segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Fui ao dentista e ganhei uma cara nova

Cheguei muito tarde ao dentista. Logo eu que tomo horas para tudo, cheguei tarde ao dentista. Quero dizer: já passava dos quarenta. Evidentemente não sou exemplo para ninguém, também neste departamento da vida, mas a verdade é que, apesar de tantos anos de aparente desmazelo odontológico, eu tinha uma cremalheira que era um mimo - foi o que me disse o doutor, muito admirado, quando lhe arreganhei a tacha pela primeira vez. Palavras para quê? Eu usava Pasta Medicinal Couto. Os meus problemas com os dentes começaram, portanto, quando fui ao dentista.
E estreei-me em grande, numa célebre extracção de um siso, que, não é para me gabar, correu que foi uma desgraça. O dente estava muito apegado a mim, eram décadas de convívio e recusava-se a sair, coitado. Anestesia atrás de anestesia, o dentista escarafunchava e escarafunchava, puxava e puxava, pedia desculpa, que nunca tinha acontecido, inventava alavancas que não alavancavam nada, fazia o pino, o quatro e o oito, tentou o flique-flaque à retaguarda e o mergulho empranchado de braços abertos, escarafunchava e puxava, o homem suava copiosamente e eu sem guarda-chuva, parava para se desfazer das cambras, ralhava com as afogueadas assistentes que pareciam baratas tontas, pedia desculpa, que nunca tinha acontecido, e elas, quase em lágrimas e em coro: nunca tinha acontecido, mandou vir um escadote, a escada Magirus dos Sapadores, uma marreta da obra em frente e o Regimento de Artilharia da Serra do Pilar, por esta exacta ordem, escarafunchava e escarafunchava, puxava e puxava, desculpe, nunca tinha acontecido, e nada. Que daqui não saio, daqui ninguém me tira, insistia o filho da puta do dente, agarrado à gengiva como uma lapa, e já me estava a meter nervos.
Eu era uma poça de sangue. A minha boca era já duas, derivado ao escarrapacho forçado. Tinha a boca pior que o chapéu de um pobre - e foi ali que eu percebi na carne o significado da infeliz expressão. Se eu pudesse falar, gritaria: chamem-me um carro!, mas eu não podia falar, porque não sentia a boca e isso até era do mal o menos.

(Por outro lado, o dentista passa muito bem sem a nossa opinião. Já repararam que o dentista só faz perguntas depois de nos atafulhar a boca com metade dos móveis do consultório e a mangueira do jardim? Respondemos como? Só se for pelo nariz, mas isso é número arriscado e praticável apenas em caso de profunda constipação. E já deram fé que a gente vai lá queixar-se do dente de baixo e o dentista trata do dente de cima? E que geralmente acerta?)

O dente cedeu, por implosão controlada, ao fim de uma manhã inteira de pancadaria. O dente era eu. E eu era um destroço, um sobrevivente inesperado de Alcácer Quibir. Vi-me ao espelho: tinha os lábios esgaçados de orelha a orelha, parecia o Joker do Jack Nicholson. Para me confortar, o dentista disse-me que ainda ia ficar pior. E ficou. No dia seguinte: os cantos da boca em ferida, a cara inteira feita num bolo, inchada e negra. É. Eu tinha uma cara nova, irreconhecível, parecia que tinha passado pelo programa de protecção de testemunhas do FBI. Ou pelo menos pelo Botched do canal E!...
Por causa da dose cavalar de anestesia, andei semana e meia a babar-me e com um falar esquisito. A minha mulher queria internar-me. Safei-me por uma unha negra à consulta externa do Magalhães Lemos.
Mas isso passou. A sintomatologia física desapareceu. A memória da carnificina é que não. Padeço de stress pós-traumático. Ainda hoje é uma tortura ir ao barbeiro. Sim, ao barbeiro. Entro em pânico. Estão a ver? A mesma espera, a mesma televisão ligada na Praça da Alegria, a mesma bata branca, a cadeira, a babete, os utensílios cromados, pontiagudos e cortantes, o zzzzzzzzz assobiado do secador que parece o zzzzzzzzz assobiado de uma broca, a televisão ligada na Fátima Lopes, estão a ver? Estão a ouvir? Estão a perceber a minha agonia?
Isto é: houve aqui uma transferência qualquer que eu não sei explicar. Porque com o meu dentista corre tudo muito bem, farto-me de o recomendar a toda a gente. É, aliás, o meu conselho odontológico, como gosto de dizer. Na verdade, o sanguinolento episódio do dente do siso não passou disso e ganhei esta bonita história para contar aos netos de quem é avô. Na próxima sexta-feira vai lá a minha mulher por mim e portanto adeus até ao meu regresso.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Dentista. Pelo menos no Brasil.

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