Dos terceirenses costumam dizer os açorianos das outras ilhas, se calhar com uma pontinha de inveja, que são gente branda para o trabalho mas lesta para a folia. E tudo, afinal, só por causa das suas Sanjoaninas - consideradas "a mais pujante festa popular do arquipélago" e que, na última semana de Junho, constituem, a bem dizer, o modo de vida de toda a gente -, também derivado à sua maneira muito especial de festejar o Espírito Santo, que aqui rende duração extraordinária, desde o domingo de Pentecostes até ao fim do Verão, mas principalmente à conta das suas touradas à corda. "Soltem-lhes um toiro na rua - acirram os vizinhos do outro lado das ondas -, e o dia está-lhes ganho. O resto cá ficamos nós a trabalhar por eles". Um exagero...
A verdade, no entanto, é que não basta aos da Terceira a já de si singular extravagância regional das clássicas corridas de toiros à portuguesa, na Monumental de Angra do Heroísmo, durante a época estival. O temperamento festivo e extrovertido deste povo bom ganha identidade própria somente nesta manifestação bizarra e excitante que é a tourada à corda.
E não o fazem por pouco: de 1 de Maio a 15 de Outubro, cerca de 150 corridas ditas tradicionais, fora as avulsas, cobrem as freguesias dos concelhos de Angra do Heroísmo e Praia da Vitória, com surtidas, entusiasticamente acompanhadas, às Velas e à Calheta, na vizinha ilha de São Jorge.
A primeira referência a uma "tourada de corda" remonta a 1622, por ocasião dos festejos jubilosos da canonização de São Francisco Xavier e Santo Inácio de Loiola, oferecidos pela Câmara de Angra. No entanto, e curiosamente, já em 1588 D. Frei Jorge de Santiago, terceiro prelado diocesano, proibira as touradas nos adros das igrejas.
Os animais talvez tivessem vindo do Algarve, da zona de Sagres, donde partiram as primeiras naus, mas também terá chegado algum gado mirandês, o que nem dará para admirar, pois entre os primeiros colonos havia muita gente do Norte.
O gado bravo, esse, há quem admita ter sido expedido de Espanha, logo após o estabelecimento dos castelhanos, no tempo do domínio filipino, mas mais criterioso será afirmar que o primeiro toiro bravo de estirpe terá sido importado somente há pouco mais de 70 anos - ensinam-me os entendidos.
Não estão também esclarecidas as origens da tourada à corda. Apesar das suas parecenças com o gallumbo y el toro del aguardiente de Espanha, ela assentou arraiais na Terceira, pode presumir-se, antes da chegada dos castelhanos. E de uma forma, por assim dizer, espontânea, genuína. No "mato", que é como os locais chamam ao interior da ilha, haveria já quem, assim para matar o tempo, tentasse as suas habilidades com os toiros. Pois bem: foi só pegar nessas proezas ocultas e transportá-las para o espectáculo franco dos terreiros.
Ponte de Lima mantém uma evento congénere, com realização anual na quarta-feira anterior ao Corpo de Deus, isto é, amanhã: chama-se ali "vaca das cordas". E no Brasil sobrevive também anualmente uma aparentada "farra do boi", na ilha de Santa Catarina. Mas, a tão grande escala, os toiros à corda da Terceira são, sem dúvida, um acontecimento único. E de exportação, para onde quer que haja um terceirense.
P.S. - Esta é a abertura de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.
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