domingo, 30 de outubro de 2022

À hora ou há ora?

À hora ou há ora? - perguntou o gramático, manhoso, como se os agás e os acentos, agudos ou graves, fossem visíveis nas conversas. - Há ora - respondeu o discípulo, mais convencido era impossível. - Há ora?!... - exaltou-se o gramático - Há ora?!?!... - ameaçou o gramático, entremeando os pontos de interrogação e de espantação, e insistindo perdigotamente nas velhas reticências. - Há ora, mestre - perseverou o discípulo, humilde porém seguro. - Há ora, mas e além disso...

A bombeiral da moda 3

Foto Tarrenego!

sábado, 29 de outubro de 2022

Bastante desagradável

- Está bastante desagradável.
- Você também.
- Eu referia-me ao tempo.
- Eu não.

Barnabés, eu tive dois

Foto Hernâni Von Doellinger
Que é que tinha o Barnabé que era diferente do outro? Para começar, era baixinho, abreviado como estampa. Por isso o Senhor Barnabé fazia questão de resumir-se ele próprio, humilde, e dizia que o povo todo o conhecia por Bé, e era assim que gostava de ser chamado, contou-me ele. Bé, então. Estão a ver aquele homenzinho gentil, doce, dez-réis de gente num ar pândego de pinto-calçudo, sacola de merenda a tiracolo, sempre mortinho por concordar com tudo e com todos, estaca aqui para falar com um, estaciona ali para conversar com outro, e na cara, em vez de cara, um sorriso maroto, cândido, inextinguível? Estão a ver? Era o meu Senhor Bé. Eu e Senhor Bé partilhávamos todas as manhãs o Passeio Atlântico de Matosinhos e suponho que éramos amigos. Havia também quem o conhecesse por "São Pedro da Cova", porque era de lá que ele vinha diariamente de autocarro para passear vagaroso a borda do mar. Nos seus oitenta e picos bem medidos, eram quase duas horas de viagem para cada lado, com transbordo, todos os dias ou quase, mas sem lamúrias. O Senhor Bé - que também se lembrava, como eu, de quando Fafe e São Pedro da Cova andaram à pancada por causa da bola - faltou-me ao convívio no tempo de estado de emergência derivado à pandemia, mas logo que pôde tirou outra vez o passe e voltou. Disse-me que estava cheio de saudades.
Uma vez eu contei-lhe do outro Barnabé, que dava dois dele, ou três. O Senhor Barnabé de Fafe, funileiro de alto gabarito, morador e estabelecido naquele escondidinho do Santo Velho e músico vitalício da Banda de Revelhe. O Senhor Barnabé fafense devia ser uma enorme despesa em farda e tocava tuba porque não havia instrumento maior, tirando talvez o bombo, e a tuba vinha-lhe realmente por medida. Quanto ao Senhor Bé, que certamente não gastaria metro e meio para um fato, eu às vezes até me ria imaginando-o, pequenino e gaiato, a tocar pífaro.
Que se segue? No Verão do ano passado o Senhor Bé tornou a faltar-me e eu, confesso, escarmentado com o desaparecimento da minha abençoadora das 7h30, fiquei com medo de perguntar por ele. Deixei correr dois meses, três meses, estávamos a chegar ao Natal e finalmente ganhei coragem. Fui tirar nabos do púcaro junto de outro dos habitués do Passeio, e ouvi o que não queria. Que o Senhor Bé não vinha mais. Morreu. O Senhor Bé "foi mudar uma válvula ao coração e ficou na máquina", disse-me o amigo. Ficou na máquina. Assim.
Quer-se dizer: o Senhor Bé morreu e eu, palavra de honra, acho isto muito mal organizado.

A bombeiral da moda 2

Foto Tarrenego!

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O velho tinha razão

- Estou um velho - disse o velho.
- Não está nada - disse a visita.
- Um caco - disse o velho.
- Como novo - disse a visita.
- Já não duro muito - disse o velho.
- Inda vou primeiro - disse a visita.
- Dói-me tudo - disse o velho.
- É da idade - disse a visita.
- Ai que eu morro - disse o velho.
- Morre nada - disse a visita.
- Morro, morro - disse o velho.
- Não, não morre - disse a visita.
- Morro - disse o velho. 
E morreu. Até porque já estava a ficar chateado.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Terceira Idade.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Para falar com Deus

Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, aproximou-se finalmente ao balcão das informações, não muito, e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...

E a loja era verde

Isaac Singer, mal considerado o inventor da máquina de costura, nasceu no dia 27 de Outubro de 1811. Foi também actor e empresário. O Sr. Singer tinha uma loja e uma carrinha muito jeitosas em Fafe, vendia máquinas propriamente ditas, peças e acessórios, lubrificadores e lubrificantes, linhas e tafetás, montava, afinava e dava assistência ao domicílio - mas nunca o vi por lá. E a loja era verde...

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

A vida é bela e amiúde traiçoeira

Foto Hernâni Von Doellinger
A minha mãe teve uma infância muito difícil, era assim que eu ia começar a escrever. Mas não. A minha mãe não teve uma infância difícil, nem uma infância fácil, nem uma infância assim assim. A minha mãe não teve infância, ponto final.
A minha mãe não foi sequer à escola. Mandaram-na para criada de servir aos sete anos de idade. Serviu famílias importantes em Fafe, mas ninguém se lembra ou faz caso, a minha mãe era um criança.
A minha mãe casou aos 18 e ficou viúva aos 33. Viúva e com quatro filhos evidentemente menores. Era tempo do fascismo - sim, do fascismo -, da pobreza sufocante e do opróbrio, da reprovação pública, porque a má-língua sobre vizinhos ou conhecidos era o passatempo que havia antes dos reality shows da TVI e das notícias de faca e alguidar da CMTV. Naquele tempo de cinza, ser-se nova e viúva era uma desgraça, mas também, socialmente, um defeito, uma marca na testa para toda a vida. A minha mãe passou a ser oficialmente a Viúva da Bomba, para que não lhe viessem ideias. E no entanto, sozinha, fez de nós quatro as pessoas que somos, à sua imagem e semelhança, vertebrados e moralmente limpos, gente digna e séria, respeitadora e respeitada, menos eu, que dei no que dei e, com esta idade, já não tenho remédio.
Como é que a minha mãe conseguiu? Com muita muita canseira, com roupa lavada para fora em tanques de ricos, na poça do Santo ou no tanque do Matadouro, com camisolinhas e casaquinhos de lã feitos por encomenda, primeiro à mão e depois à máquina, com lágrimas tantas que eu bem as via por mais escondidas que fossem, com os tostões contados sete vezes ao dia, com os meus irmãos mais velhos - a Nanda e o Nelo - a terem de ir trabalhar ainda crianças para que eu e o Lando, os mais novos, pudéssemos "estudar e ser alguém na vida". E sermos alguém na vida por eles, em nome deles, de todos, porque nós os cinco éramos apenas um, assim é que a nossa mãe nos queria, como os mosqueteiros, ainda nem fazíamos ideia do Intermarché, embora eu já soubesse do Alexandre Dumas e do d'Artagnan.
Resultado: os meus irmãos são umas jóias, foram e são sempre os melhores naquilo que fizeram e fazem na vida, que era o mínimo que a nossa mãe nos exigia, o Nelo e a Nanda afinal também são "alguém" mesmo sem "estudos" e, quer-se dizer, só eu dei para o torto porque nestas coisas de família é realmente imprescindível a excepção que confirme a regra, e portanto resolvi sacrificar-me pelo bem comum.
A minha mãe fazia das tripas coração e da massa com fressura um pitéu. O dinheiro não chegava e então passou a tomar conta de crianças. Isso, a minha mãe tomava conta dos meninos dos outros, era "ama" disputada, havia lista de espera, metiam-se cunhas, empenhos para que ela aceitasse esta ou aquela criança. Lembro-me do Miguel, da Guidinha, do André, da Xaninha, da Susana, do Ginho, do Miguelinho, e esqueço-me indesculpavelmente de outros, e os meninos chamavam à minha mãe, cada qual à sua maneira, "mãe Xandrina", "mãe minha" (haverá forma mais bonita de chamar alguém?) ou simplesmente "bozinha", porque os netos também lhe passaram pelas mãos. A querida Guidinha, agora casada e também mãe de um rapaz já adulto, ainda hoje chama "mãe Xandrina" à minha mãe e a mim chama-me "tio Nane". E eu gosto muito.
Na Rua do Assento, na casinha de pedra, minúscula, imensa e mágica, a minha mãe chegou a olhar por nove meninos ao mesmo tempo. Como se fossem também seus filhos. Olhava por eles para olhar por nós. Era severa e amorosa, dava-lhes, de acordo com a exigente a cartilha que lhe corria no sangue, o pão e a educação, tinha ali uma espécie de infantário, restrito e de alta qualidade, e se fosse hoje se calhar ia presa.

O dedo que adivinhava tudo

Se eu acreditava no dedinho da minha mãe que sabia tudo? Acreditava, e acreditava piamente. Aquele dedo mantinha-me na linha. E ainda hoje.

A bombeiral da moda

Foto Tarrenego!
Abro aqui uma nova série, regra geral recuando aos finais da década de 1960 e inícios da década de 1970 do século passado, tendo como protagonistas os Bombeiros de Fafe e ministros do antigo regime que por aqui passaram de visita. Destacam-se Baltazar Rebelo de Sousa, um verdadeiro amigo da terra, e Arantes e Oliveira, com quem começamos. Mas também cá estarão, por exemplo, o incontornável Santos da Cunha, governador civil de Braga, os autarcas e caciques locais, o Senhor Abade e outras "autoridades" da altura. E os bombeiros, sobretudo os bombeiros. Será uma oportunidade, quem sabe, para alguém descobrir o avô ou o bisavô em retratos que provavelmente desconhecia. Quanto ao título da série, pedi-o emprestado ao Raul Solnado.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

De bucho cheio (mas não é geral)

Hoje é Dia Internacional do Bucho. Não se riam, por favor! Ou, se fizerem mesmo questão, riam-se à vontade! Mas hoje é Dia Internacional do Bucho. Pelo menos no Brasil é, embora eu não saiba se os brasileiros sabem. O bucho que serve para a nossa alimentação, como se dizia antigamente nas redacções da escola primária, reconheço-o arranjado de três maneiras diferentes. Estufado como se fosse tripas mas sem outro acompanhamento senão o molho, tipo moelas nomeadamente de coelho. Recheado, como no Florêncio, em Guimarães, mas aviso já os principiantes que pode ser uma tremenda desilusão e uma despesa escusada e chorada. Ou com molho verde, como eu prefiro guiá-lo cá em casa, embora não o faça há muito. E pronto. Sobre o Dia Internacional do Bucho, é o que se passa de momento.

Pernas até ao cu

Fala-se de mulheres king-size - mulherões, avionas, tranconas - e diz-se que elas têm pernas até ao cu. Pelo menos na minha terra dizia-se. Como se as mulheres eventualmente mais manejáveis - perrotas, batoques, torneirinhas como a faneca - tivessem pernas apenas até ao tornozelo. Sucedeu-me agora mesmo este clarividente pensamento porque: no dia 24 de Outubro de 1939, faz hoje anos, foram colocados à venda os primeiros lotes de meias de náilon.

Poupée de cire, poupée de son

Factos reais como punhos. Manhã de sábado, A28, direcção Matosinhos-Viana do Castelo, um pouco antes da saída para Vila do Conde. À minha frente segue uma velha carrinha Renault 4L, de um cor-de-rosa altamente suspeito e vagaroso. Aproximo-me, com o fastio próprio dos condutores domingueiros que já não têm paciência para os condutores domingueiros, mas arrebita-se-me a atenção quando, mesmo em cima dela, leio os dizeres da viatura. São uns dizeres sugestivos e muitos, reclames açucarados a um loja de prazeres - sex-shop em português.
E vejo finalmente os ocupantes, ainda por trás: é o do volante e, ao lado, uma louraça da fazer parar o trânsito. Mas eu avanço. Avanço cuidadosamente para a ultrapassagem, olho para o gajo e o gajo sorri malandro. E eu continuo a olhar e o gajo continua a sorrir. Atenção: eu posso olhar e continuar a olhar, porque eu não conduzo, não sei conduzir, nem sequer tenho carta. Brincalhão, o gajo. A gaja não sorri, não me liga nenhuma, olha sempre em frente, tomando sentido à estrada, ainda mais loura do que há bocado e, reparo agora, tem uns lábios vermelhos e escarrapachados, desafiadores.
A minha mulher desliga o pisca e então é que se me faz luz. A gaja da catrel é uma boneca. Uma boneca mesmo, de plástico, uma boneca insuflável, de carregar pela boca. O gajo olha para mim e sorri cada vez mais, no gozo, satisfeitíssimo, não sei onde é que a rapariga levava as mãos. 

P.S. - Louis Renault, pioneiro da indústria automobilística, morreu no dia 24 de Outubro de 1944.

Eu pirilamparei, tu pirilamparás

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 23 de outubro de 2022

As meninas... dançam?

Lembram-se do futebol de salão? O que é que nos vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo rinque árabe do Palácio da Bolsa como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas avisando dos pontos. Para evitar confusões, o futebol de salão passou a chamar-se futsal. E pelo menos em Fafe, com as moças do Nun'Álvares, é o sucesso que se sabe...

Chester, para todos os efeitos

Matt Dillon era o xerife de Dodge City, e Chester o seu leal escudeiro. Naquele tempo todos queriam ser Tarzan ou Mandrake, Buck Jones ou Fantasma, Mascarilha ou Cisco Kid. Os "artistas". Mas o Álvaro escolheu modestamente ser Chester, actor secundário, e assim se rebaptizou num involuntário equívoco cheio de ironia: na verdade, Álvaro Moreira Mendes nasceu para ser primeira figura, protagonista. E foi. No seu ofício de indústria, no movimento associativo, na intervenção cívica, na amizade fraterna e íntegra, foi sempre dos melhores, um fafense excelentíssimo, um homem maior do que o próprio nome, maior do que a alcunha sacada dos livrinhos de cobóis, maior do que o lugar que lhe queiram dar os menestréis da história recente de Fafe, tão desperdiçada em umbiguismos, capelinhas e bagatelas, maior do que melhor ou pior pensem dele. Acerca da opinião dos outros a seu respeito, creio, aliás, que o Chester, ajudante do xerife, não se coibiria de dizer, alto e bom som: caguei!!! E diria alto e bom som e assim com três pontos de exclamação porque ele não sabia falar de outra maneira.
Onde o Álvaro chegasse, constava. Ele encarregava-se de avisar logo à entrada, por entre raios e coriscos, avançando como um tornado de grau cinco, a enorme mão calejada e aberta desbravando caminho, oferecendo-se para um abraço, para uma palmada nas costas à moda antiga. Ser imperfeito como todos nós, mas menos imperfeito do que a maioria de nós, e muito menos imperfeito do que eu, por exemplo, o Chester tinha um coração enorme, desmesurado, e uma boca do tamanho do coração. Fazia amigos com o dobro da facilidade com que fazia inimigos. E também deu alguns pontapés na vida.
O Chester era generoso, impulsivo, excessivo e puro. E amiúde foi a primeira e principal vítima da sua generosidade sem peso nem medida. Era um bom selvagem, uma força da natureza.
Era meu amigo. Forjámos a nossa cumplicidade no tasco, evidentemente. Nas tardadas de Inverno passadas à volta da braseira na cozinha da Dona Isabel, no Toninho Nacor, onde eu, com os bolsos cheios de cotão, ia levado pelo tio Américo. Em 1976, Barcelos acolheu o Campeonato da Europa de Hóquei Patins Sub-21 (juniores, chamavam-se então). O Chester falou do assunto. Comprámos duas assinaturas para o torneiro inteiro, e todas as noites lá íamos de Vauxhall até Barcelos por estrada nacional, que era o que havia, víamos os dois ou três jogos do programa, regressávamos a Fafe e eu chegava a casa já de madrugada. Fomos campeões.
Mais ou menos por essa altura o Grupo Nun'Álvares estava instalado no edifício que fora posto da GNR, em frente à Igreja Matriz, e que hoje é, creio não estar enganado, casa paroquial. Ali foi construído um rinque em cimento e organizado, em 1977, o primeiro torneiro de futebol de salão em Fafe. Salão ao ar livre, é preciso que se note. Nunca falhei um jogo. Um dia vou à bilheteira comprar o bilhete do costume, está lá o Chester (o Chester tinha o seu quê de Deus, também estava em toda a parte) e entregou-me um livre-trânsito passado em meu nome e que dizia "Convidado da Organização - Prémio Assiduidade". Coisa inventada por ele, que era a alma daquilo tudo. Resultado: deixei de pagar para entrar e guardo religiosamente aquele cartão, como se fosse um santinho, uma relíquia da Terra Santa.
Quando terminei a minha felizmente efémera passagem pela tropa, o Álvaro foi a primeira pessoa a oferecer-me um emprego a sério e até já tinha tratado de tudo para eu tirar a carta de condução. Apareceu-me melhor, o Álvaro incentivou-me a aceitar a outra proposta, e ainda hoje não tenho carta.
O Chester alegrava-se quando me via em Fafe. Fazia questão que se soubesse que gostava muito de mim. E a verdade é que eu também gostava muito dele. E no entanto falhei-lhe miseravelmente na altura da vida em que por certo ele mais precisou dos amigos...
O Álvaro era, regra geral, do contra. Era um inquieto espírito de contradição. Tanto que, só para chatear, resolveu deixar-me a falar sozinho, quando tínhamos ainda tanto para conversar.
Felizes os ignorantes: quem não conheceu o Chester, não sabe o que perdeu. Trabalhador incansável, empreendedor contumaz, homem dos sete instrumentos e de mil causas, o Chester é uma história extraordinária e isto aqui é apenas um humilde lembrete, um quase nada. Grande, grande era ele. Álvaro Moreira Mendes. Chester, para todos os efeitos. Uma vida que dava um livro, um nome que merece rua. Em Dodge City já teria.

Conta a lenda que 11

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

O poeta Augusto Fera

Fafe tem uma biblioteca municipal. E a Biblioteca Municipal de Fafe tem ou tinha um blogue onde vai ou ia colocando algumas "notícias" a conta-gotas, bagatela para uma terra que não sossega de parir tanto poeta, escritor e historiador com obra feita e publicada. Os livros em Fafe saem ao ritmo dos pãezinhos da Parefa. E isso é bom.
A intelectualidade fafense é um bocado hipócrita e onanista, como quase todas as intelectualidades - incluindo as verdadeiras. As intelectualidades - sobretudo as de imitação - funcionam em circuito fechado. São uma espécie de clube restrito onde os seus poucos membros se incensam e invejam reciprocamente e principalmente se incensam a si mesmos. E cada qual elabora e publicita um conceito geral de notabilidade esgalhado à exacta medida do seu próprio perfil. Lá fora não há mundo. A felicidade suprema está no espelho, sempre à mão de semear. E isso pode não ser mau, embora faça calos, maioritariamente na mão direita.

O poeta Augusto Fera morreu há dez anos, no dia 27 de Novembro de 2012. Durante meio século espalhou a sua poesia pela imprensa local, fartou-se de ganhar prémios e em 2011 publicou o seu primeiro e único livro - "Cruz de Chumbo e Outros Poemas" -, num acto de justiça em boa hora praticado por José Mário Silva, então presidente da Junta de Freguesia de Fafe, que editou a obra.
Confesso: não me revejo na estética da poesia de Fera, demasiado (diria) maneirista para o meu gosto, mas admirava-lhe o contínuo labor na procura das palavras, a intenção de chegar aos clássicos, o esforço, a ingenuidade às vezes, a seriedade na escrita e a honestidade na mensagem. Convenhamos, no entanto, que a minha opinião literária é aqui absolutamente irrelevante, até porque incompetente.
Conheci muito bem Augusto Fera. O homem sábio, simples e humilde. No meu tempo de miúdo e de Santo Velho, maravilhava-me a vê-lo dobrar a esquina do Palacete, em direcção à Ponte do Ranha, quando ele vinha da Fábrica do Ferro. Como é que ele, cego, conseguia? Como é que ele sabia que a esquina estava exactamente ali? Aquilo sempre me intrigou. Diziam-me que ele contava os passos, que via as horas com os dedos. Para mim, não: aquele homem era mágico. Pois se até fazia versos...

O poeta fafense Augusto Fera morreu e, há dez anos, a Biblioteca Municipal de Fafe não lhe dedicou uma única linha. No dia da morte do nosso poeta, o blogue da Biblioteca Municipal de Fafe destacou o Prémio Portugal Telecom de Valter Hugo Mãe. Também está bem.
Augusto Fera não fazia parte dessa plêiade de convencidos da vida que esgota a "cultura" fafense em genialidades de trazer por casa. Augusto Fera era a sério e era povo. Percebo, por isso, o intelectual silêncio à volta da morte do poeta. Um silêncio quebrado, numa honrosa e justificada excepção, pelo blogue Sala de Visitas do Minho, de Artur Coimbra.
Não. O poeta Augusto Fera não era cego. O poeta, não! Outros serão.

Hoje é Dia do Poeta. O texto acima publiquei-o no meu blogue Tarrenego! uma semana após a morte de Augusto Fera, perante a unanimidade silenciosa e o desprezo generalizado da "inteligência" fafense. Repito-o, com meia dúzia de minúsculas adaptações temporais, renovando o meu protesto e a minha homenagem ao nosso poeta. Junto-lhe dois momentos do livro "Cruz de Chumbo e Outros Poemas":

Voz do sangue

Eu sou fuso da mão que fia linho.
Eu sou corda da voz que diz
oubisto.
Eu sou roupa de ver a
Jasus Cristo.
Eu sou malga de sopas de
bô binho.

Danço o vira que espana todo o Minho.
Amo a tia que talha do ar ao quisto.
Bufo ao resto de cântaro com misto
De ervas e sal ardendo em chão maninho.

Eu mesmo acendo rama de oliveira
Quando Jesus me ralha no trovão
Que sobre as minhas telhas tumultua.

Se eu for a sepultar na Cumieira,
Gostava que descessem o caixão
Até ficar mesmo ao nível da rua.

Augusto Fera, "Cruz de Chumbo e Outros Poemas"

Minha terra, meu altar

Do mirífico himeneu
do sonho com a magia
é que Fafe apareceu
como praga de poesia.

Tão atento noite e dia
Deus estava à gestação
que do ventre da magia
Saiu belo sem senão.

Devia ser grande gafe
ou pecado sem perdão
dizer o nome de Fafe
sem ter os joelhos no chão.

Fafe não tem pedras caras
na areia dos ribeirões.
Mas tem pérolas mais raras
nas ostras dos corações.

Nas agras e cerros seus
há tantos dons sublimados
que até parece que Deus
deserdou os outros lados.

Devia ser grande gafe
ou pecado sem perdão
dizer o nome de Fafe
sem ter os joelhos no chão.

Do vale à ganga sidérea
nada precisa de emenda,
porque em Fafe alma e matéria
foram feitas de encomenda.

Nestes dois versos se encerra
a imagem da terra-mãe:
tem o que tem qualquer terra
e o que outra qualquer não tem.

Devida ser grande gafe
ou pecado sem perdão
dizer o nome de Fafe
sem ter os joelhos no chão.

Augusto Fera, "Cruz de Chumbo e Outros Poemas"

A visita de Veneranda Figura 4

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Os cinemas também se abatem

Foto Hernâni Von Doellinger
O cinema foi sempre a coisa mais importante da minha vida até deixar de ser. Creio que a última vez em que entrei numa sala de cinema convencional levava pela mão o meu filho, ou vice-versa, para vermos "O Rei Leão", portanto no Verão de 1994 e lamentavelmente era a versão portuguesa.
Comecei cedo, ainda de calças curtas e a dar uso nas legendas às primeiras letras que trazia aprendidas da escola. Era o tempo do cinema ao ar livre na parada das traseiras dos velhos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes. Debaixo da escadaria do quartel foi montada uma espaçosa e saudabilíssima cabina de projecção toda ela feita em lusalite, e o terreiro enchia-se de cadeiras. O operador era o Porinhos, se não me engano, eu via os filmes da janela do quarto do meu padrinho e tio Américo derivado à falta de idade, depois o cinema acabou sem mais nem menos, a parada lá ficou, como o próprio nome indica, e o barraco, de tão jeitoso, aproveitou-se para arrecadação das tralhas do meu avô.
Ainda em Fafe, mais tarde, tornei-me ferrinho do Teatro-Cinema, andei pelas aldeias com o Pimenta, de catrel e altifalantes, a anunciar os "ma-gní-fi-cos" filmes que, pelo Verão, passavam no campo de futebol e eram tão fraquinhos, frequentei bissextamente o salão inacabado do Martinho da Granja, se a memória não me atraiçoa, e fui uma ou duas vezes ao Estúdio Fénix. Entretanto, levado pela vida, tinha-me virado para Braga - São Geraldo e Teatro-Circo -, e para Guimarães - São Mamede e Jordão. Vi cinema, de forma avulsa e por exemplo, em Vila Real, Figueira da Foz, Amadora, Lisboa, Dublin, Roma, Manchester ou Bordéus, onde de momento estivesse e pudesse.
Instalei-me no Porto e não me escapou um: Águia D'Ouro, Batalha, Carlos Alberto, Charlot, Coliseu, Estúdio, Estúdio Foco, Estúdio 400, Júlio Dinis, Lumière, Nun'Álvares, Passos Manuel, Olímpia, Pedro Cem, Rivoli, Sá da Bandeira, Terço, Trindade, Vale Formoso, Chaplin, em Leça da Palmeira, e até o Vitória, na Circunvalação mas tecnicamente do lado de Rio Tinto, Gondomar.
E agora, que é deles? Onde estão os velhos cinemas do Porto? Fecharam todos? A cadeado? Foram todos ao shopping e perderam-se? Eu sei que também não vou ao cinema há mais de um quarto de século, mas a culpa não é minha: é do meu filho, que cresceu.

(Dezembro de 1895 preparava-se para entregar a pasta a Janeiro de 1896 quando os irmãos Lumière apresentaram o cinematógrafo, que deu origem ao cinema actual - há quem acredite. Na verdade, porém, o cinematógrafo é considerado geralmente como um aperfeiçoamento feito pelos famosos manos franceses ao cinetoscópio do americano Thomas Edison, aliás inventado pelo seu engenheiro-chefe William Kennedy Laurie Dickson, em 1891, que isto na sétima arte anda meio mundo a enganar o outro como na vida real. Porém, outro porém: o cinematógrafo terá sido realmente inventado não pelos Lumière mas pelo também francês Léon Bouly. Bouly perdeu a patente, vá-se lá saber como e porquê, e os Lumière, toujour attentifs, deitaram-lhe as manápulas gulosas e registaram-na novamente e como deles. Muitos anos mais tarde, setenta do século passado, os Lumière, com aquela familiar queda para o negócio, abriram umas galerias muito jeitosas na portuense Rua de José Falcão, incluindo duas salas de cinema e tudo. Foi lá que o meu filho e eu vimos o "Rei Leão". Parece que a coisa vai abaixo qualquer. E está certo, é o Porto no seu melhor. Depois do Pavilhão Super Bock no Palácio, o Lumière dará à luz provavelmente as Galerias Asti Gancia. Tchim-tchim!...)

P.S. - Auguste Lumière nasceu no dia 19 de Outubro de 1862. Era imão de Louis Lumière. E juntos eram os irmãos Lumière. Os tais.

Callas e os homens

Aristóteles nasceu fará exactamente 115 anos no dia 15 de Janeiro do próximo ano, ou então no dia 20 de Janeiro do próximo ano também exactamente - os historiadores ainda não se entenderam quanto ao assunto. Aristóteles era grego e uma grande cabeça. Fundador da escola peripatética e do Liceu, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande, foi talvez o maior e certamente o mais rico empresário do mundo, teve um romance com a famosa cantora lírica americana Maria Callas e casou com Jacqueline Kennedy, viúva de John F. Kennedy, presidente dos Estados Unidos assassinado dizem que por um ex-fuzileiro naval chamado Lee Harvey Oswald, a quem, por causa das coisas, também tiraram a tosse. Fora do seu círculo restrito de amigos, Aristóteles era conhecido como Onassis: Aristóteles Onassis.

Hermógenes era um filósofo grego que viveu nos séculos V e IV antes de Cristo. Filho de Hipónico e de Cálias III, pertencentes à abastada família Cálias da qual viria a sair a soprano Maria, frequentou Platão e são-lhe atribuídas tiradas tão extraordinárias como, por exemplo: "Quem fica deitado pode não cair, mas não aprende a andar" ou "O viajante nunca está só. Anda com ele o desejo de chegar". A crítica da época não lhe reconhecia grande génio.
Se calhar por isso, anos mais tarde, isto é, por volta de 1970, Hermógenes dedicou-se ao futebol. Foi um honesto defesa direito sobretudo ao serviço do seu Rio Ave, onde jogou mais de dez épocas, e ainda teve tempo de passar pelo meu Fafe, em 1982-1983, antes de terminar a carreira novamente em casa, Vila do Conde, por volta de 1986.

Ora bem. Maria Callas, a diva, ou "La Divina", chamava-se María Kekilía Sofía Kalogerópulu. Hermógenes, o nosso, Hermógenes de Oliveira Morim, 69 anos, ex-futebolista e arrumador de carros suponho que ainda no activo, foi há coisa de três anos notícia de polícia. Por outro lado, Gianni Raimondi, uma das vozes da lírica italiana e o tenor que mais cantou com Callas, morreu no dia 19 de Outubro de 2008. Tinha 84 anos.

Conta a lenda que 10

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 18 de outubro de 2022

A pintura do Mané

A pintura do Mané não lhe dizia grande coisa. Asseguravam-lhe que o Mané era um grande artista, falavam-lhe do impressionismo francês, até do realismo, dos jogos de luz e de sombra, dos nus, mas ele não se deixava convencer. O Mané era um gajo porreiro, isso nem se discute, pagava umas cervejolas bem bebidas e desenrascava satisfatoriamente o lugar de defesa-esquerdo aos domingos de manhã, mas, quer-se dizer, era apenas um trolha regular e à beira da reforma. Como ele...

P.S. - Hoje é Dia de São Lucas, padroeiro dos pintores, médicos e cirurgiões.

De cu à mostra, mas optimista

Eu era um pessimista da pior espécie. Não me lembro se de nascença ou se me fiz assim por necessidade. Depois de repente a minha vida ficou tão fodida, tão fodia, que só pode melhorar. E quando dei fé eu já era um optimista que até meto nojo. Actualmente vejo sempre o melhor das coisas, por piores que elas sejam. Por exemplo: no outro dia tive de ser submetido a uma colonoscopia total (o adjectivo "total" é sugestivo, não é?) e guardo daqueles momentos de franco convívio e sã camaradagem a mais grata das recordações.
Noutros tempos, meter a cabeça numa touca de plástico, vestir uma bata de tacha arreganhada atrás e ficar de cu ao léu e meias seria o suficiente para me desmoralizar. Sobretudo por causa do ridículo das meias. Ainda por cima em público e sendo o objectivo da coisa entrarem-me por onde não devem. Mas agora não, até apreciei. A equipa que tratou de mim era completamente feminina, só mulheres, por acaso todas do sexo feminino, se me permitem a redundância antiga e se me estão a perceber. Que mais é que eu haveria de querer, já que estava ali em pelote? Eram três à minha volta, nunca me tinha visto noutra. Deitaram-me e aqueceram-me os tomates, puseram-me a jeito, enfiaram-me a anestesia, pediram-me para pensar em coisas boas e eu pensei, pediram-me para chegar o rabinho um pouco mais para trás e eu cheguei, estava-se bastante agradável, comecei a sentir um formigueiro bom mas têmporas e apaguei-me inteiro nas mãos delas, distraído mas com todo o gosto. Vim a mim passado não sei quanto tempo. Também não sei o que me fizeram entretanto, e podia pensar o pior. Mas não. Agora que sou optimista, gosto de imaginar que aquilo de que não me lembro foi muito, muito bom. Para os quatro.

P.S. - Hoje, 18 de Outubro, o Brasil assinala o Dia do Médico, que em Portugal é a 18 de Junho. E depois venham-me falar de "acordo ortográfico"...

Fazendo pela vida

O médico deu-lhe dois anos. Ele pediu seis. O médico contrapôs três e que não podia dar mais. Ele exigiu cinco, senão nada feito. O médico disse quatro e não se fala mais nisso. Ele, negócio fechado.

O milagre do vinho

Os médicos disseram-lhe que nunca mais poderia beber. E no entanto ele conseguiu beber até ao fim, apanhando carraspanas de caixão à cova. Foi considerado um milagre.

A visita da Veneranda Figura 3

Foto Tarrenego!

domingo, 16 de outubro de 2022

Estou de dieta

Foto Tarrenego!
O que eu gosto mais na dieta mediterrânica, para além da comida propriamente dita, é o facto de se chamar dieta, o que me sossega sobremaneira a consciência, embora me alvoroce o estômago, os intestinos, o fígado e as articulações dos pés, das mãos, dos joelhos e dos cotovelos, para não falar do resto. Mas é dieta e temos de obedecer. Uma dieta feita, paradigmaticamente, à base dos ossinhos da suã da Tasquinha da Alice, em Bobal, Mondim de Basto, como quem vai para as Fisgas de Ermelo, entalados, os ossinhos, entre salpicão caseiro e moiras encantadas e um naco de orelheira para desenfastiar e duas ou três costelinhas e meia dúzia de fatias de toucinho com o sal no ponto e batatas sabendo a terra e olhos de couves geadas pela madrugada e feijão vermelho da leira ao lado e por cima de tudo alho picado e azeite da fartura e do melhor mais um tintinho honesto e de malga para molhar a palavra. Produtos frescos, locais e produzidos em sintonia com os ciclos astrais e os ritmos da natureza, como muito bem preconiza a Unesco. E eu, nestas coisas, respeito implacavelmente a Unesco.

Depois gosto também da denominação ela própria. Património Cultural Imaterial da Humanidade. Gosto da pomposidade das maiúsculas e gosto da palavra "Imaterial", porque, pensando bem, é uma palavra que, não sendo sólida nem líquida, resvala sorrateiramente para o domínio do "Gasoso" - o que, com sabemos todos, confere...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Pão, Dia Mundial da Alimentação e, já agora, Dia Mundial da Coluna, que não vem ao caso.

Assim e assado

- Há dias assim.
- E dias assado?
- Assado? Foi tempo...

Comer com os olhos

Eram dois homens, já na segunda metade da idade. Um deles fica à porta, enquanto o outro entra no restaurante. O proprietário, que o recebe no hall, pergunta-lhe "É para almoçar?" e o homem responde "É para dar uma vista de olhos". O dono do estabelecimento, embora lhe apeteça, não disparata: "Faça favor. Isto não é nenhum museu, portanto não paga para ver."
Um ou dois minutos depois, o homem sai. Olha para o amigo que o espera, não falam, e desandam dali no mesmo passo descomprometido com que tinham chegado. Deixo de os ver. Fico a imaginar que vão a outro restaurante, fazem a mesma cena mas trocam de papéis. Assim, à vez, vão comendo com os olhos e já ficam almoçados. Melhor do que ir mastigar o papo seco de nariz amarrotado contra a montra do talho, como vi uma vez em Fafe.
Nos corredores do Orçamento, em Lisboa, se calhar não sabem: comer com a boca está a sair dos hábitos de cada vez mais portugueses.

De pé, ó vítimas da fome!

- De pé, ó vítimas da fome! - gritou o speaker-cantor. O pavilhão estava cheio mas ninguém se levantou. Era uma fraqueza muito grande...

sábado, 15 de outubro de 2022

Na aldeia do Senhor Costa

Foto Hernâni Von Doellinger
Outubro já vai a meio e o Borda D'Água manda para o mês que vem, quanto aos pomares, estercá-los no crescente, podá-los no minguante e protegê-los das geadas. Plantar cerejeiras, pessegueiros, pereiras e macieiras, no crescente. Na horta, semear agrião, alface, cenoura, couves, com excepção da couve-flor, e brócolos. Plantar batata (nas zonas secas), alho, couve temporã e tremoço. Semear fava, ervilha e, em camas quentes, alface, beterraba, cebola, nabiça, nabo, rabanete e tomate. Semear cereais de pragana, como aveia, centeio, cevada e trigo. Colher azeitona e beterraba. Na adega, verificar as vasilhas do vinho novo. Destilar bagulho para fazer a aguardente. No jardim, estercar covas para a plantação na Primavera de árvores ou arbustos e estacar as plantas contra o vento. Plantar bolbos de flores. Podar as roseiras e plantar novas. Quanto ao gado, transita para o regime seco com feno, palha e grão.
Quer-se dizer: cava fundo em Novembro, para plantar em Janeiro, como recomenda, por seu lado, O Seringador.
E pronto. É este tempo, senhores. O tempo, nabos e tomates, e mais mada. Ou, como dizia o outro na rádio a preto-e-branco: na aldeia do Senhor Costa, assim vai a agricultura. E não falava certamente do Costa do Assento...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Mulher Rural.

Deixei o cego a falar sozinho

Por Matosinhos anda um cego que tem duas curiosas particularidades: é benfiquista e diz palavrões como a puta que o pariu. A cegueira poderá explicar a primeira curiosa particularidade, mas suponho que já não conseguirá justificar a segunda.
Para além de ser pelo Benfica e campeão da malcriadez, o meu cego vende lotarias e ouve as notícias num transístor em altos berros e aqui atrasado, estávamos na paragem de autocarro da Avenida Serpa Pinto, o aparelho falava da Grécia, da tentativa de primavera grega que agitou a Europa durante mais de cinco anos. A reportagem ainda ia a meio, mas o cego, sem que eu lho pedisse, resumiu-me imediata e cientificamente a questão: "Se se fossem mas é foder, filhos da puta do caralho, se querem chupar que chupem piças, era fodê-los, era fodê-los"...
Eu, para não mandar o cego à merda, ia-lhe debitando os números dos autocarros que se aproximavam da paragem, como se estivesse a "cantar o quino", tal qual se dizia em Fafe por alturas do Natal, marcando com milho os cartões escarrapachados em cima das mesas de bilhar do Peludo. Informei-o do 111. "A mim só me interessam o 500 e o 502", respondeu-me, com maus modos, como se a culpa fosse minha. Já agora, culpa de quê? "O 502 passou há um bocadinho, perdi-o por pouco", expliquei eu, a ver se amenizava a coisa. "Há um bocadinho não, que eu estou aqui há um pedaço e ele não passou", atirou-me o cego. Acreditem em mim, por favor: eu tinha chegado à paragem há cinco minutos, o cego chegara há três minutos. Fiquei invisual com a desconfiança e com a falta de educação do homem, mas afastei-me, para não ter de lhe responder torto.
Deixei-o a falar sozinho, literalmente a falar sozinho, porque ele continuou a comentar as notícias, caralho acima, quem os fodesse abaixo, aparentemente virado para mim, imaginando-me ao seu lado, mas eu estava a mais de quinze metros de distância e, confesso, a começar a sentir-me ligeiramente mal com a situação. Não se faz, deixar um cego a falar sozinho.
Reaproximei-me quando chegava mais um autocarro. Um rapazinho avisa o cego, "É o 523". O rapaz confundiu-se, era o 123 da Resende, o 523 da STCP não existe, e o cego, que sabe os autocarros de cor e salteado, aproveitou para dar uma desanda ao miúdo. Vem finalmente o 500 e o jovem, ainda cheio de boas intenções apesar do raspanete, alerta, satisfeitíssimo, "É o 500, é o 500". O autocarro pára e abre a porta. O cego pergunta lá para dentro, ao motorista, "É o 500?", "É o 500", confirma o motorista. Da paragem, corado de vergonha e tristeza, o rapazinho queixa-se ao cego, "Não acredita em mim?", e o cego responde, "Acreditar em quem, caralho, tu até inventas números..."
Não renego o meu fardo judaico-cristão, mas os remorsos passaram-me de repente. Sim, deixei o cego a falar sozinho - e, sabeis que mais, não me arrependo!

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Bengala Branca.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Os ex-colegas, essa pedra no sapato

Foto Tarrenego!
O problema dos ex-colegas. Não é brincadeira. Para um gajo com mais de sessenta anos de idade embora em estado praticamente novo, o problema dos ex-colegas é uma chatice quase tão grande como os calhamaços do José Rodrigues dos Santos se eu os lesse. Imaginem-me: com ex-colegas da minha rua e da escola primária, os melhores de todos, com ex-colegas do seminário, já lá irei, com ex-colegas do liceu que foram para doutores e foi um ar que se lhes deu, com ex-colegas dos Comandos que acham que são muito mama sumae! e eu não sou, com ex-colegas da fábrica de quem tenho tantas saudades, com ex-colegas dos jornais e da rádio que têm lá as suas vidinhas, vejo-me fodido para os aturar a todos, mesmo quando eles não querem saber de mim, o que é regra geral. E quando querem saber de mim, então ainda é pior. O caso do seminário, e eu disse que vinha cá, é absolutamente paradigmático. Para quê? Digmático. Ninguém me mandou para o seminário, fui porque quis, porque queria ser padre, e às vezes ainda quero. A minha mulher sabe disso. No ano em que lá cheguei, éramos 136 crianças, havia um documento de acção psicológica (isto anda tudo ligado) que rezava assim: "Começar é fácil. Recomeçar é de muitos. Chegar ao fim é de heróis. Nesta marcha ascensional é nosso dever caminhar! A empresa é difícil, mas fascinante O Ideal!"...
E há umas certas e determinadas pessoas que acreditam nisto, os supra-sumos que chegaram ao "O Ideal!". Se tivessem ido para os Comandos, esses supra-sumos, sumos sacerdotes, andariam agora por aí de boina vermelha e crachá, eventualmente de G3 a tiracolo se os deixassem, e em vez de melancólicos ego te absolvo diriam esfuziantes mama sumae! Estes rapazes tiveram os melhores mestres do mundo, o padre Fonseca e o padre João Aguiar, para não irmos mais longe, e afinal não aprenderam nada com eles, não perceberam nada da vida.
Porque. Reencontrei-me ultimamente com ex-colegas do seminário que deram em padres. E até gostei, a princípio. Há aquela festa propedêutica, "ó pá, há que tempos, és mesmo tu, estás mais gordo, estás mais magro, está igualzinho, dá cá esses ossos, dá cá essa febras!", como pessoas normais, e depois os meus ex-colegas enfiam no cu um daqueles feijõezinhos milagrosos que lhes dão aquela voz sacrista e falseta, e, magníficos, condescendentes e compassivos, com a superioridade moral dos eleitos, dos exclusivos de Deus, perguntam sempre lá do alto, como se estivessem combinados uns com os outros, "e então, o que é que tens feito?"...
Fico fodido. Fico à rasca. Começo a suar, a gaguejar, não sei o que hei-de dizer em minha defesa. Afinal estou perante um dos que chegaram ao topo do Kilimanjaro e eu nem sequer passei do sopé do Bom Jesus do Monte, onde o Secónego tinha uma casa. Conto o melhor que consigo: "ó pá, tenho sido sobretudo jornalista mas também trabalhei numa fábrica, sou casado há quarenta anos, sempre com a mesma mulher, o que é miserável no meu ofício, porém continuo apaixonado, tenho um filho que é uma jóia e o meu maior orgulho, temos a casa e o carro pagos, damos umas voltinhas para arejar, eu não sei conduzir mas cozinho muito bem, tenho quatro amigos, pendurei a carreira profissional para tomar conta primeiro do meu sogro e depois da minha sogra, e não me lembro se já disse que sou jornalista"...
Mas não chega. Eu sei que não chega! E continuo fodido e à rasca, gago e suado. Eu até acho que a classe dos ex-colegas está muito sobrevalorizada. Parece-me que a maioria das pessoas passa distraidamente ao lado do negativismo, da carga pejorativa que a própria expressão em si encerra. Ex-colega, ex-colegas. Se, por analogia, as pessoas pensarem no que pensam quando pensam em ex-amigo, em ex-amigos, certamente compreenderão o que eu quero dizer. Mas não adianta. Isso não me salva. Os ex-colegas aparecem-me, realizadíssimos da vida, e eu, que sei que sou a merda que sou, só me apetece fugir...

Era assim. Mas aqui atrasado fui a Fafe a um funeral e mudei de táctica. Fui a Fafe, dizia, e esbarrei com um dos meus que deu em padre e que, ainda por cima, estava encarregado do serviço. Conversámos na sacristia da Igreja Matriz, intermediados pelo meu sobrinho Geno. Como de costume, inquirido sacramentalmente "e então, o que é que tens feito?", confessei na mesma o "ó pá..." do parágrafo ali de cima, o "ó pá..." completo, porque tenho este defeito de informar, mas depois acrescentei perguntando também, para livração da minha alma:
- E tu? Nunca fizeste nada, pois não? Quer-se dizer, és padre, não é?...

Em todo o caso e nos tempos que correm: como diria a minha mãe, que é sábia mas também queria um filho padre, "mais vale não fazer nada do que fazer asneiras"...

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

David Alves ensinava

David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem outros que tais - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de mais recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. Isso mesmo. O David era inteligente, culto e visionário, carismático, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com um par de décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Pensador por natureza, pedagogo, ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes para assistir. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era uma acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...

Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!

A visita da Veneranda Figura 2

Foto Tarrenego!

terça-feira, 11 de outubro de 2022

E se o fim do mundo for isto?

Matosinhos à tarde. Sol que era um consolo. Puxado pela trela do pequeno cocker, o casal descia a rua, a minha, em direcção ao mar ali à beira. Eis senão quando, porventura desarranjado pelo strogonoff de vitela de primeira ou pelo leite-creme que lhe serviram ao almoço, o aflito canídeo arriou as calças e cagou ali mesmo em pleno passeio, com evidente alívio pessoal e grande satisfação dos babados papás. Acabada a obra, a madama, higiene e civismo acima de tudo, foi à carteira e retirou um lenço de papel de um branco imaculado, abriu-o, ao lenço casto, provavelmente perfumado, e voltou a dobrá-lo, liturgicamente, agora apenas em dois, baixou-se, quase que me pareceu que se benzia, e limpou o cu ao cão. Isso, limpou o cu do cão. Depois amarrotou o papel e lançou-o para junto do saralhoto. E ali ficou o serviço. No meio do passeio. Do meu. E lá seguiram os três para o mar e para o sol, dois deles puxados pela trela.
A autarquia agradece. Faz colecção. No brasão de Lisboa figuram corvos, no de Matosinhos deveriam desenhar saralhotos. A cidade de Matosinhos, para além das muitas outras coisas muito boas, é isto: não há passeios que cheguem para tanta merda de cão. E não é só Matosinhos, embora Matosinhos abuse. E a culpa não é do cão.

Volto ao enternecedor quadro urbano que pincelei o melhor que pude e soube no longínquo Outubro de 2011, então no meu blogue Tarrenego! e sob o acutilante título "Matosinhos, sol e saralhotos". E volto, uma década depois e por esta mesma altura do ano, porque a coisa piorou drasticamente, está que não se pode. Eu não sei qual é actualmente a situação em Fafe a este respeito, mas aqui em Matosinhos é merda por todos os lados, se me dão licença, e há quem se convença que são ornamentações de Natal. Não são! São mesmo saralhotos de cão, cada vez mais e cada vez maiores, saralhotos nojentos que tomaram conta dos passeios e das ruas, já não se pode pôr pé fora de casa. A coisa alcançou proporções dramáticas. Pandémicas. Dantescas. Apocalípticas. É caso de calamidade pública, já vem tarde o alerta vermelho de colapso iminente. É o fim do mundo, pelo menos em Matosinhos, e eu nunca na minha vida pensei que o fim do mundo fosse este monte de merda.
Muitos temem que Matosinhos desapareça do mapa, num futuro mais ou menos próximo, derivado ao aquecimento global, ao degelo e à subida do nível das águas do mar. Néscios! O fim, o afogamento de Matosinhos é agora, está a ser, submersa a cidade num irreprimível turbilhão de saralhotos de cão. E - insisto - a culpa não é do cão.

O cãodutor, o pendura e o fotógrafo penetra

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Quando o futebol não era para cátias vanessas

Os nomes interessam-me muito. "Diz-me o teu nome, dir-te-ei quem és" - acredito neste ancestral provérbio chinês que acabo agora mesmo de inventar, e não no outro, bem intencionado e de autor incerto, "Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és". Millôr Fernandes explicava melhor do que eu o meu ponto de vista: "Judas andava com Cristo. E Cristo andava com Judas". Estamos percebidos?
Portanto, dou-me ao trabalho dos nomes. Quando eu era miúdo marcava no jornal os nomes dos jogadores de futebol que me pareciam esquisitos. Ainda não tínhamos chegado à babel que agora é, mas o Marreca, o Camelo, o Cansado, o Repolho, o Chouriça, o Torto, o Maneta, o Sacristão, o Mouco e o Aguardente enchiam-me de alegria as segundas-feiras. Também gostava muito do Araponga, do Alhinho e do Manaca. O Penteado e o Careca já me apareceram fora de tempo, mas isto é tudo nomes só por exemplo.
Com os nomes sublinhados eu fazia equipas que jogavam umas contra as outras, num campeonato de partir a moca, porque eu imaginava os jogadores exactamente conforme o nome, não sei se estão a ver o Marreca a driblar o Sacristão e o Repolho a entrar de pé em riste ao Camelo.

(Não é preciso ir mais longe: sou de Fafe, uma terra que deu ao futebol e ao mundo nomes tão extraordinários como Ricoca, Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Preto, Zebras, Caganito, Trolas, Feira Velha, Machica, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira, Mocho ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos.)

Sempre apreciei particularmente os jogadores de um nome só. Mas nome de barba rija, se me faço entender. O Freitas, o Gomes, o Antunes, o Meneses, o Martins, o Ferreira, o Oliveira, o Marques, o Almeida, o Lopes, o Carvalho - eram nomes que me punham em sentido. E se os nomes tivessem bigode farfalhudo, inclusive nas sobrancelhas, então ainda melhor. Nomes assim davam-me segurança, transpiravam autoridade, infundiam Respect. O agente Freitas, o chefe Gomes, o comissário Antunes, o nosso cabo Martins, o sargento Almeida, o capitão Carvalho... - estão a acompanhar-me?

Mas já não há nomes assim da boa e velha casca-grossa, e os bigodes de antanho foram de momento substituídos por falsas barbas jihadistas em caras de sobrancelhas depiladas. Temos agora em campo o Paulo Vítor, o João Mário, o Paulo Bernardo, o André Paulo, o Mário Rui, o Rui Miguel, o João Paulo, o Paulo Jorge, o João Afonso, o Rúben Tiago, o Cristiano Ronaldo. Enfim, cátias vanessas.

domingo, 9 de outubro de 2022

O homem de licra e o boião perdido

Estão a ver esses maratonistas bissextos mas cheios de intenção que treinam aos domingos de manhã artilhados com todos os matadores, como por exemplo aquele cinto tipo canivete suíço onde acomodam boiãozinhos de várias cores e feitios, barras energéticas, bananas, ananases, pepinos, couves-galegas, sandes de marmelada com tulicreme, tremoços, caldo de nabos, as chaves de casa, do carro, do totobola e do euromilhões, um par de algemas, um bastão extensível, lingerie de senhora e um spray de pimenta forte? Estão a ver? Pois era um desses com um daqueles.
O homenzarrão de calções de licra pelo joelho passou por mim no meu Passeio Atlântico, em Matosinhos, e naquele exacto momento despencou-se-lhe do extraordinário cinto multifunções um dos frasquinhos de plástico. Aos meus pés. Eu, que só quero ajudar, gritei "Olhe, caiu-lhe um boião!", vergando-me para apanhar a garrafinha e levá-la ao dono, e bem me custou. O superatleta, talvez apenas cinco metros à minha frente, ouviu-me, sempre correndo, virou levemente a cabeça e sobretudo o braço direito num gesto redondo e grande, creio que metendo-nos no mesmo saco a mim e ao vasilhame perdido, para tonitruar, desportista até mais não:
- Que se foda!...
E lá foi para casa assapar na mulher e comer cinco frangos de churrasco sem picante em somente 1h43m36s, tudo incluído.

P.S. - Hoje é Dia do Atletismo. No Brasil.

Lágrimas que são ouriços

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 8 de outubro de 2022

Melros de torna-viagem

A minha rua adoptiva, em Matosinhos-sur-Mer, é território de gatos e gaivotas. De umas pombas, vá lá, de uns pardejos lingrinhas e de uns cães abundantemente cagões e felizmente sem asas. Mas sobretudo, e historicamente, a minha rua é território de gatos e gaivotas, que vêm ao cheiro da comida que a minha vizinha lhes manda da varanda, besuntando de espinhas, patas de frango, gorduras várias e nojo a estrada e o passeio, mesmo por baixo do meu nariz. (Na minha rua passa bissextamente a procissão do Senhor de Matosinhos e estabeleceu-se há uns meses, colado aqui a casa, o Núcleo do Sporting - exigia-se portanto outro asseio.) A minha vizinha foi quem chamou as gaivotas, mas agora enxota-as a baldes de água fria, porque, não sei se mudou de religião, só quer conversa com os gatos.
Ora bem: há mais de trinta anos que moro na minha rua e foram precisos mais de trinta anos para que me aparecesse na rua um melro. Sim, um melro efectivamente, e apresenta-se todas as manhãs. Melro cantor que dá gosto, e lambão benza-o Deus, também vai à marmita dos gatos, um destes dias desaparece corrido a encharcado pela minha vizinha, se tiver a sorte de não ser cozinhado para alimentar os bichanos.
E eu, perante isto? Eu gostei muito que o melro tivesse dado com a minha rua emprestada e com a frente da minha casa. Grande melro! É porreiro, porque assim já somos dois...

Isto é: arquivei este apontamento em Fevereiro de 2017. Entretanto o Sporting desamparou-me a loja, foi não sei para onde, se é que foi, e deu em campeão, o que é deveras lamentável e manifesto desperdício. O melro da minha rua, o meu melro, que infelizmente tornou a emigrar, cantava sem parar o hino do FC Porto. E juro que não fui eu a ensiná-lo. Os melros, é o que têm, já nascem ensinados.
Por outro lado, hoje é Dia Mundial das Aves Migratórias. Curiosamente, o Dia Mundial das Aves Migratórias é duas vezes por ano, no segundo sábado de Maio e no segundo sábado de Outubro, coincidindo com as duas principais épocas de migração aviária.

Quentes e boas

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Quando a memória é de plástico

Tornei a Fafe e fui à minha procura. Queria revisitar e mostrar o sítio exacto de onde a extraordinária matriarca dos Summavielles me atirava o retrato de Salazar, que na verdade era o "burro" de um baralho de cartas, como já aqui contei. Queria registar a frontaria que sei de cor da casa principal da família rica, um belíssimo palácio brasileiro que eu conheci por dentro e de boca aberta numa Páscoa em que fiz calos com a sineta do compasso. (Leio num interessante texto do blogue Sala de Visitas do Minho que o edifício da Rua Monsenhor Vieira de Castro foi construído em 1862. Idade de respeito.)
A famosa sacada ainda lá está. O meu passeio também. O resto não. Não sei há quanto tempo nem porquê e não me interessa por culpa de quem, a casa-mãe dos Summavielles está tapada por duas telas pintadas ao mau gosto dos piores cenários de teatrinho de escola do século passado. E mesmo em frente à nova jóia da coroa cultural da autarquia, o renovado Teatro-Cinema.
Se pensam que é uma crítica, estão enganados. Até porque, repito, não sei o que se passa e os gostos são relativos, como os pronomes. Só tive pena. Também pena de não poder fazer o retrato. Fiz isto:

Foto Hernâni Von Doellinger
O textinho de abertura e a fotografia publiquei-os no meu blogue Tarrenego! no dia 20 de Abril de 2012. Há dez anos, portanto. Consegui saber nessa altura que haveria um projecto arquitectónico para salvar o histórico imóvel, mas os seus autores ou representantes deixaram-me sem mais informações. Dez anos passaram e leio hoje no Expresso de Fafe que a Casa de José Florêncio Soares, assim se denominará oficialmente o edifício, estará actualmente "num estado calamitoso de degradação" e que há um trabalho premiado contendo "propostas" para a sua "reabilitação e requalificação". Fico mais descansado.
Marcamos então encontro para daqui a mais dez anos. Entretanto, aos alegados responsáveis pelo património fafense, estimo-lhes as melhoras.

As castanhas são como o próprio nome indica

Foto Hernâni Von Doellinger
As castanhas. As castanhas têm pouco que se lhes diga. Chamam-se castanhas por causa da própria cor, acho eu, e este ano não sei a que preço é que estão à saída do assador. (Eu e os assadores agora saímos à rua em horários descombinados - e é a vida.) As castanhas fazem-me gases e há cinco qualidades de castanhas: castanhas cruas, que sabem a infância e a dor de barriga, castanhas cozidas, que precisam de saber a funcho, castanhas piladas, que são uma pouca-vergonha, castanhas assadas, que são quentes e boas, e castanhas com bicho, que são uma merda. No Verão, as castanhas são tremoços.
As castanhas vêm dos ouriços, que antigamente tinham a mania de cair em cima das cabeças das pessoas. Os ouriços de Fafe eram os piores. Havia um castanheiro nas traseiras do tasco do Senhor Augusto Paredes, encostado ao muro, mesmo em frente ao Palacete, e os ouriços caíam na rua como tordos. Mas esperavam por mim, matreiros e organizados, para me desabarem aos pares ou num indecente mènage à trois mesmo em cheio no cocuruto. E eu sem capacete. Era um cristo.
Para além dos filhos da puta dos ouriços e das castanhas que servem para a nossa alimentação, os castanheiros davam também uma tirinhas muito jeitosas para se fazerem grinaldas e óculos de brincar. Os castanheiros podem ter mais de mil anos, mas o do quintal do Paredes não. O quintal do Paredes era também o quintal do Senhor Jerónimo Barbeiro e do Senhor Lopes Agulheiro, três famílias grandes e boas, e eu tenho saudades daquela gente toda. O castanheiro do Paredes agora é um prédio de rés-do-chão e quatro andares. Mesmo em frente, centenário e ainda elegante e digno, agora é o Palacete que cai. Cai aos bocados, desgostoso com o abandono e a ignorância adjacente.
Derivado às castanhas existem também as castanhadas e as castanholas. As castanhadas quem as sabia explicar muito bem era o Luisão que passou a pasta ao Rúben Dias que passou a pasta ao Otamendi, não desfazendo do Palhinha, ali ao lado, que também era um competência. E as castanholas fazem um papelão nas mãos de Lucero Tena.
Eu gosto muito de castanhas. E afinal as castanhas têm bastante que se lhes diga.

No lugar dos palácios desertos e em ruínas

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

O Nobel de Lobo Antunes

Este ano também não. Era hoje, andava a roda do Prémio Nobel da Literatura 2022, número praticamente redondo e repetitivo, tão ao nosso feitio bissexto e esotérico, mas nem assim. António Lobo Antunes, nada, nem sequer a terminação. Cada vez mais acredito que os membros da Academia Sueca jogam muito bem às cartas mas não lêem, consomem briefings de modas políticas e tendências sociológicas, vêem séries na televisão, emborcam uns brännvins, e depois - bêbados, ensonados, de olhos vendados e de costas - atiram um dardo ao mapa-múndi e onde calhar calhou. Já disse que cada vez mais, não disse? Pois então repito: cada vez mais estou como o nosso Lobo Antunes - quero que o Nobel se foda. E se a puta da seta com o prémio, para o ano, acertar aos trambolhões na minha casa, eu não estou, eu não quero.

P.S. - A francesa Annie Ernaux, autora de "Os Anos", foi hoje anunciada pela Academia Sueca como Prémio Nobel da Literatura 2022.

Sino da paixão, bate bão-bão-bão

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 4 de outubro de 2022

O meu avô gostava muito de animais. No prato.

O meu avô da Bomba era muito amigo dos animais. Gostava deles por perto, se fosse no prato melhor. Tinha andorinhas. Sim, o meu avô da Bomba tinha as paredes exteriores da casa de quarteleiro enfeitadas com andorinhas de porcelana e um crocodilo também de louça que tomava conta da entrada pelas escadas interiores. O crocodilo apresentava a mandíbula inferior presa por arames, deve ter sido luta valente, história antiga feita segredo de família, porque eu nunca conheci o bicho doutra maneira e até hoje ninguém me contou o sucedido.
O meu avô tinha uma tremenda paixão por pintassilgos e canários. Apanhava-os à falsa fé nuns alçapões que ele próprio fazia e depois alimentava-os e educava-os com paciência de chinês e desvelo de pai babado, espiando-lhes diariamente a definição da plumagem e ensinando-os ti-trrriii a dobrar o canto. Quando os considerava prontos, de solfejo na ponta da língua, o meu avô apresentava-os então à sociedade local, chamava os especialistas para uma primeira audição pública. A ocasião era solene. Era o momento da verdade. "Este não o vendo nem por dois contos", costumava dizer a mangar, se a exibição corria bem, mortinho que lhe aparecesse logo ali um comprador por muito menos. O meu avô era assim, sabia-a toda.
Na Bomba havia cão, geralmente Roni, havia coelhos e galinhas. As galinhas eram fundamentais naquele lar de entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas. Havia cabrito na engorda pela Senhora de Antime, como manda a boa tradição fafense, e houve porco, pelo menos uma vez. O meu avô mandou capar o porco, lembro-me muito bem do serviço encomendado ao Senhor Beta, capador encartado e satisfatório saxofonista na Banda de Revelhe. Mas lembro-me sobretudo dos guinchos do pobre animal, ferido à traição na sua virilidade, e aquilo afligiu-se-me até aos ossos. Eu estava de partida para o seminário, diziam-me que também ia ser capado, estão a ver portanto a impressão que de repente se me fez entre pernas.

O meu avô da Bomba, que construía alçapões para caçar canários e pintassilgos, mantinha uma banca do seu tempo de moço sapateiro, velho e honrado ofício de que nunca se apartou. E fazia para casa sandálias e sapatos, daqueles que duram duas ou três vidas. Fez os sapatos que o meu padrinho e tio Américo levou no dia do seu casamento com a querida tia Laura, e que catitas que eles eram: os sapatos e os noivos. O Avô da Bomba era uma artesão habilidoso e perfeito. Mãos de ouro. Uma figura. Fazia também fisgas, que dava de prenda aos netos. Depois mandava-nos matar pardais.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Animal.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Provavelmente a melhor vitela assada do mundo

Foto Município de Fafe
Os domingos tinham esse pequeno problema, e quem for de Fafe e antigo sabe do que falo: tripas ou vitela assada? Era a verdadeira questão, o dilema do almoço dominical. Os fafenses, gente de bom comer e satisfatório beber, resolveram facilmente o assunto, há muito, muito tempo: isto é, em vez de tripas "ou" vitela assada, o almocinho de domingo passou a ser tripas "e" vitela assada. Nem Salomão, no seu ancestral e sábio critério, tomaria decisão mais acertada.
A vitelinha guiava-se em casa, com vagar e carinho, com as voltinhas todas, se possível em forno ou fogão de lenha, e as tripas, regra geral, iam-se buscar num tachinho à Esquiça ou à Pacata, consoante a ideia que cada um tinha acerca da sua própria posição social - o que agora até dá para rir, vendo-se assim a coisa à distância...
Começava-se portanto pelas tripas, e a seguir vinha a vitela. O apetite era gerido ao milímetro, mais ou menos um bocadinho daquelas, mais ou menos um bocadinho desta - porque, como determina o princípio da impenetrabilidade da matéria, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, e as vacas é que têm felizmente quatro estômagos. Ora bem: a malta nova, pouco dada à tripalhada, reservava-se para a chicha com batatinha de ouro e arroz seco e solto. Mas de quando em quando reservava-se mal. Como daquela vez em que o nosso Zé não tocou no feijão. Perguntaram-lhe se estava doente, se tinha fastio, se queria um caldinho branco, se queria meter o termómetro. Que não, que não, que não e que não, respondeu respectivamente, e explicou todo gaiteiro: - Estou a guardar-me para a vitela!
Naquele domingo não havia vitela. E as tripas já tinham saído da mesa...

Agora, muita atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada". À moda de Fafe. A vitela assada à moda de Fafe, quando bem trabalhada, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo. A confraria da dita não veio ajudar nada, antes pelo contrário, mas, diga-se já agora em abono da verdade, veste e desfila que é uma categoria.
E tome nota, porque vale a pena: de quarta-feira até domingo, dando bom proveito ao feriado da implantação da República, está aí mais uma edição do Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe. A famosa vitela assada em forno de lenha, regra geral, vinho verde, pão-de-ló e doces de gema, tudo a preço de combate. Produtos regionais, animação de rua, muita música, passeatas e actividades tradicionais. Mais informação e programa completo, aqui.
Também estava a guardar-se para a vitela? Então vá lá! Aproveite, vá a Fafe, antes que se acabe! Antes que seja crime.

Fui ao dentista e ganhei uma cara nova

Cheguei muito tarde ao dentista. Logo eu que tomo horas para tudo, cheguei tarde ao dentista. Quero dizer: já passava dos quarenta. Evidentemente não sou exemplo para ninguém, também neste departamento da vida, mas a verdade é que, apesar de tantos anos de aparente desmazelo odontológico, eu tinha uma cremalheira que era um mimo - foi o que me disse o doutor, muito admirado, quando lhe arreganhei a tacha pela primeira vez. Palavras para quê? Eu usava Pasta Medicinal Couto. Os meus problemas com os dentes começaram, portanto, quando fui ao dentista.
E estreei-me em grande, numa célebre extracção de um siso, que, não é para me gabar, correu que foi uma desgraça. O dente estava muito apegado a mim, eram décadas de convívio e recusava-se a sair, coitado. Anestesia atrás de anestesia, o dentista escarafunchava e escarafunchava, puxava e puxava, pedia desculpa, que nunca tinha acontecido, inventava alavancas que não alavancavam nada, fazia o pino, o quatro e o oito, tentou o flique-flaque à retaguarda e o mergulho empranchado de braços abertos, escarafunchava e puxava, o homem suava copiosamente e eu sem guarda-chuva, parava para se desfazer das cambras, ralhava com as afogueadas assistentes que pareciam baratas tontas, pedia desculpa, que nunca tinha acontecido, e elas, quase em lágrimas e em coro: nunca tinha acontecido, mandou vir um escadote, a escada Magirus dos Sapadores, uma marreta da obra em frente e o Regimento de Artilharia da Serra do Pilar, por esta exacta ordem, escarafunchava e escarafunchava, puxava e puxava, desculpe, nunca tinha acontecido, e nada. Que daqui não saio, daqui ninguém me tira, insistia o filho da puta do dente, agarrado à gengiva como uma lapa, e já me estava a meter nervos.
Eu era uma poça de sangue. A minha boca era já duas, derivado ao escarrapacho forçado. Tinha a boca pior que o chapéu de um pobre - e foi ali que eu percebi na carne o significado da infeliz expressão. Se eu pudesse falar, gritaria: chamem-me um carro!, mas eu não podia falar, porque não sentia a boca e isso até era do mal o menos.

(Por outro lado, o dentista passa muito bem sem a nossa opinião. Já repararam que o dentista só faz perguntas depois de nos atafulhar a boca com metade dos móveis do consultório e a mangueira do jardim? Respondemos como? Só se for pelo nariz, mas isso é número arriscado e praticável apenas em caso de profunda constipação. E já deram fé que a gente vai lá queixar-se do dente de baixo e o dentista trata do dente de cima? E que geralmente acerta?)

O dente cedeu, por implosão controlada, ao fim de uma manhã inteira de pancadaria. O dente era eu. E eu era um destroço, um sobrevivente inesperado de Alcácer Quibir. Vi-me ao espelho: tinha os lábios esgaçados de orelha a orelha, parecia o Joker do Jack Nicholson. Para me confortar, o dentista disse-me que ainda ia ficar pior. E ficou. No dia seguinte: os cantos da boca em ferida, a cara inteira feita num bolo, inchada e negra. É. Eu tinha uma cara nova, irreconhecível, parecia que tinha passado pelo programa de protecção de testemunhas do FBI. Ou pelo menos pelo Botched do canal E!...
Por causa da dose cavalar de anestesia, andei semana e meia a babar-me e com um falar esquisito. A minha mulher queria internar-me. Safei-me por uma unha negra à consulta externa do Magalhães Lemos.
Mas isso passou. A sintomatologia física desapareceu. A memória da carnificina é que não. Padeço de stress pós-traumático. Ainda hoje é uma tortura ir ao barbeiro. Sim, ao barbeiro. Entro em pânico. Estão a ver? A mesma espera, a mesma televisão ligada na Praça da Alegria, a mesma bata branca, a cadeira, a babete, os utensílios cromados, pontiagudos e cortantes, o zzzzzzzzz assobiado do secador que parece o zzzzzzzzz assobiado de uma broca, a televisão ligada na Fátima Lopes, estão a ver? Estão a ouvir? Estão a perceber a minha agonia?
Isto é: houve aqui uma transferência qualquer que eu não sei explicar. Porque com o meu dentista corre tudo muito bem, farto-me de o recomendar a toda a gente. É, aliás, o meu conselho odontológico, como gosto de dizer. Na verdade, o sanguinolento episódio do dente do siso não passou disso e ganhei esta bonita história para contar aos netos de quem é avô. Na próxima sexta-feira vai lá a minha mulher por mim e portanto adeus até ao meu regresso.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Dentista. Pelo menos no Brasil.

domingo, 2 de outubro de 2022

Em balão previamente aquecido

Moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado na varanda. E era na varanda que, depois de um jantar mais coisa e tal, eu gostava de fumar a minha cachimbada e beber um fundinho de CRF em balão previamente aquecido. "Em balão previamente aquecido". Não sei quem foi o génio que inventou a frase e o conceito, mas, já repararam?, sabe quase tão bem dizê-lo como bebê-lo. Eu parece-me que já trouxe a ideia de Fafe, e lembro-me que quem gostava também de repetir amiúde a curiosa expressão era o Silva da Sargaça, ou Chico Silva, velho camarada de merendas e desconversas líquidas, exímio praticante do falar antigo e excelentíssimo músico da Orquestra Sinfónica do Porto e da "sua" Banda de Revelhe.
E balão, para mim, é mesmo balão. Não um balãozinho ou um balo. É balão, bojudo e de boca larga, tipo Alberto João Jardim, lembram-se? O conteúdo até poderia ser pouco, e era, um dedo apenas e medido pela minha mulher, mas o continente eu queria-o pela medida grande.
Moro em frente ao mar, dizia eu, e tenho uma vizinha que dá de comer às gaivotas. A sério, dá de comer aos gatos e às gaivotas. E as gaivotas, que vêm ao cheiro, não me largam a varanda. De dia e de noite. Todos os dias e todas as noites. Creio que ainda ninguém explicou a estas gajas que só me deveriam bater à porta em caso de tempestade marítima.
Ora, a gaivota é um bicho que, como a maioria dos portugueses, come qualquer merda e anda quase sempre de soltura. Resultado: quando a gaivota abre a cloaca, e aquilo é um porto franco, só de saída, chovem cagadas de alto lá com elas. Quem tinha capacete, tinha, quem não tinha, que tivesse. Isto é ciência.
Portanto, moro praticamente em frente ao mar e estava na varanda à conversa com o CRF em balão previamente aquecido, deitando um olho, de quando em vez, a um desenxabido Gil Vicente-Olhanense, e isto é que eu ainda não tinha dito. Foi num desses momentos, no exacto momento em que eu disponibilizei o meu olho esquerdo para mais um fora-de-jogo mal assinalado, ainda por cima, que a puta da gaivota do costume - já te conheço a fronha, ó cagona! - resolveu aliviar lastro, com uma pontaria tamanha que me acertou em cheio no indefeso balão de boca larga.
Antes de ficar realmente fodido, pensei: isto é uma metáfora do pobre país que somos, todos nos cagam em cima, até as gaivotas, e pela boca morre o peixe. Bebi um golo e não era metáfora nenhuma. Se querem saber a verdade, e com vossa licença, era mesmo merda.

Entretanto o Olhanense desceu de divisão, o Gil Vicente também, mas tornou a subir, foi inventado o VAR, que é outra boa merda, como se viu agora em Guimarães, no Vitória-Benfica, eu deixei de beber CRF e de fumar, tenho em casa 25 cachimbos inúteis e belos que são um bom princípio de museu ou talvez de um centro interpretativo, a Banda de Revelhe quase rebentavam com ela, as gaivotas continuam a cagar-nos em cima e os políticos, de uma forma geral, também. E nós por cá na vidinha e olhando o mar, a ver navios e estupidamente sem capacete.

Tocavam sempre duas vezes

Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A sit...