sábado, 13 de agosto de 2022

Mulher, anda ver Fafe na televisão!

Foto Hernâni Von Doellinger
Isto foi exactamente há dez anos, lembro-me como se fosse hoje: a Volta a Portugal chegava a Fafe e eu chamei a minha mulher para vermos a minha terra na televisão. O ciclismo ao vivo, à beira da estrada e do suor, comove-me, comove-nos, faz-me tanta impressão aquele poder, aquele esforço, ainda que vitaminado, que só me dá para tremer e chorar ao vê-los passar rasantes. E não vejo nada. Cuidam que estou a gozar? Não estou. Para já, não. Pegámos nas bandeirinhas e fomos, portanto, para o sofá. É mais seguro. E de homem.
Naquele tempo a RTP "filmava" a Volta com telemóveis e com um helicóptero com um telemóvel - este ano não sei. A qualidade das imagens da corrida era uma merda e as informações gráficas eram borrões. Era a crise, a eterna crise, e contra isso nada. Além disso, há o futebol. Mas o importante era Fafe e lá estávamos nós, eu e a minha mulher, de mãos dadas e corações alvoroçados à espera de nos revermos naquelas ruas, naqueles sítios que tão bem conhecemos e a que gostamos de chamar nossos. Havia a promessa de um circuito à chegada, duas passagens pela meta. Um pitéu! Apesar do desfoque, o País inteiro ia ver como é bela a minha terra, como é única, e essa ideia não me saía da cabeça, entusiasmava-nos a ambos e às bandeirinhas.
Faltavam 17 quilómetros para o fim da etapa e a televisão informava que os corredores já estavam no circuito de Fafe. Eu expliquei à minha mulher que não podia ser, era engano, andei naquelas vidas, sei como estes desculpáveis lapsos acontecem, aquela via-rápida parecia-me mais a entrada em Sobral de Monte Agraço, quem vem de cima. "Vila Verde. Vila Verde, quem vem de baixo", contrariou-me ela, que me contraria sempre por uma questão de princípio. E, sim, de facto aquela estrada sem nada que a recomendasse nem bilhete de identidade podia muito bem ser nas bordas de Vila Verde. Ou de Sobral de Monte Agraço. Ou de Moimenta da Beira.
Os corredores umas vezes desciam não sei de onde e outras vezes subiam não sei para onde. Fafe na televisão era alcatrão e rails de protecção. Da minha terra, nada. No sofá discutíamos ipês e circulares e já íamos em Mértola, eu, e em Bragança, a minha mulher. A estrada impessoal e tão pau para toda a colher estava quase a acabar com o meu casamento quando finalmente dei fé da que já foi a Ponte de Golães. "Agora é que é", sobressaltei-me de alegria, "é mesmo Fafe, não é a Volta à Polónia". E os ciclistas pedalaram Santo Ovídio acima, deixaram a Cisterna para trás, passaram a Rua de Baixo e nós os dois a vermos aquilo na televisão todos vaidosos e a beliscarmo-nos, e nisto, às portas da Sacor, o programa da RTP avariou porque deu a chegada a uma meta em Vila Verde. Ou em Sobral de Monte Agraço. Ou em Moimenta da Beira. Ou em Mértola. Ou em Bragança, não sei bem. Sem o Largo, sem a Arcada e sem o Jardim do Calvário ao fundo, podia ser numa terra qualquer. Mas a televisão insistia que era Fafe.
E se calhar era. Porque apareceu o presidente da Câmara, que foi ao palco ser cumprimentado pelo vencedor da tirada. (Porque para isso é que estas coisas são feitas.) E era um palco de luxo: o presidente da Câmara, o João Baião e o Paulo Futre, que afinal já na altura era artista de variedades. Dinheiro bem gasto.

E agora vou-me lá que são que horas, para a televisão e de bandeirinha. Anda, mulher, os ciclistas estão quase a chegar e até pode ser que este ano dêem com a meta. Era porreiro.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

O grande Piçarra

Encontrei ontem por acaso o Piçarra, o velho Piçarra, o grande Piçarra - aos anos que não nos víamos um ao outro, eu e o Piçarra, rapaz da minha criação, em Fafe. Matámos saudades, recordámos os tempos antigos, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, das ex-árvores do Largo, daquela inesquecível excursão a Andorra, grandes malucos!, do espadal do Nacor, do Senhor Luís Filipe Vieira e do Rei dos Frangos, do Senhor Sérgio Conceição e do Senhor Macaco, do dr. Ribeiro e Castro, dos novos fascistas-racistas, da novíssima terminologia gay, de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia e à distância derivado ainda à pancada da pandemia. Despedimo-nos calorosamente trocando abraços da boca para fora e números de telemóvel e apalavrando a marcação de um almoço para a próxima. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Piçarra, nem sequer é parecido com o Piçarra, apesar da máscara nos fazer a quase todos iguais. Na verdade, tenho agora a certeza absoluta de que não faço a mínima ideia de quem seja aquele indivíduo. Quer-se dizer: eu nunca na vida fui a Andorra e não conheço ninguém chamado Piçarra.
Em todo o caso, gostei muito de falar com o Piçarra, grande e velho amigo.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Os amantes

Foto Hernâni Von Doellinger
Sempre gostei da palavra amantes. Desde pequeno. Claro que nesse tempo os amantes eram um senhor numa Florett que se encontrava com uma senhora, já fora da vila, e depois iam os dois para uma quelha fazer o que tinha de ser feito, de preferência na furtiva Quelha do Santo Velho, que agora é uma bem frequentada rua de cafés e escolas. O senhor e a senhora eram casados, mas não reciprocamente. Naquele antigamente não era recomendado e muito menos obrigatório o uso do capacete. Derivado a isso a senhora às vezes tinha filhos que não eram parecidos com o pai.
O senhor da Florett e a senhora malsatisfeita eram amantes, estavam amantizados. Toda a gente da terra sabia. Fafe ainda hoje é uma terra pequena. Cochichava-se, mexericava-se, emprenhava-se também pelos ouvidos. Num misto de recriminação e inveja, os amantizados eram olhados de esguelha, havia quem mudasse de passeio, quem baixasse os olhos, quem deixasse de os salvar. Isto era com as mulheres. Às amantes, a religião chamava-lhes pecadoras, adúlteras. Com eles, parecia que havia uma espécie de respeito, de admiração: aos homens, o povo chamava-lhes pinantes, verrumadores.
Mas o que havia sobretudo era muita dor de... cotovelo.
As mulheres falavam com orgulho no "meu amante" e batiam no peito, nos peitos, com toda a força do corpo, sem vergonha e sem vergonhas, reclamando o que lhes pertencia de direito a troco do que davam. Os homens faziam de conta. Os cornos não eram os últimos a saber. Se calhar eram os primeiros. Só podia dar para o torto. E dava.

Lembro-me muito bem, de uma vez, exactamente no Santo: houve uma espera, pancadaria da velha entre mulher legítima e a outra, na disputa por um lingrinhas que se ria como um perdido e era feio como um calhau - outras competências teria. Parecia as festas da vila, eram girândolas de sapatos, brincos e cabelos pelo ar, orelhas esgaçadas, saias arregaçadas, blusas esventradas, recíprocas recomendações de higiene íntima guinchadas (parecia nos altifalantes do Baptista) com indicações precisas sobre os locais do corpo que careceriam de arejo, mais arranhões e bofetadas, encontrões e apalpões, tropeções e tudo ao molho, tudo a aproveitar, tudo a aplaudir.
Foi mesmo assim, palavra de honra. A amásia deu parte de fraca e deixou-se ficar no chão. Espumava por todos os lados. O rosto passava-lhe do vermelho ao verde, que até parecia um semáforo. Nós em Fafe ainda não sabíamos o que era um semáforo, mas era aquilo. A ofendida batia no ar e falava ao mesmo tempo - "A badalhoca enche-o de gemadas para ele não lhe sair de cima". E, perante a robustez do argumento, à outra deu-lhe o fanico, cheia de vergonha e ranho, esparrando-se ao comprido...
Acorreu o senhor Zé Manco, que tinha um tasco-mercearia, A Primorosa, e era muito jeitoso para dar injecções. Para além disso, o molageiro gostava também de pôr a mãozinha no sopeirame local. "É afastar, faz favor, é dar espaço, para ela respirar", dizia o senhor Zé Manco nos seus domínios, abrindo de vez a blusa da amantizada, baixando-lhe um quase nada o sutiã e expondo um quase tudo de uns seios brancos como a neve, coisa linda de se ver. Depois, uma caneca de água fresca cabeça abaixo da desmaiada, "para a mulher espertar". E a mulher espertou.
E eu fiquei ali a gostar ainda mais da palavra amantes.

Por essa altura, a extraordinária e breve Janis Joplin berrava desalmadamente por um Mercedes Benz. Eu, na minha equívoca inocência, só pedia muito baixinho a Deus Nosso Senhor que me desse uma Florett. Uma Florett! E, se não fosse abuso, se não fosse pedir demais, que me desse também muitas gemadas e a correspondente força na verga...

sábado, 6 de agosto de 2022

Crónicas da emigração, de Daniel Bastos

Daniel Bastos apresenta em Fafe, na próxima terça-feira, 9 de Agosto, o seu mais recente livro, "Crónicas - Comunidades, Emigração e Lusofonia". A obra reúne os textos que o autor tem publicado nos últimos tempos em meios de comunicação dirigidos às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. A sessão de apresentação, integrada na Festa do Emigrante promovida pelo Município fafense, inclui a inauguração de uma exposição de desenhos do pintor Orlando Pompeu alusivos ao fenómeno emigratório. A partir das 21 horas, no Salão Nobre do Teatro-Cinema de Fafe.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

À justiça o que é da justiça

Foto Hernâni Von Doellinger
Ao contrário (nunca se deve começar um texto com a expressão "ao contrário"), mas, como dizia, ao contrário de uns certos e determinados palermóides, fafenses ou simpatizantes, que têm vergonha da Justiça de Fafe, eu não tenho. É verdade: tenho é muito orgulho. Gosto da lenda da Justiça de Fafe, acompanha-me desde que eu nasci, identifica-me pelo mundo fora, e até aprecio o monumento, embora o desejasse mais central. Já disse: a Justiça de Fafe é a metáfora folclórica de uma gente de paz que não gosta de levar desaforo para casa, ou que costumava não gostar. Nós, os fafenses (deve ler-se e dizer-se fafénses). O resto é treta, mais ou menos erudita. Geralmente menos. "Com Fafe ninguém fanfe" quer dizer, tão-só, com Fafe ninguém se meta. Porque, quem se meter, quem nos ofender de graça, recebe o troco, e que mal tem isso? E, no entanto, muito boa gente confunde, hoje em dia, este velho sentido de verticalidade com fazer justiça pelas próprias mãos. Não é nada disso. A Justiça de Fafe deve ligar-se, antes, à defesa da honra. A coça é semântica.É isto e mais nada. Nem luta de classes, nem administração de justiça privada, nem apologia da justiça popular, nem jogo do pau, nem fanfarronice, nem sacholadas, nem pistolas e navalhadas, nem Felizardos, nem bordoada por dá cá aquele copo. Tudo equívocos. As lendas (deve ler-se e dizer-se léndas) têm costas largas, de toda a conveniência (deve ler-se e dizer-se conveniéncia) para o caso em apreço, mas saber ler antes de escrever também nunca fez mal a ninguém, e sobretudo aos putativos historiadores.

Não vamos mais longe. Podíamos ir à Porca de Murça ou às pedras parideiras da serra da Freita, mas não vamos mais longe: deitemos os olhos a Guimarães, que após Arões é sempre ao baixo e sem portagens. A vaidade que os nossos vizinhos fidalgos têm na estátua de D. Afonso Henriques, esse gandulo que usava saias e batia na mãe! Ainda por cima, existiu mesmo, e a nossa Justiça de Fafe é só bazófia, invenção - mas é a coisa mais bonita a que nos podemos agarrar, para além da forca de Moreira do Rei, que também não consta da História a sério (à séria, se lido em Lisboa).
Os reis de Espanha vieram aqui atrasado a Portugal e o nosso presidente Marcelo (deve ler-se e dizer-se presidénte) levou-os a Guimarães e à estátua do tratante, do Afonsinho: a Letizia e o Felipe puseram-lhe flores. Em Fafe, a Câmara Municipal conhece o Monumento aos Mortos da Grande Guerra, o Monumento aos Combatentes da Guerra Colonial e o Monumento ao Bombeiro, conhece-os um dia por ano, e ignora durante o ano inteiro, todos os dias, o Monumento à Justiça de Fafe, que esconde quase em síncope, estúpida e militantemente, dos selectos visitantes, não vá dar na televisão. Se não fosse tão público e notório este asco, este ódio à Justiça de Fafe, suspeito que a Câmara já há muito lhe teria posto uma bomba pela calada da noite.

E não. O jogo do pau não é "uma das maiores tradições do concelho" de Fafe, ao contrário do que diz, por outro lado, a néscia propaganda autárquica. É tão tradição em Fafe como em Lisboa, em Trás-os-Montes, no Ribatejo, na Estremadura, no Algarve ou na Galiza. O jogo do pau é tão tradição em Fafe como a sueca, o futebol ou a malha, a petanca, o esconde-esconde ou o dominó, que se jogam em todo o lado.
Não. O jogo do pau não foi inventado em Fafe, não deriva da Justiça de Fafe. A Justiça de Fafe é outra coisa, é lenda, lenda nossa, exclusiva, de honra, e, bem vistas as coisas, uma das poucas tradições genuínas do concelho de Fafe, que as há, como o nosso falar antigo, inimitável e pitoresco. Mas a autarquia fafense (deve ler-se e dizer-se fafénse), aflita de cosmopolitismo, embaraça-se com a nossa Justiça de Fafe, omite a nossa Justiça de Fafe, despreza-a, oblitera-a, e resolveu substituí-la por um pedregulho espetado no coração da cidade, Por Baixo da Arcada.
E no entanto a Justiça de Fafe lá está, que eu bem a vou visitar como quem vai a Fátima duas ou três vezes por ano. Lá está, escondidinha, um pouco acima, e, isto é que deve doer à Câmara, farta-se de jogar ao pau com os ursos...

Ah!, antes que esqueça: deve ler-se e dizer-se militanteménte.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...