quinta-feira, 18 de abril de 2024

Sei de sítios

Sou devoto dos prazeres da mesa. Gosto da liturgia de uma boa refeição, em família ou com amigos, gosto de comer, gosto do que é bom, e sei o que é bom. Também sei fazer. Sou um apaixonado pela boa e honesta cozinha portuguesa. Gosto da cozinha portuguesa tal qual ela é, na sua pureza original: tradicional, apurada, robusta, variada, generosa. Um bom prato, uma especialidade daquelas de trás da orelha, é capaz de me fazer andar duzentos ou trezentos quilómetros pelo prazer de o degustar. Sei de sítios como quem sabe de ninhos. Sei de sítios que não conto a ninguém, nem sob tortura, e desde que a tortura não seja a da fome.
Gostamos de dar as nossas voltas. Enquanto posso (e posso cada vez menos, como a maioria dos portugueses), vamos a esses sítios a que nos afeiçoámos e onde já há muito eu e a minha mulher somos tratados como amigos ou família, e com mimos especiais, sítios onde a nossa falta é sentida, porém tenho de admitir que é sobretudo a comida que lá me leva. Vou pelo gosto, é este o meu parâmetro de aferição e escolha fundamental.
Mas respeito quem se deixa seduzir por outras variáveis gastronómicas ou paragastronómicas, como, por exemplo, essa coisa tão vaga ou talvez não como é "o serviço" ou "o atendimento".
Um velho compincha doutras vidas mas também da santa trincadeira - nas imortais palavras de mestre Aquilino Ribeiro, colocadas na boca de um abade, evidentemente - contou-me que estava um destes dias numa bela jantarada, num grupo de gente boa e interessante, quando um dos convivas alvitrou um próximo repasto a realizar em determinado restaurante, que "tem um excelente serviço"...
O meu amigo, que é um brincalhão mas o outro não sabia, perguntou, com matreirice:
- Excelente serviço, pois... Mas o que é que se come? O que é que é lá muito bom? Uns bolinhos de bacalhau..., uns ossinhos da suã?...
- Quer-se dizer, não sei, tem muita coisa, nada assim de especial, mas o atendimento é óptimo... - colocou-se à defesa o homem da ideia.
- Está bem, mas eu não como serviço, o atendimento não me enche a barriga - insistiu o meu amigo e voltou a insistir, perante o cada vez maior embaraço de quem já se tinha arrependido de ter dado apenas uma sugestão e do resto do pessoal à volta da mesa.
Tudo acabou depois na risota, quando todos perceberam que o meu amigo afinal estava na tanga, e até tiveram sorte porque desta vez, tenho a certeza, ele não arrumou a questão com uma expressão que lhe é muito cara e que, neste contexto, seria algo do género:
- O serviço? Dá-me com o serviço nos

tomates aux gésiers de lapin. Eis a minha receita. Livre de gorduras e lave em duas águas as moelas de coelho. Uma da águas pode ser das Pedras. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto conta de zero a 120 e depois de 120 a zero sempre ao pé-coxinho. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes da embalagem, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Descongele e aqueça a feijoada que sobrou do almoço de domingo, regale-se e seja feliz.

P.S. - Hoje é Dia Internacional dos Monumentos e Sítios. E a verdade é só uma: eu sei de sítios que são verdadeiros monumentos.

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