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Foto Hernâni Von Doellinger |
Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa: entro no estabelecimento, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, varejo O Jogo, olho com fastio para as folhas do Jornal de Notícias, vejo as figuras da revista Volta ao Mundo, coço a cabeça e eventualmente os testículos, espreito-me aos espelhos, espero, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada pelo meu barbeiro com um semigesto de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito os três passos de caminho para apontar se é só barba ou se é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos!
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos o tralhame com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
O meu barbeiro não. Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que comigo não vale a pena, até porque não me consta que se possa descortar cabelo. Vamos direitos ao assunto, quero dizer à máquina registadora, espreito os numerozinhos verdes a ver se ainda é o mesmo preço, é, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio sem dizer "Ugh!", que ele não estranha.
Mas, para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, precisei de me começar a impor logo no princípio, há mais de quarenta anos, quando cheguei de Fafe. O meu barbeiro já sabe: som da televisão para baixo mal entro, porque a Praça da Alegria é-me insuportável. Mais: lavagem da cabeça, não. Nunca. Eu e o meu barbeiro até pode dizer-se que somos amigos, mas nada de convívio, de festinhas. Nestas coisas, a minha costela homofóbica dá de si. É uma costela flutuante, mas está lá. Por exemplo, incomoda-me também que o estabelecimento se chame "salão" em vez de "barbearia", e, ainda por cima, "salão de cabeleireiros". O meu barbeiro sabe do meu incómodo, mas neste particular mandou-me dar uma volta. São os tempos que vivemos e merecemos. Até a Barbearia Tralhão, isso sim sítio para homens de barba rija, agora também já é Cabeleireiros Pereira Tralhão. O que é que se há-de fazer?
Não sei o que deu ontem ao meu barbeiro. Resolveu falar. E eu, que até já me tinha convencido de que éramos mudos, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros de um modo geral são assim, falam sempre mesmo que a gente não lhes responda. E o meu barbeiro ontem estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política, quer-se dizer: pelo Ventura, que vai meter estes mamões todos na ordem. O que até me veio a calhar para eu continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público nem chamar nomes a ausentes. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, quer-se dizer: Luís Filipe Vieira, Pinto da Costa, Varandas, gangues, facadas, polícia, camisolas e troncos nus, o Francisco J. Marques que é melhor do que o Pedro Guerra, e eu nada. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Trump, agora é que o vão apanhar. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E o funeral da rainha, que foi uma categoria? E eu a pensar que o real evento, se foi mesmo uma categoria, esteve certamente a cargo do nosso
Baptista de Antime, mas moita-carrasco! E as notícias? Quer-se dizer: o Manuel Luís Goucha que mandou a Teresa Guilherme para a prateleira. E a Cristina Ferreira, que foi de fim-de-semana a Sevilha. E a Fátima Lopes que deslumbrou em biquíni. E o Malato que dá para os lados todos como as circunferências. E a Sónia Araújo mailo Jorge Gabriel. Também não. Nem assim. Mantive-me de boca fechada, mudo como um herói.
O meu barbeiro pareceu desistir. Calou-se, magoado. E assim esteve, desistente, calado e ressentido, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro, pôs a cara mais sofrida do mundo, suspendeu a tesoura trabalhadeira num gesto teatral e atirou-me, certeiro: - E este tempo?!...
Ah!, bom, o tempo. Falando do tempo, assim já nos entendemos: tivemos ali conversa até à hora de almoço e despedimo-nos de abraço.
É claro que eu não vou ao barbeiro há mais de dez anos, derivado à crise. Se deixei de ir ao cardiologista, por que razão havia de continuar a ir ao barbeiro? É a minha mulher quem me corta o cabelo e a barba cá em casa, na varanda sem marquise que temos mesmo em frente ao mar, se nos pusermos de lado. Mas eu e o meu barbeiro éramos exactamente assim. Praticamente assim. Entretanto a minha mulher aprendeu na Internet a realizar cateterismos, e cá nos vamos arranjando.