segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Na minha rua passa o mar

Foto Hernâni Von Doellinger
O meu barbeiro atacou-me à traição. Falou-me de barcos. Eu e o meu barbeiro tínhamos uma combinação tão antiga e cómoda de só comunicarmos um com o outro por sinais, e ele apanha-me o ponto fraco e obriga-me à conversa da boca para fora. Barcos. Nós sabíamos que tínhamos também isso em comum, os barcos, mas era como se não soubéssemos, disfarçávamos silenciosamente, numa cumplicidade camarada, coisa de velhos embarcadiços. O Sr. Fernando, que é um artista de mão cheia, foi, no seu tempo de tropa, escanhoador-mor a bordo do navio-escola Sagres, que de vez em quando me visita o quintal. E eu, marinheiro de chuveiro e águas-furtadas, há mais de dez anos que me fiz contador de navios a bordo da minha varanda com vista para o mar (se me puser de lado). Foi assim. Diz-me o meu barbeiro, sem mais nem menos, "Aquilo agora no Porto de Leixões os cruzeiros são uns atrás dos outros". Parece coisa de nada, não é?, apenas deixada no ar, mas ó palavras que me disseste! Leixões e cruzeiros. Senha e contra-senha. Ao ataque!, pensei eu mais com a língua do que com a cabeça, esquecendo-me de que queria estar calado. Esqueci-me também da bóia e afoguei-me no relambório. Que "Pois de facto são mais que as mães, só no ano passado foram oitenta e cinco" e que "Eu é que os vejo passar, estou lá em cima a tomar conta" e que "Até os fotografo" e que "Até já conheço alguns ao longe, como por exemplo o Albatroz, o Aurora, o Boudica, o Crystal Symphony, o Queen Victoria, o Marina, o Celebrity Constellation, o Costa Pacifica ali do retrato, o Azura que é irmão gémeo do Ventura, rasam-me aqui a porta de casa, e que "O Porto de Leixões é um sucesso, um incansável batedor de recordes que despeja milhares de turistas nas cidades de Matosinhos e Porto e milhões de toneladas de mercadorias para o país inteiro, e dei-lhe mais números, e comparei-lhe períodos homólogos, e disse mesmo "períodos homólogos", que nunca na minha vida tinha dito mas tinha esperança, e meti-lhe percentagens entre parênteses, e disse "entre parênteses", e desenhei-lhe gráficos com setas a apontarem para cima, e desabafei que "Um dia destes um filho da puta qualquer, sentado numa secretária em Lisboa, vai escangalhar isto tudo". E foi assim que eu falei. Mas em ponto grande. E disse escangalhar apenas com cinco letras e começando a palavra por fê.

O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe disse que não era mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível", "A sério?", "A sério?". Falámos por mais de quarenta anos de silêncio. Mas conversa sobre barcos leva longe: já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás e não vi terra, a minha varanda. Tive medo e parei ali. Levantei a mão direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei aflito até casa.
Porque na minha rua passa o mar.

(Mas ainda ouvi. À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso, com a intrañable Lucero Tena castanholando.)

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