segunda-feira, 22 de abril de 2024

Feridas de guerra 6

Foto Tarrenego!
Obcecado pela "injustiça".
Outra é a história de António Pereira, 51 anos, do Porto. O que obceca é a "injustiça": desde logo, a injustiça de o terem mandado para a guerra, logo a ele que não tem "nenhuma mística de herói, antes pelo contrário"; depois, a injustiça da própria guerra; ainda, "a discriminação de tratamento entre soldados, sargentos e oficiais"; finalmente, a hipócrita posição dos generais, que, escondendo-se num "nacionalismo exacerbado e na chama do patriotismo", não admitem que a Guerra Colonial deixou as suas sequelas psicológicas.
Os sete meses passados no Norte de Angola em 1961/62 foram-lhe penosos desde o primeiro dia. A fartura de cerveja e de uísque não bondou para afogar o choro e os temores. António não voltou o mesmo. Sentia-se perdido quando tornou a casa, no final da comissão. Andou de neurologistas para psiquiatras e em 1971 esteve internado no Hospital Conde Ferreira. E desde aí nunca mais parou com as consultas: diz que tem "descarregado toneladas de preocupações".
O que mais o afligia eram os pesadelos, "corpos esventrados, cabeças e pénis cortados e espetados em paus simulando macabros sinais de trânsito". Remorsos não, porque a sua arma, "a 1035, nunca disparou contra corpo humano". O que o desanimava era "uma certa falta de apoio familiar". O que o "salvou" foram o 25 de Abril, que lhe veio "encher a vida", o investimento de tempo e de energias no seu curso de engenheiro-técnico, mas principalmente a sua filha, actualmente com 24 anos. "Era a Ana quem reacendia a fogueira, quem me ligava à vida", confessa.
Porque, a par de uma "vontade obsessiva de matar os autores de injustiças", que persiste, o suicídio era então também um pensamento constante na cabeça de António. Hoje passa "mais ou menos indiferente pelos sítios que tinha escolhido" para o caso...
Tal como José Rodrigues, António Pereira parece ter chegado a um estádio de convívio tolerante com os seus fantasmas. Mas há quem definitivamente não o tenha conseguido.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

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