoral.

A carreira era a camioneta, o autocarro, o transporte colectivo, público, prestado por empresas privadas. Para Guimarães, para Felgueiras, para a Póvoa de Lanhoso, para Várzea Cova, para a Gandarela. Eram a Mondinense, a João Carlos Soares, a Landim e a Ferreira das Neves, que me lembre. E tínhamos a "Empresa". Carreira podia também ser fila, fileira, linha, alinhamento. Mas era sobretudo corrida. Isso, em Fafe e pelo menos nas zonas de Basto aqui à beira, carreira queria dizer corrida. Dar uma carreira, ir às carreiras, era correr, era ir a correr. Até rebentar! Até cair de cangalhas...

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Bagatela...

Allegro ma non troppo
Deu-lhe um bach, assim de repente. Ele a princípio até ficou satisfeito, mas na verdade preferia um rimsky-korsakov.

Bagatela. Coisa sem valor, ninharia, insignificância, frivolidade ou, por outra, tabuleiro do chamado "bilhar chinês". Na música, bagatela é uma peça curta, ligeira e despretensiosa, típica do Romantismo, normalmente para ser tocada ao piano. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas colossais miniaturas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Em Fafe, bagatela era também resposta na ponta da língua como opinião acerca disto ou daquilo, exprimindo um certo desconsolo ou desconforto, é certo, mas dentro dos limites da educação e da caridade cristã. - E este vinhinho, hã?, que tal? - perguntava-se. E se o vinho não era realmente grande espingarda e não se queria passar por parvo nem por falso ou mal-agradecido, então respondia-se diplomaticamente: - Bagatela... 
Bagatela, assim com reticências e um sorrisinho assaz encaralhado de faz-favor-de-desculpar, queria dizer sofrível, mais ou menos, menos mal, podia ser pior, não há-de ser nada. Isto é: bagatela, aqui, queria dizer exactamente o mesmo que... calar. Mas um bocadinho para pior.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Mariza à moda de Fafe



De 3 a 5 de Outubro, sexta a domingo, X Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe, no Parque da Cidade. Gastronomia, música, com destaque para os espectáculos de Mariza e Bárbara Tinoco, animação, artesanato, exposições e workshops. Participam cinco restaurantes da cidade, chancelados pela Confraria da Vitela Assada à Moda de Fafe: Adega Popular, Casa de Pasto Reis, Desigual, Dom Egas e Feira Velha. O menu tem o preço de 17,50€, incluindo vitela assada, vinho verde de Fafe e doces de gema. Mais informação, aqui.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A moda ou a modinha

A moda pode ser fatal
Os andarilhos estão na moda. E as bicicletas, para outro tipo de clientela. Os andarilhos, as bicicletas e as trotinetas. As cenas de pancadaria, facadas, tiros e mortes entre jovens bandidos, por nada ou por quase nada, também. Sobretudo facadas. A malta nova anda agora toda por aí com naifas, como quem usa boné ou sapatilhas de marca. É. As televisões de faca e alguidar tratam da propaganda, montam o espectáculo, ensinam como se faz. A moda tem muito que se lhe diga. E pode ser fatal.

Aquele restinho de caldo que se deixava no fundo da malga, a que se juntava broa migada e, amiúde, uma pinga de vinho tinto, e que sabia tão bem no fim da refeição, como se fosse um acrescento de fartura no tempo da fome, era a "moda" ou a "modinha". E se o caldo fosse de nabos, então é que era em cheio. Dicionários e enciclopédias chamam-lhe "moado", substantivo masculino apresentado como regionalismo de origem incerta. Acredito que sim, mas em Fafe não. Em Fafe, era a "moda". Ou "modinha", como melhor se dizia no nosso carinhoso falar antigo.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

domingo, 21 de setembro de 2025

A passarada fafense

O Facebook da Câmara de Fafe tentou colmatar a habitual falta de "notícias" da silly season com a publicação de uma série de verbetes a respeito de pássaros. Isso, elencando, uma a uma, as, assim apresentadas, "espécies autóctones de Fafe". Uma iniciativa muito bonita, tirando o facto de, na verdade, não existirem "espécies autóctones de Fafe". Nem o passarinho dom-fafe, que tem um nome assim aparentemente tão nosso, é daqui natural. Há aves que, como dizem os especialistas, ocorrem em Fafe, isto é, podem ser vistas em Fafe, mas são de todo o lado, ou de quase todo o lado, não foram inventadas em Fafe, não nasceram em Fafe pela primeira vez, logo a seguir aos dinossauros ou, pelo menos, no tempo dos romanos, para depois se espalharem pelos quatro cantos do mundo, como os nossos emigrantes. E é isso o que "autóctone" quer dizer...
Haverá em Fafe, quando muito, espécies de aves autóctones de Portugal, que são poucas, sobressaindo evidentemente as galinhas: a galinha amarela ou galinha minhota, a galinha branca, a galinha pedrês portuguesa, a galinha preta lusitânica e o peru preto português ou peru preto alentejano. Mas pronto.
Se tomei devida nota, o Município fafense já chamou a si a andorinha-das-chaminés, o tartaranhão-caçador, o corvo-marinho-de-faces-brancas, o papa-figos, o tartaranhão-azulado, a garça-real e o cuco-canoro. Eu, já agora, continuo à espera do resto. Dos melros, dos pombos, das rolas, das pegas, das poupas, das fuinhas, dos bufos, das escrevedeiras, dos maçaricos, dos abutres e, por exemplo, dos papagaios, que realmente abundam em Fafe e também são filhos de Deus.

E é geral, sinal dos tempos. Lembro-me muito bem como era. Pegas, se as queria ver, tinha de ir à aldeia, ao campo. Via-as às vezes, uma ou duas, três, sem abusos, nas minhas férias de Verão com a Bó de Basto, em Passos, Cabeceiras, e, mais raramente ainda, nos milheirais do Santo ou nas bouças de São Gemil e Cavadas, em Fafe, durante o resto do ano. As pegas, antigamente, eram uma raridade para a vista.
Não sei o que é que aconteceu entretanto, mas hoje em dia as pegas estão em todo o lado, às centenas, e se calhar aos milhares, não estou é para as contar. Decerto derivado ao Parque da Cidade do Porto, o bendito Parque da Cidade do Porto, as pegas instalaram-se de armas e bagagens em todas as redondezas da Invicta e particularmente na beira-mar de Matosinhos que lhe fica mesmo ao lado. A minha rua está agora constantemente cheia de pegas, e eu por acaso gosto de vê-las e até, em dias mais bem dispostos, de ouvi-las, mas não as procuro, nem é preciso.
É realmente uma invasão. A invasão das pegas. Mas também de melros, há que dizê-lo em abono da verdade, e ultimamente de papagaios, que andam por aí aos bandos, desorientados e barulhentos, num falatório que só visto. Pegas, melros e papagaios. Não sei o que é que se passa com o mundo.

Ó vizinho!

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 20 de setembro de 2025

A cocada e a monada

A cocada e a monada, há quem as confunda. Porém existe-lhes uma diferença substancial. A cocada é uma pancada dada com a cabeça, uma cabeçada, e faz cócegas no nariz. A monada é uma porção de monos, macaquices, trejeitos, e, passando por cima do dicionário, evidentemente uma pancada dada com a mona, portanto uma cabeçada, mas não faz cócegas no nariz. A tolada é outro assunto... 

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

O Capitão Gancho e o Capitão Iglo

O topa-a-tudo
Viu um anúncio a pedir idiotas e lá foi ele. Estava no fundo de desemprego e respondia a todos os anúncios.

Discutia-se se o Capitão Gancho era pirata ou era corsário. Em Fafe discutia-se tudo. E bebia-se bem. Havia ópticas, prismas, enfoques, ângulos, perspectivas e até pontos de vista para o mar, que ficava a guardar na Póvoa de Varzim. Conversa vai, conversa vem, uns que corsário, outros que pirata, alguns até que contrabandista, moina, ladrão, gatuno, filhodaputa, ó corno!, és pouco boi és!, como num normal jogo de futebol Fafe-Vizela no Campo da Granja, mas não havia maneira de se chegar a uma conclusão ou, vá lá, como remedeio, a um consenso - e era precisa uma maioria qualificada, isto é: dois terços mais pelo menos uma via-sacra. O animado debate mudou bruscamente de rumo quando alguém recém-entrado a bordo alvitrou que o Capitão Gancho se chamava Capitão Gancho para não ser confundido com o Capitão Iglo dos douradinhos mas sobretudo porque comandava o seu navio, o Jolly Roger, com mão de ferro e vencia o Capitão Iglo quantas vezes lhe apetecesse, aliás como o Super-Homem também é mais forte do que Thor, isso então nem se discute. E não se discutiu. Aprovado por unanimidade, e ali se fez história.
Bebia-se verde tinto, mansamente, que por acaso era uma rica pinga. E ainda há quem diga que nos nossos tascos não se aprende nada...

Por outro lado. Corsários são, como se sabe, calças curtas e geralmente ridículas que vão um pouco abaixo dos joelhos. E podem ser chamados também bermudas, sítio de irrevogáveis desaparecimentos, porque isto realmente anda tudo ligado, e daí vem a história do triângulo.
O assunto, como de costume, não era pacífico. Prestava-se, aliás, a discussões mais ou menos geométricas e atlânticas. Com efeito, só o Equilátero acreditava no Triângulo das Bermudas. Era parte interessada, refira-se. O Isósceles e o Escaleno faziam pouco, gozavam o prato, partiam o coco a rir. Sobretudo por causa daquela vestimenta ridícula que não chega a ser calças mas sobeja para calções...

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional de Falar Como Um Pirata. Aaarrr!...

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

O mar começa em Fafe, devagarinho

O rio Vizela nasce em Fafe, exactamente no Alto de Morgair, antiga freguesia de Gontim. Depois de banhar Fafe, sobretudo na barragem de Queimadela, o rio Vizela passa também, por esta ordem, pelos concelhos de Felgueiras, Guimarães, Vizela, a que dá nome, e Santo Tirso. Neste seu interessante percurso, o rio Vizela acolhe diversos e variados influentes. O influente mais importante, isto é, o mais influente, é o nosso rio Ferro, mas não podemos esquecer o rio Bugio e, se não me engano, as ribeiras de Docim, de Moreira e de Ribeiros e o ribeiro de Costas Antas. São influentes porque eles é que abastecem de água o rio Vizela, que, por sua vez, é influente do rio Ave, que vem da serra da Cabreira, Vieira do Minho, e desagua no oceano Atlântico, em Vila do Conde. Creio portanto não ser exagero nenhum dizer que o mar começa em Fafe, pelo menos um bocadinho.

P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial da Monitorização da Água.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao portão de um dos cemitérios da cidade do Porto. O bruxedo apareceu ali da noite para o dia, toda a gente se queixou, toda a gente se desviou e ninguém teve coragem de mexer na coisa, de a mandar para o lixo. Nem o padre da igreja ao lado nem os coveiros propriamente ditos. Trabalhar com almas e mortos está bem, desafiar maus-olhados é que não, faxavor de desculpar.
Passou-se um, passaram-se dois, três, quatro, cinco dias, e o galo ali, possivelmente já com o serviço feito e portanto sem mais poderes, mas nem assim alguém ousou sequer tocar-lhe. O pessoal da Junta de Freguesia, executivo e funcionários, reuniu e foi unânime, cada um passava a encomenda para o que vinha atrás, "Eu não, bruxedos comigo não", até que a vizinhança viva reclamou que já não aguentava com semelhante fedor, ciciando padres-nossos e ave-marias, de terço na mão e muitos sinais da cruz mas feitos ao contrário, não fosse o diabo tecê-las...
Ora, o fedor, como toda a gente sabe, é problemática que sobe a instância superior, à alçada camarária. Em conformidade, foram requisitados os serviços de limpeza da cidade, que chegaram ao local do sinistro tarde e a más horas e resolveram o assunto em três penadas. Isto é: não fizeram nada. "Eu também não, bruxedos comigo não"...
Perante o impasse, alguém tirou a mola de roupa do nariz e alvitrou que se chamassem os Comandos da Amadora ou o Grupo de Intervenção de Operações Especiais da GNR, um pediu a presença da Brigada de Minas e Armadilhas da PSP, o espertalhão do costume recomendou o Putin, se era para rebentar com aquilo tudo, o russo servia, e outra ainda sugeriu que se mandasse vir o Bruxo de Fafe para fazer a competente marcha-atrás à coisa, tornando seguro o seu manuseamento. Mas a Junta não dispunha de verba orçamentada para pagar a especialistas.
Foi quando um dos da Câmara se lembrou que o Canil Municipal tem um camião com um gancho hidráulico muito jeitoso, uma espécie de braço mandado que podia solucionar mecanicamente aquele problema bicudo, com os homens ao largo e portanto sem risco de agoiros, porque os agoiros, como é do conhecimento geral, têm um certo e determinado raio de acção, potente mas limitado. E assim foi. Ao sexto dia, o todo-poderoso veículo veio e levou a coisa, para sossego enfim de todos os moradores da zona, vivos e mortos, amém.

P.S. - Hoje é Dia de São Cipriano.

O feitiço contra o feiticeiro

Quando o Feitiço se virou contra o Feiticeiro, o Feiticeiro resmungou: - Mal agradecido...

P.S. - Hoje é Dia de São Cipriano.

Pero que los hay, los hay

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Piadistas e outros mentirosos

A piada, para ser fina, não deve ter mais de três milímetros de espessura.

Havia uns tipos com piada, em Fafe. Piada fina e piada grossa, conforme. Contadores de anedotas, abrilhantadores de saraus de sociedade recreativa, animadores de café, pregadores de partidas, havia-os com fartura naquele tempo. E eram geralmente de partir a moca. Fafe é de rir, por natureza. Sempre foi. Já no meu tempo era de rir, ríamo-nos como perdidos, por tudo e por nada. Claro que antigamente éramos uns amadores, caseirinhos, artesanais, ríamo-nos uns dos outros, uns com os outros, às vezes uns contra os outros, tínhamos riso que chegasse, não mandávamos vir de fora. Éramos, em questão de riso, auto-suficientes.
As anedotas é que vinham do exterior, regra geral. Fafe não tinha então produção própria, quero dizer, os nossos piadistas eram mais divulgadores do que criadores. As redes sociais funcionavam boca a boca, como a respiração salva-vidas, e as novidades humorísticas chegavam até nós trazidas pelos vendedores ou caixeiros-viajantes que visitavam regularmente o comércio e a indústria locais. Debitar umas larachas, se possível frescas em ambos os sentidos - "já sabe a última?, é de bolinha!" -, fazia parte do ofício. Primeiro as anedotas e só depois a nota de encomenda, se corresse bem, era uma técnica de marketing como outra qualquer. Vendedor sem anedotas não ia a lado nenhum, essa é que é a verdade.
Neste deserto de criatividade, as excepções talvez fossem o António Augusto Ferreira, aliás António Augusto Abreu, e o extraordinário Zé Manel Carriço. O Tónio Augusto, pai do omnijornalista Carlos Rui Abreu, o qual, diga-se de passagem, é, sem comparança, o melhor relatador português de futebol de hoje em dia, na rádio Antena 1, e parece que Fafe ainda não tomou sentido disso, o bom do Tónio Augusto, era aqui que eu ia, abastecia-se de anedotas em Guimarães, onde por aquela altura já se encontrava estabelecido. A loja era de roupa, de moda, chamava-se T111, se não estou em erro, suponho que derivado à sua localização, no Toural, e ao número da porta, 111, ali a meia dúzia de passos da Basílica de São Pedro, cujos sinos tocavam às prestações de quartos de horas, e não sei se ainda tocam, o Hino de Guimarães. Quem também tocava o Hino de Guimarães, mas de uma ponta à outra e apenas uma vez por ano, era a nossa Banda de Revelhe quando ia às Gualterianas e fazia a rompida na cidade velha, em frente à Câmara Municipal, e eu sei de cor a música do Hino de Guimarães, e esta parte, sou obrigado a admitir, dada a rivalidade tola entre as duas terras, não abona nada a meu favor. Evidentemente também sei de cor a música do Hino de Fafe e, com ajuda, ainda me oriento na letra do refrão.
E então o que é que se segue? O Tónio Augusto todos os dias trazia de Guimarães anedotas frescas, ainda vivinhas, praticamente por estrear, e, quiséssemos ou não, dava-lhes a volta lá à maneira dele e contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois, terminada a função, metia-se no carro e ia para a Póvoa, ter com a família em férias, o que só lhe ficava bem.
A piada era fácil para o Tónio Augusto, porque ele era cómico de nascença. Ele era, dir-se-ia hoje, um predestinado, um Cristiano Ronaldo da pilhéria, um Lionel Messi do chiste. Uma vez, à hora da missa, jogava o Tónio Augusto nos juniores da AD Fafe, ainda no Campo da Granja, e rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de palhaços ou bêbados matinais. Era mesmo de rir, parecia cinema mudo mas já em sonoro e a cores...
Zé Manel Carriço era outra coisa. Ele não contava anedotas. O Zé Manel contava as suas histórias, verdadeiras mais ou menos, episódios protagonizados por ele próprio, mas cenas tão improváveis, tão esdrúxulas, tão gagas, com um fim tão inesperado, preparado e teatral, e tão bem contadas, que passávamos noites inteiras naquilo, só a ouvi-lo. E o Zé Manel era o primeiro a rir-se do que dizia, e ria-se sonoramente, afagando a pêra elegante, e o seu riso era como um fósforo em mato seco. E nós à volta éramos um incêndio de gargalhadas, incontrolável, escusavam de ligar para os Bombeiros. Os mesmos empregados do Dom Fafe que, da uma às cinco da manhã, pediam, de meia em meia hora, "Ó Sr. Zé Manel, por favor, precisamos de fechar, olhe a polícia, temos de ir dormir!", às seis já só queriam "Ó Sr. Zé Manel, conte mais uma!"...
Depois tínhamos os "profissionais", o Landinho Bacalhau, o antigo, e o Zé Fala-Barato, os nossos microfónicos apresentadores de espectáculos, pontas de lança do Grupo Nun'Álvares, paus para toda a obra, cheios de categoria, e sempre com uma chalaça na ponta da língua. E tínhamos os comediantes avulsos, repentistas, atacando pelo soleno. As sentenças idiossincráticas do Eduardinho da Cafelândia, as malandrices do Valença, as aventuras do Pimenta, as tiradas do Serafim d'Eiteiro, as saídas do Moisés, o Toninho da Luísa, que eu gostava de imaginar DaLuísa por causa do DeLuise americano, o Aníbal Carriço, o Zé do Registo em dias bons e fora do horário de expediente, o Zé Maria Sapateiro, o Sr. Lem, o Rates da Fábrica, o Manel Fogueiro, o Toninho do Café Chinês, o Aurélio Funileiro, o Chico Americano, o Tónio da Legião e o Aristides Carteiro, amiúde o Sr. Aristeu da Loja Nova e até o Joãozinho Summavielle, que aparecia pouco e só à noite, mas não deixava os seus créditos por mãos alheias.
Que rica terra! Estávamos, com efeito, muito bem servidos. Aliás, sobre toda esta esplêndida plêiade de bem-dispostos benévolos e amiúde militantes, tínhamos também a nossa conta de reconhecidos gabarolas e mentirosos, e Fafe era realmente abundante a esse respeito. Mentiam tanto e tão mal, patranhavam tão estrambolicamente os nossos queridos aldrabões, que acabavam por ter piada. Eram uns tontos, mas também uns pontos. Como aquele ilustre industrial fafense enquanto jovem que veio de férias do Ultramar e, palavra de honra, a guerra teve de parar até que ele regressasse ao mato. Raul Solnado, na verdade, não contaria melhor...

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

domingo, 14 de setembro de 2025

Tito, imperador da bola

O autogolo de Manaca
Eu estava lá. No velho estádio, em Guimarães. Fui de Fafe de propósito. Vi ao vivo o autogolo de Manaca que deu o triunfo por 0-1 e o título de campeão ao seu Sporting, sendo ele naquela altura jogador emprestado pelos leões ao Vitória. Foi no dia 25 de Maio de 1980, e eu, portista, estava lá, mesmo atrás da baliza em questão. Vi tudo, sou testemunha, lembro-me perfeitamente. E se quereis que vos diga: não sei, não tenho a certeza do que realmente vi...

Já lá vão mil novecentos e cinquenta e cinco anos, e lembro-me como se fosse hoje. Tito e as suas legiões romanas derrubaram a segunda muralha de Jerusalém. Lá dentro, os judeus, à rasca, fugiram para a primeira muralha, mas os romanos, copiando o Porto de muitos séculos depois, construíram uma circunvalação, cortando vazas aos sitiados e todas as árvores num raio de quinze quilómetros, o que foi imediatamente considerado como um escândalo ambiental. A circunvalação de Tito era também conhecida como muralha de cerco, mais uma vez plagiando por antecipação a Invicta, mas sem o mal afamado bairro. Tito era o filho mais velho de Vespasiano e foi imperador entre 79 e 81. A mãe de Tito chamava-se Domitila, a Maior, para se diferenciar da filha Domitila, a Menor, irmã de Tito.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à guerrilha e à fundação e presidência da antiga Jugoslávia, enfim voltando-se para o futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, disse adeus às armas e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, dinheiro a sério, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Frequentava Fafe regularmente. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga, a não ser que olhem para o Bruno César que andou pelo Benfica, Estoril e, aqui atrasado, pelo Penafiel. Mas em bom.
Tito, na área, era imperial. Fino. Franco-atirador. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava regularmente. Palavra de honra, acertava! Estou aqui, que não me deixo mentir

Em Fafe, nos anos cinquenta, sessenta e pelo menos setenta do século passado, havia uma magnífica equipa de futebol popular, sazonal, que tinha o bonito nome de Embaixadores da Bola. Os rapazes representavam, se não me engano, a clientela do velho Café Peludo, que aliás raramente frequentavam, e mantinham uma terrível rivalidade com o poderosíssimo Maiense, da antiga Rua do Maia, grupo que, se fosse hoje, chamar-se-ia, por certo, Antoniossergense.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. No dia 14 de Setembro do ano 81, Domiciano tornou-se imperador do Império Romano após a morte do seu irmão Tito.

sábado, 13 de setembro de 2025

E a Super Bock secou na ilha do Sal

Ouço Tiago Nacarato no rádio. Canta "A Dança". Diz: "Mesmo que se acabe o stock / Da tão bem-vinda Super Bock / A vida é boa / A vida é tão boa / A vida é mesmo boa de se levar."
E lembro-me do Verão de 1990, na ilha do Sal, Cabo Verde. Agosto passava para Setembro, e a Super Bock esgotou literalmente em toda a ilha. Fui eu.

P.S. - O primeiro voo a jacto entre Lisboa e a ilha do Sal, num Boeing 727, aconteceu no dia 13 de Setembro de 1967. Lembro-me praticamente, mas não fui nesse...

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Os nossos velhinhos, coitadinhos

Hoje é Dia Mundial da Terceira Idade, dia dos nossos velhinhos, coitadinhos. Levantar cedo, roupinha de domingo, pó de talco e perfume, chá e bolachas e ala para a camioneta, nem que não queiram. Lá vão os nossos velhinhos de cu tremido, cantando bonitas cantigas do Quim Barreiros ditadas ao microfone pela senhora doutora da junta, que até já foi ao Preço Certo. Missinha, santa missinha, um regalo, nem que não queiram, e Quinta da Malafaia para enfartar a mula, nem que não queiram, tantos velhinhos, tantos velhinhos, ó que extraordinário velhódromo, velhinhos de tantos lados, atordoados, perdidos, sem saberem de que terra são, tantos senhores presidentes de câmara, sorridentes e abraçadeiros, de mesa em mesa e o fotógrafo solícito e oficial sempre atrás, ai que dinheiro tão bem empregue pela autarquia local, vêm aí as eleições! Os velhinhos sobreviventes, nem que não queiram, regressam ao sol-pôr com o saco cheio. De volta à naftalina, à indiferença e ao esquecimento, até de hoje a um ano, se Deus quiser...

P.S. - Texto publicado no dia 28 de Outubro de 2023, a propósito do Dia Mundial da Terceira Idade. O Município de Fafe promove, entre os dias 23 de Setembro e 1 de Outubro, a sua Semana Sénior de 2025. A ida à Malafaia é no dia 1 de Outubro.

Um dia sumamente produtivo

Hoje celebra-se, não cá em casa, o Dia Mundial do Veganismo ou do Vegano. E também é Dia de Cailleach, na mitologia celta, Dia de São Cesári...