Eu, por exemplo, digo doénte em vez de doênte. Digo mãe em vez de máim. Digo meio quando é meio e não maio. Digo têlha quando é telha e não talha. Digo coêlho quando é coelho e não coalho. Digo cóio em vez de côio. Digo câno em fez de cáno. Digo frónha em vez de frônha. Digo cachicha em vez de caxixa. Digo ferraménta em vez de pénis. Quer-se dizer: digo como era costume dizer-se na terrinha. Sou de Fafe, com muito gosto. Falo à Fafe como se nunca tivesse saído definitivamente de lá, e foi há mais de quarenta anos. Sempre que posso, falo a língua a que gosto de chamar fafês. Resultado: chamam-me parolo, labrego, matarruano, riem-se de mim.
Já o outro, urbanita de grande metrópole, frequentador de mundo e telejornais, ajeita delicadamente os botões de punho de dezoito quilates, afaga a gravata hermès sofisticada e cara, faz biquinho com os lábios suspeitos e diz, finíssimo porém acutilante, ânus da prova. Ânus da prova, é o que ele diz! Ânus da prova para aqui, ânus da prova para ali, enche a boca de ânus da prova! E chamam-lhe ó-doutor, jurista, comentador, especialista em molduras penais. E ninguém se ri.
Por outro lado. "A minha pátria é a língua portuguesa", escreveu o nosso Fernando Pessoa. "A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo. Um povo só começa a perder a sua independência, a sua existência autônoma, quando começa a perder o amor do idioma natal. A morte de uma nação começa pelo apodrecimento da língua", escreveu Olavo Bilac, o brasileiro e sensato.
Bilac (1865-1918) e Pessoa (1888-1935). Não quero saber aqui quem é ovo ou quem é galinha, nem me interessa como assunto, de momento, o miserável, escusado e alegado acordo ortográfico. Lembrei-me foi dos professores doutores da mula ruça, traidores à pátria, que enchem a boca de "periúdos", de "interésses", de "rúbricas", de "perzeveranças", de "mediúcres". Enchem a boca e apodrecem a língua. Apodrecem a língua e matam a nação.
António Costa, por exemplo. Já era tempinho de aprender a falar português, depois de, em 2015, ter aprendido a não falar mandarim. Não haverá lá pelos corredores e gabinetes de São Bento ou no Largo do Rato quem saiba ensinar ao nosso ainda primeiro-ministro a basezinha das regras de concordância, alguém que o proíba de comer sílabas enquanto fala? Falar com a boca cheia é, para além do mais, falta de educação.
quarta-feira, 14 de setembro de 2022
O ânus da prova
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