Via-se que o com-abrigo tinha tarimba, tirei-lhe logo a pinta, era um bom-samaritano nas horas vagas e por conta própria.
- Então, companheiro, como é que vai isso? - encarrilou o com-abrigo.
- Ia bem, obrigado, mas esteja quieto no cobertor... - resmungou o sem-abrigo, agarrando-se com unhas e dentes ao calorzinho que lhe roubavam.
- É assim mesmo, companheiro, positivismo acima de tudo, nada de pensamentos suicidas - acrescentou o com-abrigo.
- Pensamentos quê? - interrogou o sem-abrigo.
- Suicidas, companheiro, pensamentos suicidas, vontade de se matar... - explicou o com-abrigo.
- Eu conheço-o de algum lado? - inquiriu o sem-abrigo.
- Não nos conhecemos de lado nenhum, companheiro, mas estou aqui para o ajudar, limpe a cabeça de pensamentos suicidas... - disse o com-abrigo.
- Deixe então aí um ou dois euros, para um copinho de vinho - pediu o sem-abrigo.
- O importante é afastar os pensamentos suicidas, companheiro, não se deixe levar por eles... - disse o com-abrigo.
- E o eurito?... - quis saber o sem-abrigo.
- Os pensamentos suicidas podem ser-lhe fatais, companheiro, é preciso resistir... - disse o com-abrigo.
- Ouve lá - rebentou o sem-abrigo -, porque é que só falas dessa merda? Eu não quero morrer, quero dormir, caralho! Morre tu, se gostas tanto! E, já agora, vai chamar companheiro à puta que te pariu...
E foi assim. Palavra de honra se não foi mesmo assim, ou quase exactamente assim.
P.S.- Hoje é Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza e Dia Internacional dos Sem-Abrigo. Sobre o assunto, recomendo a leitura, por exemplo, de "Eram pobres e tinham dono" e "Ser pobre é perigoso e pode até ser fatal".
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