quarta-feira, 26 de abril de 2023

O arrocho ia para a baliza

Hoje é Dia do Goleiro. No Brasil. Se fosse em Portugal, seria Dia do Guarda-Redes, o que em certa medida explica logo à nascença a suprema necessidade e a utilidade sem medida dessa coisa escaganifobética e sonsa a que certos doutores chamam acordo ortográfico. Falando à nossa moda, o guarda-redes é-o, regra geral, porque, no que diz respeito à bola, não serve para mais nada, não joga um caralho, não dá uma para a caixa, é um trambolho, um cepo, um arrocho, e por isso vai para a baliza. Ali pelo menos não estorva. E grita a torto e a direito "Sainde da frente!, Sainde da frente!", desarrumando imaginárias barreiras no miserável recreio da Escola Conde de Ferreira, no largo da Feira Velha ou entre as aprazíveis tílias do Santo Velho, fazendo todo o cuidado aos vidros da Milinha Modista, mas podia ser no Maracanã ou no Prater de Viena, era só pensar e escolher. Sei muito bem do que falo. E falo orgulhosamente por experiência própria, não sendo o único.
Albert Camus, Arthur Conan Doyle, Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, que foi eleito santo, Che Guevara, Julio Iglesias e Luís Marques Mendes tentaram ser ou foram mesmo guarda-redes. Do Luisinho lembro-me eu muito bem, nas camadas jovens da nossa AD Fafe, que agora tem uma extraordinária SAD que parece que vai para Felgueiras, suponho que na velha carreira, ida e volta todos os dias, como faziam antigamente as pessoas sérias, isto é, as pessoas que têm só uma família e trabalham...
Sobre guarda-redes, percebia muito o David Alves, como sabia também da vida. E eu já aqui contei. E também já passei a limpo duas ou três definitivas ideias que concatenei sobre a problemática guarda-redística e suas derivadas e concomitantes subjacências. Embora, não é para me gabar, eu seja geralmente brilhante, admito que duas das melhores definições sobre o guarda-redes terão sido elaboradas pelos escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues. "Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito", sentenciou o uruguaio. Já o brasileiro Nelson Rodrigues afirmou um dia - "Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários."
Por mim, o que continua a interessar-se no ofício de guarda-redes é tentar perceber esse mistério do homem que entra em campo como "guardião", sim, chamam-lhe guardião, e sai do campo como "frangueiro", sim, chamam-lhe frangueiro, ao ex-guardião. Frangueiro e filho da.

Eu não dei para nada, nem para guarda-redes. Fui sempre uma nódoa, futebolisticamente falando, desportivamente falando. Mas sei muito bem de quem tinha jeito para tudo, era só chamá-lo, dar-lhe a experimentar, fosse o que fosse, e ele, pimba, era imediatamente um sucesso. Sem ir mais longe, chamo aqui, a esse propósito, o testemunho parceiro de Francisco Assis Pacheco, nas suas "Memórias de Um Craque". E ele conta assim:

De como fiz a minha iniciação desportiva, hesitando entre a arte de guarda-redes e a de pedróbolo da quinta do Lopes

O Eusébio marca livres de 30 metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, mas eu fui o maior craque da Rua Guerra Junqueiro e está para nascer um sucessor digno desse título.
A Rua Guerra Junqueira continua no mesmo sítio, isto é, em Coimbra, capital da Beira Litoral, e creio que já de nascença tinha o quintal do Luís Marques (12x2,5m) com a parede do prédio à esquerda de quem desce as escadas e um muro infelizmente não muito alto à direita, que era por onde galgávamos para o quintal do Lopes à procura da chincha. Uma tarde, estava o craque nos cinco anos, ouviu-se a frase entre todas decisiva:
"E se o miúdo jogasse à baliza?"

Vi-me subitamente presenteado com um boné e dois lenços de assoar para as joelheiras. A maltózia era mais velha, nove, dez anos, e num relance percebi que o meu futuro desportivo, assaz brilhante nas épocas seguintes, poderia nem sequer começar. Ora como isto de futebóis mais vale um mergulho para o fotógrafo do que dois meses no banco dos suplentes, o craque enfiou o boné bem enfiado na tola, arreganhou o pior dos sorrisos (grr!) e dispôs-se a gravar o nome completo sobre o cimento do quintal. É claro que a minha equipa ganhou: nem seria nunca de outro modo, pois logo à pri­meira investida do Tó Mané Magalhães esfola gatos mata cães fui­-me a ele, encostei delicadamente a biqueira do sapato esquerdo ao tornozelo do artista, fiz força (uma força "do catarino", como então se dizia) e apliquei-lhe o acelerador com algumas ganas e sobeja intenção de brilhar. O Tó Mané desandou para as escadas agar­rado ao tornozelo. Perguntaram-lhe se queria que trouxessem a bilha de água.
"Quero, pois", urrou. "Quero a bilha e quero um calhau pra partir os focinhos a esse gajo do cento e dezoito!"
Nessa tarde, afora o incidente relatado supra, correu tudo à me­dida dos meus mais veementes desejos: cinco defesas em reboleta, três por cima das sardinheiras, enfim um penáltie socado por cima do muro que ainda estou a ver o Luís Marques muito chagado ex­plicando-me assim:
"Vais lá tu que é pr'aprenderes a não armar ao Barrigana, òviste?" Fui, sim senhor, e deliciado. Daí a pouco terminava o prélio: vi­tória dos Portas Pares, um convite ad aeternum para aparecer sempre que entendesse. Durante mais de sete anos não faltei ao compro­misso.

Como depois da jogatana era preciso secar as camisas, Luís Marques e seus muchachos costumavam trespassar-se até ao quin­tal do Lopes e entreter os derradeiros ócios antes da sopa da noite com um exercício de arremesso. Destarte me tornei o mais artilheiro dos pedróbolos da rua, com um saldo de catorze gatos só na semana de estreia. Quando ouço contar que o Zsivotzky lança o martelo a - setenta metros e tal, batendo com isso os máximos reconhecidos e a reconhecer, debruço-me na janela da Travessa do Patrocínio e,

deitando a bia fora, ponho-me a pensar em quanto é cruel o mundo dos homens. Um recordista mundial que não dá nem uma calhoada num gato - então isto chama-se pontaria?

1 comentário:

  1. Antenor, Barreira, Zé Maria, Gaspar, Quim. Os maiores guarda redes que passaram pela ADF, pelomenos no meu tempo. O primeiro era grande, só. Os outros eram bons...

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