O meu jornal manda-me "tramar" Sócrates. É preciso ligar-lhe imediatamente e perguntar-lhe se, caso ganhe as eleições, vai subir os impostos. Mas que pergunta inteligente! Que armadilha bem montada! Pincéis desta marca sobravam sempre para mim. Como já aqui contei, as pessoas de bem, ou as pessoas de mal que faziam questão de uma fachada de bem, recusavam-se a falar com o 24horas: tinham consciência de que, se abrissem a boca, tudo o que dissessem poderia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para saber as horas, haveria de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha e espalhávamos a merda. Dito de outra forma: as pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. Por outro lado havia quem fizesse tudo para aparecer.
Portanto o meu jornal manda-me "tramar" José Sócrates. É só ligar-lhe, a ele que nunca atende o 24horas e que escorna os jornalistas em geral por uma questão de princípio. Ligo, ligo, ligo, o dia inteiro. E nada e nada e nada, o dia inteiro. Ao pôr-do-sol tento o inimaginável truque, o long shot, como Lisboa gosta de me dizer e eu parto-me a rir: marco o número de Pedro Silva Pereira, o braço-direito de Sócrates, e sai-me do outro lado o Sócrates inteiro e desconfiado, num por acaso que me enche de adrenalina. Identifico-me, ele vai desligar de seguida, peço-lhe que não e faço-lhe a pergunta de um milhão de dólares: - Se vencer as eleições, se for para primeiro-ministro, vai subir os impostos?
José Sócrates não me manda àquela parte, mas podia, que eu não lhe levaria a mal. Ainda assim, empertiga-se, serigaita-se, despeita-se, esganiça-se e responde-me agressivamente: - Mas quem é que você é? E quem é que pensa que eu sou? Isso é uma pergunta ridícula. Acha mesmo que eu lhe vou responder? Sei muito bem o que quer, mas daqui não leva nada. Não lhe respondo. Acha que eu sou um principiante? E o senhor não tem nada de útil para fazer?...
Tenho. E faço. "Reformulo" e ponho pó de talco na pergunta: - Se o Senhor Engenheiro for o próximo primeiro-ministro, posto que ganhe as eleições, vai subir os impostos?
Sócrates quase que rebenta. Discutimos mais uns três minutos, tempo de um assalto no boxe, um a bater no ceguinho, o outro a agredir o invisual, eu não sabia que sabia discutir assim com cabeçudos, e ele desliga.
Saio dali exausto, nervoso e contente com a discussão. É ainda a adrenalina a mexer comigo. Geralmente o que (não) consegui é mais do que suficiente para ser a capa inteira do meu jornal no dia seguinte, em letras garrafais: "Sócrates entalado pelo 24horas" ou "24horas entala Sócrates" ou "Sócrates não responde ao 24horas" ou "Sócrates tem medo do 24horas" ou "24horas assusta Sócrates" ou.
Apresso-me a ligar para Lisboa. Conto a minha façanha, espero pelos parabéns. O chefe critica-me irritado "A resposta do gajo é inaceitável!", engulo em seco e explico ao chefe "Olha, foi o que eu disse ao gajo, que até ia da tua parte e que tu nunca na vida irias aceitar uma resposta assim, e que portanto ele que me dissesse mas é o que tu queres que ele diga, que até já tens o título feito e tudo, mas não adiantou..."
O meu textinho saiu a uma coluna numa página interior, provavelmente par. Do assunto da manchete desse dia não me lembro. Quanto a José Sócrates, por aí anda...
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