quinta-feira, 4 de abril de 2024

Entre gatos e gaivotas

A minha rua adoptiva, em Matosinhos-sur-Mer, é sítio de vadiagem animal, território de gatos e gaivotas. De umas pombas, vá lá, de uns pardejos lingrinhas, de um ou dois episódicos pintassilvos-comuns ou de uns cães abundantemente cagões e felizmente sem asas. Mas sobretudo, e historicamente, a minha rua é território de gatos e gaivotas, que vêm ao cheiro da comida que a minha vizinha lhes manda da varanda, besuntando de espinhas, patas de frango, gorduras várias e nojo extremo a estrada e o passeio mesmo por baixo do meu nariz. A minha vizinha foi quem chamou as gaivotas, mas entretanto enxota-as a baldes de água fria, porque, não sei se mudou de religião, agora só quer conversa com os gatos.
Ora bem: há mais de trinta anos que moro na minha rua e foram precisos mais de trinta anos para que me aparecesse na rua um melro. Sim, um melro efectivamente, e apresentava-se todas as manhãs. Melro cantor que dava gosto, e lambão benza-o Deus, também ia à marmita dos gatos da vizinha, até que um dia.

Na minha rua passa bissextamente a procissão do Senhor de Matosinhos e naquela altura, isto é, no tempo do melro, estava aqui estabelecido, mesmo na porta ao lado, o Núcleo do Sporting, assiduamente visitado pelo então presidente Bruno de Carvalho, que também é um senhor, não desfazendo, e teve igualmente a sua cruz, ninguém pode dizer o contrário. Exigia-se portanto outro asseio.
Não sei se era para meter raiva aos sportinguistas locais ou se derivado a outro insondável motivo, a verdade é que o melro da minha rua, o meu melro, cantava sem parar o hino do FC Porto. E juro que não fui eu a ensiná-lo, eu seja ceguinho. Os melros, é o que têm, já nascem ensinados.

E eu, perante isto? Eu, que vim de Fafe habituado a melros com fartura, aos gatos em casa e à rede dos caça-cães que vinha do Matadouro e varria o terreiro do Santo Velho de uma ponta à outra, eu, dizia, gostei muito que o estupor do melro tivesse dado com a minha rua adoptiva e com a frente da minha casa. Grande melro! Foi porreiro, porque assim já éramos dois. Mas quê? De repente o melro foi-se embora e Bruno de Carvalho também. Ao Bruno ainda o vejo de vez em quando a fazer figuras na televisão e leio-lhe os amores e os humores na imprensa cor-de-rosa, que é hoje em dia toda a comunicação social portuguesa. Ao outro melro é que nunca mais. Hoje em dia sou só eu. Eu e as pegas. As pegas, que vêm decerto do Parque da Cidade, onde o negócio já deu o que tinha a dar, e são mais do que as mães. Não sei se é do aquecimento global, mas me largam a porta, o raio das pegas, e só me fazem passar vergonhas. A minha rua, quer-se dizer, parece agora um lunapário...

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Animais de Rua.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Tocavam sempre duas vezes

Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A sit...