terça-feira, 20 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia 7

"Telefones há aí uns sete, mas não trabalham". No Posto e na Adega do Ferreira estão lá, mas apenas pintados em paredes de casas periclitantes. "Quando acontece qualquer coisa, vou lá fora, subo aos Cubres para telefonar a chamar o médico, mas nunca aconteceu nada de grave", diz-nos o guardador de amêijoas. Quando foi do nascimento da filha, "era para sair para fora mas não houve tempo". Chamou uma tia. Quando a tia chegou, "já a rapariga berrava". Outra vez, uma moça estrangeira "trincou-se na cabeça e foi-se aos Cubres chamar o helicóptero". Estiveram a pé até às cinco da manhã à espera do que não veio, e o médico chegou apenas às seis. E mortes? E o cemitério ao deus-dará? "Não me lembro de alguém ter sido sepultado ali, a não ser um desconhecido que apareceu morto no mar. Do terramoto para cá, não morreu ninguém", presta contas o Senhor Luís.
A Caldeira teve em tempos o seu próprio pároco. Hoje recebe a visita de um padre uma semana em cada ano, a que antecede e prepara a solenidade do Senhor Santo Cristo dos Milagres, no primeiro domingo de Setembro. Então, sim, a fajã enche-se dos naturais, há festa de arromba, "filarmónicas e tudo". Mas estes são católicos dos rijos e de expedientes. Não passam domingo sem missa, e na sua igreja. Um pouco antes das dez, o Senhor Luís pega no rádio e, com a família, cumpre o curto trajecto que o separa do templo. É geralmente acompanhado pelos outros três ou quatro vizinhos, mas já aconteceu muitas vezes estarem ali só os da casa. Sintoniza a RDP-Açores e preparam-se para ouvir a missa da Sé de Angra. Tudo ritualmente. "Como se tivéssemos padre à nossa frente, a mesma coisa". As respostas, os silêncios, os gestos, a reverência, a atenção. Justifica: "Gosto de ir à igreja. Nem a televisão me interessa, que dá a missa às três e meia da tarde, vejam lá!, e em casa eu não estou com atenção".

Ao fim da tarde, tempo apertado para mais um cafezinho, "da terra", e uma angélica, "aguardente da terra", que nos anima ao regresso. A hora é de pressas, pretendemos fazer a jornada até aos Cubres, pelo seguro, com a luz do sol. Deixamos para trás, queremos desconfiar que já com saudades, a intrigante Fajã da Caldeira, sítio de memória, do passado, onde a vida corre devagar e a morte parece não ter licença de entrada.

P.S. - Sétima e última parte de uma reportagem que escrevi há cerca de 30 anos para a revista Tempo Livre sobre as então abandonadas e esquecidas fajãs de São Jorge, nos Açores. As fajãs de São Jorge são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016.

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