sexta-feira, 2 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 3

Com mais ou menos respeito pelos cânones litúrgicos e rigor na tradição, todas as comunidades açorianas festejam o Espírito Santo como o seu mais importante acontecimento sócio-religioso. De Santa Maria ao Corvo, cada qual à sua moda, nos Estados Unidos da América, no Canadá, no Brasil e, desde há uns poucos anos, em Lisboa e no Porto. Ninguém passa sem o seu "império", mais ou menos rico, com mais ou menos dias de programa. Consoante as posses.
Será decerto na Terceira, porém, que as festas alcançam a sua expressão mais vibrante. Ricas em especificidade, têm aqui uma maior duração, prolongando-se, em votos e promessas ao Divino, desde o Domingo de Pentecostes até aos finais do Verão. São os meses da "primavera das Ilhas". Este afã de folia bem o entendeu Vitorino Nemésio, ilhéu e terceirense:

Esta nossa ilha Terceira
Sempre foi alto lugar:
Em amores, bodos e toiros
Fica sempre a desbancar.


Ou:

Alcatra, confeitos, vinho,
Enchei o meu coração.
Que faz mais barulho ardendo
Que um tambor de folião.


Tudo começa pelo Domingo da Trindade, com o sorteio daqueles que serão os mordomos na função do ano seguinte. Aqui que ninguém nos ouve, sempre será de confidenciar que o dito sorteio está, na verdade, condicionado à partida pelos interesses de ilustres pagadores de promessas ou de notáveis da paróquia. Isto é, antes do sorteio já se sabe quem é que vai ganhar. Seja como for: o primeiro, consintamos, bafejado pelos desígnios da "sorte" recolhe na sua casa as insígnias dos Espírito Santo - a coroa e o ceptro - até à Pascoela, ponto do início dos festejos.
Na igreja da freguesia realiza-se então a coroação, cerimónia na qual a coroa é colocada na cabeça de uma criança ou adulto - o imperador -, que depois a leva em procissão a casa de um outro mordomo, que a guarda por uma semana. Mordomos, coroas, alvas rainhas em mantos magníficos, foliões, tambores, pandeiros, ferrinhos, bandeiras vermelhas, estandartes, quadros, varas, bandas de música compõem um cortejo garrido, sonoro, alegre.
Domingo após domingo renova-se a cerimónia, passando a coroa e o ceptro pelas casas dos vários mordomos aprazados, até ao dia grande da festa, em que são expostos no império. O império é uma pequena construção acapelada, ingénua, típica da arquitectura popular açoriana, e também chamada de teatro do Espírito Santo. Distingue-se pelo frontão trabalhado e colorido, em geral rematado por uma coroa e pomba simbólica. Aqui são saldadas as promessas, depositadas as esmolas, adquiridas as relíquias e entregues as oblatas que a seu tempo irão servir aos mais necessitados.
Enquanto no lar de cada qual, coroa e ceptro merecem as maiores reverências. Da família, têm garantida a melhor divisão da casa, um trono, a reza diária do terço ao Senhor Espírito Santo, é preciso que se note. E das visitas, todas, crentes ou agnósticas, o respeito e a deposição de uma esmola e de um ósculo no Divino, "aberto numa pomba de prata ao topo de uma coroa real".

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

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