sexta-feira, 30 de setembro de 2022

O estranho desaparecimento do homem invisível

Foto Hernâni Von Doellinger
Devo andar a ficar parecido com alguém. São cada vez mais as pessoas que olham para mim na rua, e eu não estava habituado a ser visto. Sempre achei que tinha cara de ninguém, tão incógnito e invisível fui durante toda a minha vida, e não me estou a queixar, constato apenas, porque senstato ainda podia ser pior, se não me engano. Por exemplo: chovesse a cântaros e corresse eu em coiro a subir e a descer desalmada e inutilmente as escadas da Arcada, no centríssimo de Fafe, intervalando com três litúrgicas cabeçadas na porta principal do Club, e a verdade é que nem a polícia municipal tomava conta da ocorrência. Era como se eu não existisse, mesmo com o pirilau ao léu, e o facto de ainda não existir polícia municipal também não serve de desculpa. De acordo com as detalhadas notas da minha agenda de 1911, que agora mesmo compulso e sentornozelo, pratiquei esta patusca habilidade duas ou três vezes, talvez quatro ou cinco, os apontamentos estão um bocado esborratados, e só abandonei a modalidade por indicação médica. O médico da caixa sempre me chamou Sr. Bonifácio porque nunca tomou razoável sentido a quem eu sou realmente. Eu próprio quantas e quantas vezes passei por mim sem me conhecer de lado nenhum, não serei portanto o primeiro nem o último a atirar a primeira ou a derradeira pedra à autoridade distraída ou ao serviço nacional de saúde relapso, respectivamente. Serei, por uma questão de princípio, o do meio.
Portanto não sei que diga. Eu era o homem invisível, e sentia-me muito confortável dessa maneira, mas de repente desapareci e aparentemente passei a ser uma pessoa normal, à vista de toda a gente, o que me incomoda sobremaneira. Quer-se dizer, apareci desaparecendo. É chato. E um bocado estranho.

Mas ao que interessa: agora, na rua, espreitam-me de cima a baixo. Faço imediatamente o teste da braguilha, porque a braguilha não engana, mas há muito que eu retirei a braguilha de cotio, só a uso ao fim-de-semana com hífenes e eu, confesso, ao fim-de-semana com hífenes não saio. Ando portanto intrigado, diria até assaz incomodado, mas estaria a mentir se o dissesse, e eu só minto às quintas-feiras dos anos bissextos, e por isso hoje não digo. Por outro lado, a palavra assaz é particularmente parva.
Fui ao espelho ver o que se passava. Há coisa de dez minutos, fui ao espelho. E faço questão de informar que não me via ao espelho desde 1879, mais ou menos no dia do São Francisco de Regadas, ou desde 1901, por alturas da Senhora das Neves da Lagoa, não tenho bem presente. Fui ao espelho (sei que é a terceira vez que digo que fui ao espelho, e com esta já é a quarta) e aconteceu o seguinte: encontrei-me realmente com um tipo parecido comigo e saiu-me aquela frase batida: já vi esta cara em algum lado. Deve ser isso.

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