domingo, 5 de janeiro de 2025

O meu avô era um artista

Já contei que o meu avô da Bomba, apesar de quarteleiro dos Bombeiros de Fafe, e daí o apelido, nunca se apartou completamente do velho e honrado ofício de sapateiro com que se iniciara na vida. Enquanto pôde, num cantinho por baixo das escadas que subiam para "o salão" do quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro, onde os finalistas da Escola Industrial levavam à cena a sua récita anual, ele manteve banca privada e fez, com desenho próprio, as sandálias e sapatos que calçavam a família. A família lá de casa dele, quero dizer, mulher e filhos, porque o meu avô não era de dar, nem para a família, vamos dizer assim, além-soleira. O máximo que dava eram os bons-dias e variadas ordens, mas exigia o troco e o recibo com número de contribuinte.
Em todo o caso, fui semanticamente injusto quando chamei sapateiro ao meu avô da Bomba. Sapateiro. Nestes tempos em que nem os cegos são cegos - são invisuais -, agora que já nem há mentirosos - mas inverdadeiros ou faltadores à verdade, como se sugere na política -, nos dias em que nem os bois são chamados pelos nomes - têm números -, chamar sapateiro ao meu avô da Bomba é praticamente um insulto, e estou muito arrependido, que me desculpem os sapateiros propriamente ditos e os atamancadores em geral.
Se escrevesse hoje, e é o que faço agora, eu diria que o meu avô da Bomba era um mestre do artesanato, um artífice do calfe, uma sumidade da sovela, uma Joana Vasconcelos por antecipação, e fazia-lhe um museu, se mo pagassem; diria que o meu avô era uma start-up em pessoa e metia-o na Bolsa de Nova Iorque, se me deixassem; diria que o meu avô era um criador de sapatos e enchia-o de massa do PRR, se ma dessem; diria que o meu avô era um caso exemplar do empreendedorismo nacional e pendurava-lhe mais uma medalha no 10 de Junho, se mandasse; diria que o meu avô era um estilista, um designer de calçado, e acompanhava-o à Feira de Milão, assim a agenda mo permitisse. É isso. Se escrevesse hoje, eu diria que, para todos os efeitos, o meu avô era um designer, um estilista, um artista - sobretudo um artista. Ai era, era...

P.S. - Hoje é Dia de São Simeão Estilista. Simeão Estilista, o Antigo, para se distinguir de Simeão Estilista, o Moço, nasceu em Alepo, norte da Síria, por volta de 389, faleceu em Telnessin, em 459, e terá sido o primeiro santo estilista. "Estilista" diz que advém da palavra grega stylos, que significa coluna. Era no topo de uma coluna que Simeão vivia, pregando e jejuando, preso por uma corrente. Quer-se dizer, hoje em dia trabalharia numa discoteca da moda. E o outro também.

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