quarta-feira, 3 de maio de 2023

A arte de cuspir no prato

Foto Hernâni Von Doellinger
Trabalhar no meu jornal era obra desenganada. As pessoas que contactávamos para fazermos as "notícias" sabiam que, se falassem, fosse do que fosse, tudo o que nos dissessem podia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para perguntar as horas, havia de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha. O 24horas era assim, fugia-lhe o pé para a escandaleira. Se não houvesse sangue, os meus chefes tratavam disso. Para os mais distraídos perceberem: estão a ver como são agora todos os jornais? Pronto, o meu jornal é que começou.
Portanto tínhamos muito poucas "fontes". As pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. O jornal escolhia os seus alvos e gastava a pólvora toda (seca, por norma) enquanto a coisa vendesse. Mas é preciso que se diga: isto de eleger "inimigos" e disparar até cair para o lado foi uma herança recebida de Paulo Portas, do tempo em que o ex-vice-primeiro-ministro era director do semanário Independente e fazia a vida negra ao Cavaco primeiro-ministro e respectivos ajudantes no Governo. Portas é que inventou esta receita de sucesso e gabava-se disso. O seu a seu dono.
No meu jornal, Lisboa encarregava-se de fechar as portas às quais nos mandava depois bater, aqui do Porto. Levávamos quase sempre com a porta no nariz. As pessoas respondiam-nos torto, muito torto, era o pão-nosso de cada dia. Uma vez calhou-me o Sócrates, nas vésperas de ganhar as primeiras eleições, e foi do bom e do bonito. Lembram-se do génio do gajo? Têm presente o feitio da criatura? Pois é. Foi uma discussão das antigas, uma história que poderei contar amanhã. Evidentemente levei com muitos outros malcriados, mas é gente que nem merece que lhes diga os nomes.
Claro que a grosseria não era geral. Havia também pessoas que muito simplesmente se recusavam a falar-nos mas sem baixarem o nível. O bom do Raul Solnado (1929-2009), Luís Represas, o actor José Pedro Gomes, são dos que me lembro agora que escrevo. Nenhum dos três me conhecia, mas, depois de me ouvirem educadamente, foram igualmente atenciosos na nega. Disseram-me: "Desculpe, Hernâni, não é nada de pessoal consigo, portanto ligue-me quando estiver noutro jornal. Então conversaremos do que quiser". Agradeci sinceramente a franqueza e a urbanidade. E pedi desculpa eu. Eu sabia que eles tinham razões.
Era vida difícil. Num jornal que precisava da "opinião" dos "famosos" sobre tudo e sobre nada. A propósito da Marisa Cruz nua num filme ou por causa do Fidel Castro que passou a pasta ao irmão. A minha sorte é que acabava sempre por encontrar uma alma caridosa que me ajudava a ganhar o dia. Gente que sabia o que era o 24horas mas que, fosse por que razão fosse, nunca me deixou ficar pendurado: gente como Marcelo Rebelo de Sousa, o então apenas comentador, e Júlio Magalhães (na foto), os empresários e portistas Pôncio Monteiro (1940-2010), Manuel Serrão e Rui Moreira, hoje presidente da Câmara do Porto, os estilistas Miguel Vieira, Katty Xiomara, Luísa Pinto e Gio Rodrigues, os juízes Rui Rangel e Eurico Reis, o fiscalista Saldanha Sanches (1944-2010), Valentim Loureiro (o meu cromo da sorte), Júlio Isidro e Joaquim Letria, que também eram da casa, Tozé Brito, Luís Filipe Barros, José Cid, o humorista Nilton, Octávio Machado, Francisco José Viegas, Manuel Luís Goucha, José Carlos Malato, Jorge Gabriel, Hélio Loureiro, Paulo Teixeira Pinto e mais uns poucos de que injustamente me estou a esquecer. Eram sempre os mesmos e a minha tábua de salvação. O meu piquete de emergência.
Cada qual lá teria os seus motivos. Alguns, tenho a certeza, era mesmo uma questão de bondade. Fiquei agradecido a todos. De vez em quando pago-lhes aqui nos meus blogues com umas ripeiradas. É este maldito 24horismo que não há maneira de me passar...

P.S. - O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a Redacção do Porto, a sangue frio e pelas costas. Eram os primeiros dias de Maio quando nos despejaram no desemprego, e podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do "jornalismo" que hoje se faz em Portugal. O 24horas chama-se agora Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Sábado, Observador, Diário de Notícias, Sol, Record, A Bola, O Jogo, às vezes até Público e assim sucessivamente. Ah!, uma última piada: hoje é Dia Internacional da Liberdade de Imprensa.

Afinal a cruz foi inventada

Hoje, 3 de Maio, a Igreja Católica celebra o Dia da Invenção da Santa Cruz. Da invenção, valha-me Deus! Convenhamos que assim de repente o nome da efeméride não é lá grande espingarda, pois não? Quero dizer: não parece de confiança. Então a cruz foi inventada? E, ainda por cima, quase um mês após a Páscoa, quando ela, segundo a tradição, teria sido precisa? Acho isto tudo muito suspeito. Cheira a batota, trafulhice...

Foram soldados 13

Tarrenego!
A Guerra Colonial contada pelas fotografias do arquivo pessoal do pára-quedista fafense Álvaro Magalhães.

terça-feira, 2 de maio de 2023

Apertos de um 1.º de Maio assim-assim

Fui ver o 1.º de Maio ao Porto. Porque, para quem não tem mais nada que fazer, como eu, mora aqui ao lado em Matosinhos, como eu, e é teso, como eu, o Porto é um sítio deveras porreiro para se ver 1.º de Maio e nem é preciso comprar bilhete. E era dessa tesura que eu falava. No Porto há milhões de camones de passagem, aos encontrões, milhares de portugueses desempregados coçando colhões e esquinas, trezentos e cinquenta e três portuenses residentes e arrependidos e uma praça e uma avenida destinadas a obras, ao 1.º de Maio, às greves gerais, ao 25 de Abril, aos carteiristas e aos vadios em geral, as quais, praça e avenida, são emprestadas à política de altifalantes pelo Sr. Jorge Nuno Pinto da Costa quando o FC Porto se esquece de ser campeão - o que em democracia é raro e altamente suspeito, e se calhar este ano também.
O 1.º de Maio correu muito bem. Quer-se dizer, correu assim-assim, já nem é preciso deitar abaixo o governo, o governo cai sozinho, de podre, de gatuno, de mentiroso, de incompetente, de estúpido, de ausente porventura. Isto é, primeirodemaiou-se ali com grande pertinácia e depois acabou. Acabou, mas eu, que sou de lágrima fácil, estava com uma vontade de mijar que já não era só vontade, era um estado de emergência, e desatei a correr como um tolinho para o WC sob as escadinhas da Rua 31 de Janeiro com a Estação de São Bento e com a polícia de choque atrás de mim como se eu levasse um engenho explosivo na braguilha ou um computador do Ministério das Infraestruturas enfiado no olho do cu. Não levava. Estava apenas à rasca. À rasquíssima. E a retrete estava de portas fechadas. Por causa do feriado. Valha-me Deus: não se trabalhar no Dia do Trabalhador, mas quem caralho teve a peregrina ideia?...
Que se segue: eu bem não queria, mas tive de ir, com uma mão à frente e outra atrás, às casas de banho da estação propriamente dita. Às tais, às míticas, às suspeitíssimas. O que se passou lá dentro não interessa, apenas faço questão de garantir que saí daqueles apertos com a honra invicta. A polícia, entretanto, desinteressou-me de mim e passou a perseguir um casal de lavradores de Queimadela que tinha vindo a uma consulta de otorrinolaringologia na Praça D. João I, ela com a infelizmência de um xaile vermelho às costas e ele com um saco de plástico na mão, o falar da nossa terra e "cara de marroquino", como veio a apurar-se. Nas varandas (ou sacadas, como se diz em Fafe) cantava-se "Grândola, vila morena" com uma afinação de oficina de automóveis. O relógio exterior de São Bento batia as quinze em ponto. A polícia também. Após a sova da ordem, as autoridades verteram nos autos que o perigoso saco continha um cartucho com 250 gramas de sementes de pepino arménio compradas sem guia de remessa na reaberta Casa Hortícola do Mercado do Bolhão, um toquinho de chouriço de colorau, caseiro, um quarto de broa por acaso fresca, um taparuere com uma cebola da monda rachada em quatro e metida em sal grosso e vinagre tinto e dois olhos de azeite, uma garrafa de cerveja quase vazia de vinho, duas pastilhas avulsas para o enjoo no expresso da Arriva e um canivete aparentemente suíço com seis centímetros de lâmina, oficialmente indocumentado porém admissível em sede de Espaço Schengen. Os dois indivíduos, um do sexo masculino e o outro não, entre os sessenta e os setenta anos, foram detidos por posse de arma branca. Os peritos em minas e armadilhas fizeram explodir o resto.

Nada de novo a oeste de Pecos

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Quando o 1.º de Maio era no dia 28

Antigamente o 1.º de Maio era no dia 28 do mesmo. Quando digo antigamente quero dizer antes do 25 de Abril de 1974, que já é antigamente que chegue - que o confirmem os deputados da nação, cujos mais de metade decerto ainda não tinham nascido quando a coisa se deu, e isso nem é defeito. Um por exemplo: o estádio do SC Braga na Ponte, antes da extraordinária Pedreira do arquitecto Souto Moura, chamava-se Estádio 28 de Maio. E chamava-se assim por questões políticas e não por ordem de calendário litúrgico, rito bracarense. Chamava-se 28 de Maio glorificando o golpe militar que naquela data, em 1926, derrubou a Primeira República e abriu caminho à ditadura do Estado Novo. De corte fascista, o Estádio 28 de Maio, que ainda está de pé e funciona pelo menos para o futebol feminino, tentava aparentar-se e rivalizar com o Estádio Nacional, no Jamor, ou em Oeiras, consoante a dor de cotovelo de cada qual, e foi inaugurado, em 1950, por Salazar e Carmona, que assim dito até parecem uma alegre sociedade de costureiros. Veio a revolução dos cravos e o estádio mudou de nome, passou a chamar-se Estádio 1.º de Maio, viva o Dia dos Trabalhadores, viva a classe operária!, mais ajuizado seria que se tivesse chamado sempre Campo da Quinta da Mitra, como começara por ser.
Em todo o caso, mudar o nome do velho estádio de Braga, de 28 de Maio para 1.º de Maio, só demonstra (num raciocínio assumidamente palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se sobretudo e quase só para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário.
Querem outro por exemplo? O Estádio 25 de Abril, de Penafiel. Antes da "política", aquele terreiro chamava-se Campo das Leiras. E que mal é que tinha o nome?

O 28 de Maio de 1926 foi praticamente como o 25 de Abril de 1974, mas em versão fascista. Começou em Braga e chegou a Lisboa atrás do cavalo branco de Gomes da Costa, uma espécie de chaimite daquele tempo.
Antes do 25 de Abril, os 28 de Maio eram celebrados com desfiles, por assim dizer, militares: Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, certamente bombeiros e escuteiros, provavelmente ranchos folclóricos e evidentemente soldados propriamente ditos. A Veneranda Figura lá estava, mas o de Santa Comba se calhar não, porque constipava muito de saísse à rua e o povo fazia-lhe espécie. Havia discursos, condecorações geralmente póstumas, por razão de força maior, isto é, derivado ao Ultramar, criancinhas órfãs vestidas à adulto, jovens viúvas atarantadas e chorosas, pais abruptamente sem filhos mas com medalha espetada no peito, numa dor sem fim, e sobretudo muitas fanfarras, a bem da Nação. O bom povo português assistia a tudo patrioticamente embebecido, se não me engano com aguardente, porque as cerimónias eram de manhã.
Uma vez eu também lá fui. Estava no seminário, em Braga, e os padres levaram-nos. Fomos portanto levados. Gostei muito, porque o meu tio Zé de Basto era corneteiro na fanfarra do Regimento de Infantaria 8 e eu já não o via há uma temporada. Pusemos a conversa em dia.
Resumindo e concluindo: Portugal continua a ser o mesmo, fascistazinho, só o tio Zé é que já não anda na tropa...

Ainda há vagas

Foto Hernâni Von Doellinger

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...