quarta-feira, 15 de março de 2023

Uma casa na padaria

Sou uma pessoa muito antiga.
Eu sou do tempo em que
padaria era uma loja que vendia pão.

Há uma senhora que mora na minha padaria. Digo que mora na minha padaria porque, seja qual for a hora a que eu lá vá - oito, onze, meio-dia, quatro ou seis da tarde -, a senhora está lá, na mesa do canto, ao lado do balcão, quem vai para os lavabos. É exactamente para esse endereço que as Finanças lhe mandam as contas dos impostos: Dona Fulana de Tal, Mesa do Canto Ao Lado Do Balcão Quem Vai Para Os Lavabos, 4450-275 Matosinhos.
A nossa padaria em Fafe era na Rua Monsenhor Vieira de Castro, lado direito, com o Largo pelas costas e o cruzamento do Santo Velho mesmo à frente do nariz. Ficava por baixo da casa dos pais do Paulinho, que eram os donos do estabelecimento, entre as lojinhas da Dona Vitória capelista, que era uma santa, e da Aurorinha Maia, que era um vulcão, não desfazendo. Depois tivemos de mudar para o Assento e para a Padaria Moura, mas nesse tempo já eu andava por fora a dar água sem caneco. Lembro-me, ainda assim, que as padarias vendiam bijus, bicas e pães-de-leite para os ricos, broa grossa, broa fina, às vezes sêmeas e regueifas ou roscas principalmente pela Páscoa. Enfim, vendiam pão. Isso eram as padarias.
Mas hoje em dia as padarias são tudo: café, salão de chá, pastelaria, cervejaria, restaurante, casa de pasto, tasco, pensão, centro de convívio, sociedade recreativa, quiosque, tabacaria, meeting point, posto de turismo, guiché de informações variadas. E vendem de tudo, até pão, o que é curioso. São os tempos que correm: o meu talho também vende ovos, azeite, queijo, vinho, peixe congelado, feijão, ananás e pêssego enlatados. E a minha farmácia tem sempre a hortaliça mais fresca aqui da zona.
Sendo tudo, a minha padaria tem televisão e, portanto, milhões de opiniões. A campeona do palpite é a cliente residente, cuja, para mal dos meus pecados, padece de uma voz deveras agreste e guinchada uma oitava acima como se fosse o Bruno de Carvalho mas ao contrário. Nunca a apanhei calada...
"Não. O meu filho não gosta de andar!...", anunciava um destes dias a senhora que mora na minha padaria. "Podes ter gosto", dizia eu cá para mim. "Um marmanjo com mais de trinta anos e que não gosta de andar. Está bem, Alfreda! Até eu ando, até eu me rendi à caminhada, ao exercício físico, e que bem que me faz...", continuei com os meus botões.
Mas ela insistia, parecia tola a mulher, cheia de orgulho no calaceiro: - O meu filho não gosta de andar. Não. Não gosta de andar...
"Ai que caralho!", ia eu pensar, quando a senhora que mora na minha padaria rematou: - Não gosta de andar. Uma casa, nem que fosse pequenina, mas com tudo, ele preferia. Uma casinha. Andar, não!

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