domingo, 4 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 5

Está então aí a deliciosa maré para confeccionar as tradicionais sopas do Espírito Santo e a perfumada alcatra, que, à moda da Terceira, constitui uma das principais jóias da preciosa cozinha açoriana.
A quinta-feira é dia de Pezinho. Em nome da Comissão, um rancho de cantadores e tocadores de viola vai de porta em porta agradecendo e, em muitos casos, recolhendo ainda ofertas retardatárias para a festa grande. Na sexta-feira, pelo meio-dia, as portas da despensa do império abrem-se à distribuição do pão e da carne, repartida em doses ricas, para consumo de toda a freguesia mas cuidando particularmente para que não faltem aos mais pobres. Todos os lares estarão precatados para receberem fidalgamente familiares, parentes, compadres, vizinhos, amigos e penetras.
De súpeto espetam-se no fim os dias contados dos dois, três ou mais animais que a Irmandade, comprados ou por oferta prometida, há um ano cativara e cevara para o efeito. Fatal como o destino, não há milagre que lhes valha. São cozidas centenas de quilos de pão branco para a sopa e em massa sovada. Requisita-se o melhor vinho da ilha. Venham então essas sopas do Espírito Santo, que já se irrequieta o pessoal, com os pés metidos debaixo da mesa. Mestre Nemésio conta, de fazer água na boca, em "Mau Tempo no Canal":
O bezerro esquartejava-se para esmolas de pão e carne estendidas em bancas improvisadas na rua com tabuões e toalhas, e postas nos seus pratos de barro coroados de ramos de hortelã. O pobre que dá ao pobre cobre a sua alma e empresta a Deus. Fartura é naqueles dias! Cozido e alcatra a amigos e compadres, nas panelas de arroba mexidas pela "mestra da função"... as mesas postas, carniça, potes de rosas, e os copos mostrando à transparência de vinho os confeitos de funcho e açúcar jogados pela vereança aos peitos das raparigas. Vivo e coberto de fitas, tonto das boninas e da pólvora do foguetório, o bezerro, à frente do cornetim e da rabeca do Pezinho, cheirava a pêlo e a chícharo, à jarroca das grotas sem fundo, trazido do lado de lá do nevoeiro que engorda os pastos e vela a alma da ilha. Ainda quente do breu que lhe segura a rosa de papel entre os cornos, ajoelhavam o bicho à força à porta do "imperador", como se o Espírito Santo quisesse lembrar aos ilhéus que são do mesmo barro que a vaca bafejou no filho da Virgem pobrinha.
Tal qual.

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

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