sábado, 17 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia 4

Era a hora da subida. Próxima paragem na Fajã de São João. Muito mais afastada da estrada principal, alcatroada, para lá chegarmos teremos de percorrer uma considerável distância pelo pó de uma via em terra barrenta, mas ainda assim de carro. O pior é a descida propriamente dita. Íngreme de meter medo e, ainda por cima, escangalhada por uma das habituais derrocadas. Restava o velho caminho alternativo, que, logo no seu início, avisava em letreiro artístico: "Descidas: às horas. Subidas: às meias". Esperámos pela hora e descemos, obrigados a complicadas manobras e ao recurso à mais eficiente das perícias. E outra vez encontrámos o mesmo silêncio, o recolhimento de um templo.
A fajã já teve escola e padre, mas hoje não vivem aqui permanentemente mais do que vinte pessoas, velhas quase todas e sobreviventes de pensões e da agricultura. Uma parte importante das cerca de duzentas casas e respectivas propriedades pertence a famílias da freguesia de Santo Antão, da zona alta da ilha, que descem com tudo, haveres e gado, para se guardarem dos rigores de janeiros e fevereiros, ou no Verão para as vindimas. É que - explica-nos o Senhor Libório, conhecedor do que diz - "lá em cima o tempo mata tudo e cá em baixo é o melhor que há para as coisas do cedo".
É assim, divididos entre a fajã e a serra, que vivem os dos Vimes e de São João. Na serra do Topo têm a sua cooperativa de lacticínios, onde é produzido o excelente queijo de São Jorge, de características originais e famoso pela sua qualidade invulgar e sabor único. E cá em baixo estão as sua vinhas - designação genérica para os quintais em socalcos -, ricas em hortícolas e frutos temporãos. O Senhor Libório mostra-nos, na Fajã de São João: banana, vinho, tomate, tangerina, trigo, figo e, claro, café.
Terá vindo do Brasil, "há-de haver cem anos", diz-nos a Tia Maricas, que nos vai ensinar tudo sobre o café das fajãs. Num discurso simples mas fluente, inteligente, filosófico às vezes, quase sempre sábio. "O café há que apanhá-lo quando as bagas estão vermelhas, a caminhar para o castanho. É descascado à mão, mas antes disso, quando está bem seco, esfrega-se em cima de uma soleta". Depois vai a queimar, com todo o cuidado, porque não pode ficar "nem muito encruado nem muito torrado". Esta operação é geralmente feita numa meia esfera em ferro, serrada de uma das muitas bóias que vão dando à costa. "Leva-se um ou dois dias ao sol, a secar, senão amarga, e então pode-se relar". A seguir é bebê-lo e - mais pelo paladar do que pela cor ou pelo aroma - apreciá-lo como merece, calmamente, repetindo, enquando vamos aprendendo a vida com a Tia Maricas.
Também ela desce de "lá fora", Santo Antão, para as suas temporadas de fajã, porque "isto é melhor que um sanatório: já aqui foram curadas muitas tuberculoses". E passa às provas. Por exemplo, a história de "duas raparigas, rapariguinhas de 18 anos, tísicas, mal-enganadas pelo médico, que, ciente da falta de cura, as mandou por descargo" para a Fajã de São João. "O caso é que, tratadas pelo sol e pelos ares, bem comidas e resguardadas, ali ganharam cores e saúde e se apresentaram, tempos mais tarde e sem mancha de doença, ao doutor, que afinal já não as esperava ver vivas". A certidão do que diz atesta-a Tia Maricas com os seus bem vividos e lúcios 92 anos.
São horas e meia, tempo exacto para a subida e o regresso à Calheta. O dia seguinte está guardado para a Fajã da Caldeira do Santo Cristo, empreitada que nos reclama bem descansados.

P.S. - Quarto capítulo de uma reportagem que escrevi há cerca de 30 anos para a revista Tempo Livre sobre as então abandonadas e esquecidas fajãs de São Jorge, nos Açores. As fajãs de São Jorge são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016. E amanhã há mais.

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