quarta-feira, 12 de junho de 2024

E o manguito do Bordalo?

A moda é nova, mas, em Portugal, o fado, a dieta mediterrânica, o cante alentejano, os chocalhos e a olaria preta de Bisalhães já tinham sido elevados aos píncaros do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Seguiram-se a falcoaria, a louça de Estremoz, os Caretos de Podence e as Festas do Povo de Campo Maior, até ver. Fixemo-nos, porém, na falcoaria. A falcoaria, numa das suas definições mais acessíveis, é a arte de treinar e cuidar de falcões e outras aves de rapina para a caça. Os falcões e colaterais contrafacções caçam, matam e comem, em geral, outras aves e pequenos quadrúpedes que não têm lóbi na Unesco. Está certo: a Unesco é uma organização das Nações Unidas que visa contribuir para a paz e segurança no mundo mediante a educação, a ciência, a cultura e as comunicações. Com a falcoaria ficámos irremediavelmente lançados. Eu, por mim, penso agora nos sapateiros, nas mulheres-a-dias, nos falsos licenciados, nos periquitos, nos tocadores de punhetas, nos perdigueiros e, andava com esta ferrada há que tempos, nos furões.

E antes que me esqueça: por exemplo, o jogo do pau. Porque não? Ou o berlinde, a carica, o pião, o espeto, a macaca, o moche, o tene, a cabra-cega, o arranca-cebolas, o mamã-dá-licença, o esconde-esconde. Ou o jogo da malha. Ou o jogo da bisca. Ou o jogo Benfica-CUF de 22 de Março de 1959. Porque não?
Por exemplo, as Janeiras, os Reis, as novenas, o terço e a bênção do Santíssimo. Porque não? As marchas de Lisboa e as rusgas do Porto e o Pai das Orelheiras e o carnaval de Ovar e a bicha das sete cabeças e a chega de bois e as "Velhas" da Terceira e as adufeiras de Monsanto e a Justiça de Fafe e os zés-pereiras e os cabeçudos e os gigantones. Ou a cantiga no duche, ou a lengalenga do avô, ou a arenga de bêbado, ou o apita-o-comboio, ou o atirei-o-pau-ao-gato, ou o areias-era-um-camelo. Ou o canto pimba, ou o canto neiro. Porque não?
Por exemplo, os ranchos folclóricos, os conjuntos típicos, a Maria Albertina e o António Mafra, os grupos excursionistas, os motoclubes e as motosserras. Ou as bandas de música, filarmónicas e copofónicas. Porque não? Ou os bandos de malfeitores, banqueiros ou governantes, os salgados e os doces, da alheira de Mirandela ao pastel de Belém. Porque não?
Por exemplo, o manguito do Bordalo. Ou o caralho das Caldas. Porque não?
Por exemplo, o assobio. Porque não?

É património até dar com um pau. É património sem mãos a medir. Somos um país para o Guinness. Com assinalável pertinácia, Portugal mete os dedos à boca e vomita património imaterial da humanidade por todos os lados. Um destes dias, sem darmos fé, estamos todos condecorados. Da cabeça aos pés.

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! O Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro apareceu pela primeira vez no jornal satírico "Lanterna Mágica" no dia 12 de Junho de 1875.)

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