sexta-feira, 10 de março de 2023

O meu sogro vai para a tropa

Depois de um dia particularmente violento, com doze horas na Urgência do Hospital de Santo António e chegada a casa cerca da uma da madrugada, o dia seguinte do meu sogro foi de alguma, lenta e não garantida recuperação. Pela manhã o meu sogro estava provavelmente melhor, bem disposto, disponível para me ajudar ao seu conforto possível. Demos as voltas que foram precisas. Vim almoçar.
Tornei. À tarde, o meu sogro estava de trombas e a fazer de conta que dormia. Quando está zangado com a realidade que lhe passa pela cabeça, o meu sogro faz de conta que dorme, mas, esta parte tem piada, faz de conta muito mal. Disse-lhe, como de costume, "Sr. Carvalho, abra os olhos se faz favor, precisamos de tratar de si, eu sei que o Sr. Carvalho não está a dormir, e o Sr. Carvalho também sabe que não está a dormir, vamos lá, ajude-me".
Que se segue? Bato e rebato à porta do esquecimento, o meu sogro faz de conta que acorda de repente, mas continua a fazer de conta muito mal, o que me faz rir e obriga-me a dar-lhe um abraço e um beijo extra na careca. O meu sogro gosta que eu lhe dê beijos na careca e diz-me obrigado. Pergunto-lhe: - Ó Sr. Carvalho, então estava tão bem de manhã, porque é que está agora tão mal disposto? O meu sogro responde-me, a voz entaramelada e cara de mau: - Como é que eu posso estar bem disposto, se vou para a tropa?
Compreendi-o perfeitamente. Eu próprio ainda não recuperei de vez da minha passagem pelos Comandos, e mais era rapaz e razoavelmente desembaraçado. Imagino, portanto, a angústia do meu sogro, com o comboio a sair de Campanhã dali a um quarto de hora, obrigado a ir para a tropa aos 85 anos e sem sequer conseguir pôr pé fora da cama. Por isso, prometi-lhe solenemente: "Não se preocupe, Sr. Carvalho, no dia do juramento de bandeira lá estarei e levo-lhe um merendeiro como manda a sapatilha". Que sim.
Mais um abraço, e o resto da tarde correu com um belo sorriso nos lábios.

A propósito. No tempo de outras lucidezes, o meu sogro gostava de contar-me que foi "condutor auto" em Vendas Novas e que os anos de tropa foram os melhores anos da sua vida. Neste texto e no texto abaixo dou-me ao luxo de usar o presente do indicativo, mas é apenas para enganar as saudades. Fazíamos uma bela dupla, eu e o meu sogro. Fomos unha com carne naqueles nossos últimos anos, tão difíceis e dolorosos para ele e tão luminosos e redentores para mim. Hoje é Dia do Sogro, e não sei que mais diga.

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