Ouço rádio. Prefiro a rádio à televisão e os jornais em papel ao online. Prefiro os dicionários encadernados à Wikipédia e os livros de uma forma geral às séries "de culto". Tirando David Ferreira, às vezes o futebol e a meia hora a seguir ao meio-dia, que me ligam religiosamente à Antena 1, a minha rádio de companhia era a Smooth FM. Gostava da música que por lá passava, música da minha idade, e ria-me com o que diziam os locutores. Ignorância em frequência imoderada era ali - das bojardas gramaticais nas "notícias" aos spots publicitários que primavam pela asneira. Uma vez, na promoção a um concerto de Anthony Strong no lisboeta Centro Cultural de Belém, dizia-se assim:
"Anthony Strong em Portugal, num tributo às grandes vozes masculinas do jazz. Anthony Strong: Tribute To The Great Male Jazz Vocalist Of All Times. Entre os quais, Louis Armstrong, Chet Baker, Gershwin e muitos mais, numa noite memorável". Fim de citação. Exactamente, sobretudo Gershwin, esse extraordinário cantor...
terça-feira, 30 de abril de 2024
Gershwin, o cantor que não sabíamos
Aqui jazz, ali blues
P.S. - Hoje é Dia Internacional do Jazz.
domingo, 28 de abril de 2024
Os gigantes 2
Foto Hernâni Von Doellinger |
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Foto Hernâni Von Doellinger |
Foto Hernâni Von Doellinger |
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O quinto dos infernos
Começou tudo no dia 1 de Março e deverá prolongar-se pelo menos por mais um ou dois meses, a fazer fé no aviso gentilmente afixado no placar de cortiça do condomínio. E não me posso queixar. Ainda de acordo com a missiva do vizinho do quinto, a empreitada "decorre tal como permite o quadro legal em vigor", dando "cumprimento ao estipulado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 16.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo decreto-lei n.º 9/2007 de 17 de Janeiro". Ainda bem. Assim, estou muito mais descansado...
Cada macaco no seu galho
P.S. - Hoje é Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho e Dia Nacional de Prevenção e Segurança no Trabalho.
Desconstrução civil
Os gigantes
sábado, 27 de abril de 2024
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Não te escames!
Escamar. Quer-se dizer, tirar as escamas ou, pelo contrário, cobrir de escamas. No Brasil significa também fugir. Mas, em Fafe do meu tempo, como noutros terras portuguesas que não sei e pelo menos aqui ao lado na Galiza, escamar era e é sobretudo irritar, zangar, ofender ou ficar ofendido ou sentido, é escarmentar, outra palavra que tal, mais uma a que tornarei propositadamente noutra ocasião. Mas escamar. As pessoas escamavam-se umas com as outras, e às vezes era para toda a vida. Pedia-se calma - não te escames! Avisava-se para o perigo - ui, não o queiras ver escamado! Justificava-se o amuo, a separação - estou escamado com ele. E eu gostava desse falar antigo.
quinta-feira, 25 de abril de 2024
Feridas de guerra 9
Foto Tarrenego! |
Quem está por dentro do assunto garante a existência de vários casos de suicídio (dois no último ano, só na área do Porto) e muitos de homicídio com raiz no stress de guerra. E falam-me de desesperança de vida, que faz com que "muitos se vão embora aos 40 anos", e de alcoolismo, e de cirroses, e de droga, e dos divórcios, e de sem-abrigo, e do homem que em apenas um ano correu mais de cem empregos, e da falta de coragem da Nação para encarar e assumir as suas obrigações. O que tem sobrado é o silêncio.
Porque, para começar, como denuncia Paula Frazão, a psicólogo clínica, o Exército tem de admitir que, excepção feita às chamadas forças especiais, "a maior parte da tropa ia para a guerra, técnica e psicologicamente, mal preparada, e muitos acidentes aconteceram por causa dessa má preparação".
Está clinicamente provado: o DPTS pode ser prevenido - e foi-o recentemente na Guerra do Golfo - se o soldados forem esclarecidos de que o medo e a ansiedade fazem parte da guerra, são situações normais, humanas, e não sinais de cobardia ou de doença mental. Além disso, o desenvolvimento de um DPTS crónico até pode ser evitado se o soldado, em plena fase aguda, for atendido próximo à frente de batalha, iniciando imediatamente os tratamentos e sendo mentalizado para a expectativa de retorno aos deveres normais e para a brevidade do contacto terapêutico.
Menos do que pensões, os traumatizados pela guerra reclamam atenção, atendimento, compreensão, apoio, tratamento. Há quem tema que, com o andar dos anos - porque a doença, não sendo tratada, tende a agravar-se -, os demónios de África venham a degradar inexoravelmente os restos de vida dos ex-combatentes envelhecidos. A Nação terá de estar preparada para o desmoronamento de toda uma geração...
Aos centros da ADFA chegam todos os dias, e cada vez mais, pedidos de socorro, lágrimas por uma "última tábua de salvação" para um filho, para um pai, para um marido, para um irmão, para um amigo. Gente à beira do abismo. O bom-dia que Paula Frazão ouve muitas vezes quando os seus doentes lhe entram no consultório é: "Doutora, vou-me matar!..."
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Feridas de guerra 8
Foto Tarrenego! |
Tão grave era a situação que, caso singular, deu-lhe direito a pensão por incapacidade - o que, nos últimos quatro anos, viria a agravar a confusão no espírito de Manuel Teixeira. A cisma agora eram os sessenta e sete contos e setecentos escudos com que a Nação de desobrigava mensalmente pelo mal que lhe fizera. Manuel achava que a tença era "um roubo ao Estado". Aflito, temia pela chegada da GNR para o levar preso "por receber uma reforma que de certeza não era para ele"...
A 2 de Maio de 1990 terminou com tudo. Ingeriu o conteúdo de uma embalagem de "remédio" de escaravelho, lançou fora o recipiente e deitou-se calmente, como tantas vezes tinha avisado, à espera da morte. Que veio. No guarda-fatos o ex-combatente escondia mais quatro embalagens de veneno, pelo sim e pelo não...
Outras vezes a violência chama-se homicído. Poderá ser o caso de João Silva, ex-comando de 41 anos, que em Campanhã, Porto, na madrugada de 8 de Setembro de 1991, resolveu a tiro de pistola o seu diferendo com a vida, matando, num acerto de contas, um indivíduo de 42 anos.
João entregou-se à Polícia e confessou o crime. Está na cadeia de Custóias, aguardando julgamento. Diz quem o conhece que também ele deixou muito mais na guerra do que a perna que lá perdeu e que lhe garante o direito a pensão. E afirmam os estudiosos que os feridos na alma, convivas naturais de armas, sangue e morte, guardam causas para reacções extremas fora do entendimento comum.
(Continua)
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
terça-feira, 23 de abril de 2024
Feridas de guerra 7
Foto Tarrenego! |
Inspecções chegadas, tudo tentou a família para livrá-lo da tropa, mas nada resultou. O mancebo acabou incorporado, Espinho e Santa Margarida foram breves passagens para vinte e oito meses de Moçambique. E, mal lá chegou, o prenúncio de fatalidade: camaradas de armas conseguiram resgatá-lo, nos segundos derradeiros, ao aperto de um cinto que o pendurava ao tecto da caserna...
A irmã não consegue precisar no tempo esta primeira tentativa de suicídio conhecida, se antes ou depois de um acontecimento que viria a determinar o desenlace da história: uma "brincadeira" infeliz entre militares, que acabou com Manuel agredido a pontapé nos testículos.
A gravidade da lesão obrigou a uma intervenção cirúrgica, em Moçambique, e tudo parecia ter voltado à normalidade. Manuel cumpriu até ao último dia marcado a comissão ultramarina e só depois voltou para a sua margem do Douro. Mas já nada era como dantes. O homem que "tinha ido inteiro para a guerra" não regressara, conta-me um tio do ex-combatente. A impotência sexual, provavelmente provocada pela agressão imbecil, vinha marcar irremediavelmente a existência deste jovem.
"Já não sou um homem", costumava lastimar-se Manuel, que - recorda a irmã - "perdeu o gosto de viver" e tornou-se agressivo, violento, "um bichinho autêntico".
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
segunda-feira, 22 de abril de 2024
Feridas de guerra 6
Foto Tarrenego! |
Os sete meses passados no Norte de Angola em 1961/62 foram-lhe penosos desde o primeiro dia. A fartura de cerveja e de uísque não bondou para afogar o choro e os temores. António não voltou o mesmo. Sentia-se perdido quando tornou a casa, no final da comissão. Andou de neurologistas para psiquiatras e em 1971 esteve internado no Hospital Conde Ferreira. E desde aí nunca mais parou com as consultas: diz que tem "descarregado toneladas de preocupações".
O que mais o afligia eram os pesadelos, "corpos esventrados, cabeças e pénis cortados e espetados em paus simulando macabros sinais de trânsito". Remorsos não, porque a sua arma, "a 1035, nunca disparou contra corpo humano". O que o desanimava era "uma certa falta de apoio familiar". O que o "salvou" foram o 25 de Abril, que lhe veio "encher a vida", o investimento de tempo e de energias no seu curso de engenheiro-técnico, mas principalmente a sua filha, actualmente com 24 anos. "Era a Ana quem reacendia a fogueira, quem me ligava à vida", confessa.
Porque, a par de uma "vontade obsessiva de matar os autores de injustiças", que persiste, o suicídio era então também um pensamento constante na cabeça de António. Hoje passa "mais ou menos indiferente pelos sítios que tinha escolhido" para o caso...
Tal como José Rodrigues, António Pereira parece ter chegado a um estádio de convívio tolerante com os seus fantasmas. Mas há quem definitivamente não o tenha conseguido.
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
domingo, 21 de abril de 2024
Feridas de guerra 5
Foto Tarrenego! |
E tornavam os fantasmas. "Companheiros a morrerem ali à minha frente, outros feridos, e nós a batalharmos para que fossem recuperados, a chamar o helicóptero, e o helicóptero que não chega, aquela ansiedade..."
Ou daquela vez em que José estava com "uma mulher nativa" e de repente rebentou um morteiro ali quase em cheio. "Fomos projectados, eu e ela. Eu felizmente sem nada, mas ela com um pé todo esfacelado, ali ao meu lado..."
Ou. "O moço que era furriel miliciano, nunca mais o vi, que um dia, na Guiné, quando fazíamos um grande transporte de urnas de uma povoação para outra, desatou a correr em histeria por um descampado fora, a correr e a gritar. Era o meu camarada de quarto, e a partir daquilo passou a ser um inválido. Levava os dias sentado na cama, a olhar para nada, um moço de vinte e poucos anos..."
Ou...
Quando fez o seu primeiro grupo terapêutico, José Rodrigues "estava na porta da loucura" - ele mesmo o diz. Mas então pôde finalmente confessar-se, "desabafar junto de quem passou o mesmo, de quem está afectado pelo mesmo problema". Hoje - garante -, fruto de quatro anos de terapia e, é verdade, dos tranquilizantes de que não pode separar-se, sente-se "muito melhor", mas o futuro passa pelo tratamento contínuo.
(Continua)
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
sábado, 20 de abril de 2024
Feridas de guerra 4
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Casado, pai de duas filhas, desabafa: "Cheguei ao ponto em que até a minha mulher teve de fazer parte da terapia de grupo. Já nem a família me conseguia aturar". Recordando esses tempos de agressividade, de choques constantes "sem motivos aparentes", reconhece que aos poucos foi contaminando toda a família, destruindo o carinho das filhas e tornando-as também "doentes". Justifica-se: "Ninguém compreendia o meu problema, não tinham passado pelas situações, não passaram pela guerra"...
Na rua era ainda pior: cansou-se de passar por charlatão quando falava da guerra. As pessoas pensavam que ele "estava a exagerar, a ir além daquilo que realmente é a realidade, quando muitas vezes nem chegava a metade da própria realidade".
"O sistema nervoso arriou". Fechou-se. Desligou da família e dos amigos, "pessoas que não tinham capacidade de entender". Para si guardou os "pensamentos e pesadelos" trazidos de África e que o "martirizavam".
(Continua)
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
sexta-feira, 19 de abril de 2024
Quando a "puta" tocava
Foto Tarrenego! |
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.
Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...
Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
A Festa da Bomba
Foto Tarrenego! |
A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.
Os reforços vinham de motorizada
Foto Hernâni Von Doellinger |
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina e galões no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Quando o monte ardia, os bombeiros iam e pronto. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Tolos porém despachados e íntegros. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel.
Pelo menos em Fafe era assim, e não havia razão de queixa.
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do entretanto profissional, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - Publicado aqui no dia 11 de Setembro de 2022. Os Bombeiros de Fafe fazem hoje 134 anos.
Feridas de guerra 3
Foto Tarrenego! |
Os grupos de dez ou doze indivíduos reúnem uma vez por semana, durante quatro meses. Os doentes são encorajados a contarem as suas histórias de guerra ou consequentes desajustes sociais, familiares ou profissionais. Entre combatentes, camaradas, gente que viveu os mesmos pesadelos e tenta exorcizar os mesmos fantasmas, aprendem a ganhar à-vontade para o fazer.
Paula Frazão recorda homens que chegam ao primeiro encontro e não alcançam dizer coisa com coisa, homens que ouvem a palavra "guerra" e logo geram ansiedade, homens que, em fez de falar, choram. E se cada caso é um caso - dependendo da natureza do trauma, das características do indivíduo e do contextos dos eventos, do desenvolvimento ou não do DPTS -, todos vêm marcados pelo silêncio em que tentaram esquecer durante anos os seus medos, o que resulta no aumento do distúrbio, e a maioria está condenada a viver de terapias de grupo, tentando, até aos últimos dias, o equilíbrio possível.
(Continua)
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. O Dr. Afonso de Albuquerque faleceu no dia 5 de Abril de 2022. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Sei de sítios
Mas respeito quem se deixa seduzir por outras variáveis gastronómicas ou paragastronómicas, como, por exemplo, essa coisa tão vaga ou talvez não como é "o serviço" ou "o atendimento".
Um velho compincha doutras vidas mas também da santa trincadeira - nas imortais palavras de mestre Aquilino Ribeiro, colocadas na boca de um abade, evidentemente - contou-me que estava um destes dias numa bela jantarada, num grupo de gente boa e interessante, quando um dos convivas alvitrou um próximo repasto a realizar em determinado restaurante, que "tem um excelente serviço"...
O meu amigo, que é um brincalhão mas o outro não sabia, perguntou, com matreirice:
- Excelente serviço, pois... Mas o que é que se come? O que é que é lá muito bom? Uns bolinhos de bacalhau..., uns ossinhos da suã?...
- Quer-se dizer, não sei, tem muita coisa, nada assim de especial, mas o atendimento é óptimo... - colocou-se à defesa o homem da ideia.
- Está bem, mas eu não como serviço, o atendimento não me enche a barriga - insistiu o meu amigo e voltou a insistir, perante o cada vez maior embaraço de quem já se tinha arrependido de ter dado apenas uma sugestão e do resto do pessoal à volta da mesa.
Tudo acabou depois na risota, quando todos perceberam que o meu amigo afinal estava na tanga, e até tiveram sorte porque desta vez, tenho a certeza, ele não arrumou a questão com uma expressão que lhe é muito cara e que, neste contexto, seria algo do género:
- O serviço? Dá-me com o serviço nos
tomates aux gésiers de lapin. Eis a minha receita. Livre de gorduras e lave em duas águas as moelas de coelho. Uma da águas pode ser das Pedras. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto conta de zero a 120 e depois de 120 a zero sempre ao pé-coxinho. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes da embalagem, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Descongele e aqueça a feijoada que sobrou do almoço de domingo, regale-se e seja feliz.
Feridas de guerra 2
Foto Tarrenego! |
Hoje em dia, Afonso de Albuquerque continua o seu trabalho no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, mas na ADFA ficou uma sua ex-assistente, a psicóloga clínica Paula Frazão. Nestes dois pólos - da capital para todo o País - é posta à prova a técnica terapêutica, baseada essencialmente na verbalização em grupo das experiências traumáticas.
Os objectivos do tratamento são a redução dos sintomas - porque não existe cura total -, a prevenção de incapacidades crónicas e a reabilitação social e ocupacional dos ex-combatentes atingidos pela doença. Os resultados têm sido avaliados como satisfatórios, sendo que o programa, paradoxalmente, não terá atingido senão pouco mais de meia centena de indivíduos.
E se são dados adquiridos a ignorância dos prováveis atingidos perante o que realmente lhes está a acontecer e a vergonha da assunção da maioria (mesmo os pouco que admitiram o seu "problema" e o relacionaram com o tempo de guerra, e procuraram a ajuda de especialistas, fizeram-no "obrigados" por familiares e amigos), a verdade é que são os médicos, como classe, o principal obstáculo ao tratamento da doença.
(Continua)
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. O Dr. Afonso de Albuquerque faleceu no dia 5 de Abril de 2022. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
quarta-feira, 17 de abril de 2024
Emigração, pertença e identidade
Feridas de guerra
Foto Tarrenego! |
São homens marcados. Hipersensíveis, desconfiados, revivem em permanente alarme os pesadelos do teatro de guerra. Deprimidos, ansiosos, agressivos, perderam a vontade de viver e do afecto, desfizeram amizades e família, saltam de emprego em emprego, isolam-se, porque "não os compreendem, não passaram pelo que eles passaram", e frequentemente entregam-se ao álcool e à droga. Em casos extremos, fogem pela porta do suicídio ou desabafam na violência do homicídio.
São cerca de 140 mil portugueses, atingidos por uma perturbação psicológica crónica com o nome clínico de distúrbio pós-traumático de stress (DPTS) ganho nos matos de Angola, Guiné ou Moçambique, e que, mal entendida pela generalidade da classe médica e ignorada pela instituição militar, existe quase na clandestinidade e sem direito aos "privilégios" da incapacidade de papel passado. Dezoito anos após o seu fim, e trinta e um depois do seu começo, a Guerra Colonial continua a contabilizar vítimas.
A questão só há três anos começou a ser estudada entre nós. O número avançado, 140 mil - extrapolado dos números indicados pelos americanos em relação aos seus ex-combatentes no Vietname -, corresponde à metade aritmética dos 280 mil soldados portugueses que enfrentaram situações de combate em África, no meio do milhão que passou pelos treze anos de guerra.
Afonso de Albuquerque, psiquiatra de Lisboa, foi quem teve a coragem de ir à gaveta da História arejar este dossiê incómodo e convenientemente arrumado. Fê-lo servindo-se do natural campo de ensaio que é, para o caso, a Associação de Deficientes das Forças Armadas (ADFA), com os seus cerca de 14 mil sócios.
Na sede da ADFA, na capital, Afonso de Albuquerque realizou os seus primeiros estudos e orientou pioneiras sessões de terapia de grupo, sete anos depois de o manual estatístico de doenças mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM III) ter pela primeira vez catalogado e elaborado os critérios de diagnóstico da doença - sim, é uma doença! -, baseado ainda na experiência da Guerra do Vietname e como conclusão do seguimento de casos de "estado de choque" pendentes da II Guerra Mundial.
(Continua)
P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. O Dr. Afonso de Albuquerque faleceu no dia 5 de Abril de 2022. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.
terça-feira, 16 de abril de 2024
domingo, 14 de abril de 2024
António-Pedro Vasconcelos, o fafense
Foto FafeTV |
Um filme que dava um livro...
sábado, 13 de abril de 2024
Ora dá cá um e a seguir dá outro
Foto Hernâni Von Doellinger |
E não é só no futebol. Nas nossas igrejas, com cada vez menos fregueses, esta entorse litúrgica vem passando de geração em geração e os fiéis de hoje em dia até acreditam que foi sempre assim, que é assim. Mas não é: o beijo em mão própria está a mais, não faz parte do sinal-da-cruz.
Eu acho que sei como é que isto tudo começou. No tempo em que a missa era em latim e o povo, que já se via à rasca para perceber o português, aproveitava para ir rezando terços atrás de terços enquanto o padre, de costas voltadas para o mundo, se ocupava naqueles Dominus vobiscum que eram lá um assunto entre ele e o pobre do sacristão, que ajudava o melhor que sabia sem saber muito bem a quê.
Parece que ainda ouço. As igrejas ecoam, sabiam? O terço era sonoramente ciciado por mulheres enfiadas em bigodes e lenços pretos, bzzz, bzzz, bzzz, num cochicho ao despique remetido directamente a Deus Nosso Senhor, embora devesse levar Nossa Senhora no endereço. O comendador Santos da Cunha, que era governador civil de Braga e ia a Fafe aos casamentos e funerais dos ricos do regime, também fazia bzzz, bzzz, bzzz, mas com voz de trombone, de terço na mão ostensiva e papuda, durante a missa inteira, e já ela era praticamente toda em português. E se o senhor comendador fazia, e fazia que se soubesse, é porque era a Bem da Nação - naquele tempo não havia dúvidas a esse respeito.
Ora bem. No fim da reza, e independentemente do que o padre estivesse a fazer lá à frente e do ponto em que a missa fosse, as pessoas benziam-se e beijavam respeitosamente o crucifixo do terço, que levavam aos lábios entre o dedo polegar e o indicador. Beijavam a cruz, não a mão, mas estão a ver a confusão que dali saiu? Agora beijam a mão, batem no peito e renegam a Cruz.
António Maria Santos da Cunha (1911-1972) foi presidente da Câmara de Braga durante doze anos, governador civil do distrito e deputado à Assembleia Nacional. Ia realmente muito a Fafe e era amigo do Mendes Ribeiro da Fábrica do Ferro e de outros figurões locais da situação fascista. Santos da Cunha tem um monumento na Cidade dos Arcebispos e é o imponente cidadão mais à esquerda, salvo seja, lá em cima no retrato, acompanhando de olhos revirados uma das visitas do ministro Baltazar Rebelo de Sousa aos Bombeiros da minha terra. Há por ali algumas caras que eu felizmente conheci.
O testamento
sexta-feira, 12 de abril de 2024
quinta-feira, 11 de abril de 2024
Entre o coçamos e o coça-mos
As duas flexões coexistem, mas, apesar de próximas na grafia, não se equivalem. Por outro lado, distinguem-se claramente pela pronúncia, até porque, regra geral, nestes casos a sílaba tónica é diferente.
O problema é que as pessoas não sabem escrever sobretudo porque não sabem ler. Se soubessem ler, então também saberiam que, por exemplo, dizer ou escrever agarramos, chupamos, lambemos, mordemos, arregaçamos, aquecemos ou coçamos, vá lá, é uma coisa. Outra coisa bem diferente será dizer ou escrever, como tanto se usava em Fafe, agarra-mos, chupa-mos, lambe-mos, morde-mos, arregaça-mos, aquece-mos ou coça-mos, vá lá...
quarta-feira, 10 de abril de 2024
Memórias da ditadura
O livro "Memórias da Ditadura - Sociedade, Emigração e Resistência" será lançado depois de amanhã, sexta-feira, dia 12 de Abril, pelas 18 horas, na Associação 25 de Abril, em Lisboa. A obra, concebida e realizada por Daniel Bastos, a partir do espólio fotográfico inédito de Fernando Mariano Cardeira, antigo oposicionista, militar desertor, emigrante e exilado político, tem edição bilingue (português e inglês), traduzida por Paulo Teixeira, e é prefaciada pelo historiador e investigador José Pacheco Pereira. A apresentação estará a cargo de Manuel Pedroso Marques, militar, antigo exilado político e presidente da RTP
Escreve Daniel Bastos: "No ano em que se assinala meio século de liberdade e democracia em Portugal, a publicação deste livro, que conta com o apoio institucional da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril, constitui uma oportunidade simbólica de revisitar o país como era há 50 anos. Mormente o quotidiano de pobreza e miséria em Lisboa, a efervescência do movimento estudantil português, o embarque de tropas para o Ultramar e os caminhos da deserção, da emigração "a salto" e do exílio, uma estratégia seguida por milhares de portugueses em demanda de melhores condições de vida e para escapar à Guerra Colonial nos anos 60 e 70."
terça-feira, 9 de abril de 2024
A minha rua era um largo. Agora é dois cruzamentos.
Foto Hernâni Von Doellinger |
O Santo Velho era Velho por causa do Santo Novo, uns campos de milho ao lado, onde se estabeleciam o Colégio dos ricos e a Escola Industrial dos remediados, que é hoje a Casa da Cultura. Os pobres iam trabalhar para a Fábrica se tivessem sorte. Em Fafe, a Fábrica assim com maiúscula, fábrica por antonomásia, era a Fábrica do Ferro, que por acaso era de fiação e tecidos.
A minha rua era um terreiro onde jogávamos ao espeto, ao pião e à bola, o que, neste último caso, arreliava sobremaneira a Milinha Parola, que ameaçava estraçalhar-nos o esférico à tesourada bastava que lhe fizéssemos alguma tangente aos vidros. A Milinha era Parola (ou Modista, como eu gostava mais) para se distinguir da Milinha Vaqueiro, quatro números acima. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava. Porque o Santo, ou não se chamasse assim, era sobretudo um território de paz, de famílias, de família. Os miúdos éramos todos uma irmandade, os pais e principalmente as mães às vezes é que não. Na minha rua éramos vizinhos. Éramos comunidade.
A minha rua era um largo com vista para o mundo. O mundo era então cientificamente plano, a descair para o Picotalho e para a Granja e delimitado em cima pelos tascos do Paredes e do Zé Manco, com as Grilas de um lado e as Turicas do outro, e em baixo pela Quelha, pela Poça e pela casa brasonada com capela do Senhor Doutor, onde o Senhor Abade ia dizer missa com esmolas. Pela Páscoa, era na Casa do Santo Velho que se reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, seguindo depois para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e descompassadas, nas últimas. Tínhamos o poeta Zé de Castro, duas tílias e um cilindro. Tínhamos velhotas excêntricas. Tínhamos bebedolas residentes e bêbados de visita. Tínhamos casas de lavradores, desfolhadas nocturnas e matança do porco. O Santo cheirava a eido, a estrume, a engaço, a vinho purinho e a pão. A minha rua cheirava a vida. Tínhamos o Maló cantando Frei Hermano da Câmara na esquina do velho Lermas, tínhamos o ceguinho das quartas-feiras e a Mocha e a Senhora Filomena com sardinhas, fanecas e chucharros, indesmentíveis chucharros.
Tínhamos o funileiro Barnabé que era músico mas não tocava tangos, um sapateiro, um carpinteiro que foi para França, duas ou três loucas mansas e o Professor Luís, que, esse sim, tocava na guitarra eléctrica o "Apache" dos Shadows muito melhor do que os próprios, e no entanto já era careca o bom Professor, o que me confundia um bocadinho. Eu plantava-me no meio da rua a ouvi-lo, deliciado. Eu era a terceira tília, cresciam-me raízes nos pés. Tínhamos carros de bois gemendo pelas manhãs e rebanhos de cabritos nas vésperas da Senhora de Antime e da morte. Tínhamos o Chiquinho Varandas, que uma ocasião andou à luta com o macaco do Homem Mais Forte do Mundo. Tínhamos padeira, azeiteiro e mendigos ao domicílio. Os mendigos chamavam-se pobrezinhos. Tínhamos tojo estalando ao sol no passeio. Corríamos à coiada os moços das outras ruas, queimávamos o Pai das Orelheiras pelo Entrudo, cantávamos as Janeiras e os Reis, celebrávamos o Dia dos Enganos, desajudávamos nas vindimas do Sr. José e do Sr. António e nas lavras do Sr. Tónio Quim, os três bombeiros e mestres de vida, íamos ao cinema, que era nas traseiras da rua, festejávamos o Santo António de Lisboa e de Pádua, vejam lá o cosmopolitismo, encostando a cascata ao cilindro abandonado, se calhar por empreiteiro falido, do lado de lá das casas do Sr. Agostinho Cachada e do Sr. José Sacristão, gente também de primeira e bombeiros obviamente. O nosso Santo António era de arromba. Botávamos altifalantes, "Tango dos Barbudos", "Fado das Trincheiras", o "Je T'Aime Moi Non Plus", que me incomodava o andar e eu ainda não sabia porquê. Fogueteávamos a bom foguetear: eram foguetes de três-croas, foguetes envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, géu, trás, trás, adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo comprado no Rates, mais ou menos no sítio onde está agora vergonhosa e envergonhadamente escondido o monumento à Justiça de Fafe. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me, em abono da verdade. O Rates era o proprietário mas também o sítio, lojinha de uma porta só, minúscula, escura, esconsa, tipo vão de escada, e nós íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos negros, e metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.
Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com dois cruzamentos, semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento proibido. E nós morremos ignorantes e breves, desmemoriados pedra a pedra.
P.S. - Publicado aqui no dia 10 de Agosto de 2022. Mas que querem? Hoje é dia 9 de Abril, e não resisti.
Tocavam sempre duas vezes
Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A sit...
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Foto Hernâni Von Doellinger A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, como lhe chamávamos nós os...
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Vou a Oliveira de Azeméis, por exemplo, e levo uma data de "Ó jovem!", geralmente debitada por pessoas de bandeja na mão e com ida...
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Isto passou-se na Brecha , palavra de honra, em dia de bolo com sardinhas , portanto num sábado, se não me engano. E as sardinhas eram evid...