quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Um bobsleigh em segunda mão

Foto Hernâni Von Doellinger
No tempo dos sonhos eu tive um: comprar um bobsleigh em segunda mão, pegar na mulher e no futuro que nos resta e mudarmo-nos os três para Santiago de Compostela, que era o estrangeiro que me estava mais à mão e nós gostávamos razoavelmente derivado às ruinhas, às tapas e às cañas e por a bem dizer nem sequer ser estrangeiro. Melhor dito, gostamos muito. Mas hoje em dia: a Galiza anda tão à rasca como a gente, o tempo parece meio tolo e saraiva por mais que saraive, ainda que seja saraiva galega - isto é, sarabia, graínzo, pedra, pedrazo, salpedrés, saragana ou saraiba -, não é neve nem dá lanço. Ia fazer o quê com o bobsleigh na Praça do Obradoiro? Do Obradoiro, que nome extraordinário e sugestivo... Ainda por cima, os gandulos do governo do lado de cá cortaram-me as vazas, entesaram-me até ao cutão. Desisti portanto do bobsleigh e tirei o passe do metro para a Senhora da Hora. Segundo julgo saber, na Senhora da Hora não neva há variados anos por uma questão de princípio. Que se segue: de bolsos vazios e sonhos roubados, fico olimpicamente em casa à espera do Verão de que não gosto. Sem bobsleigh, sem ruinhas, sem tapas e sem cañas. Uma seca que só visto.
Sou dado a invernos. Melhor que chova em Santiago. E que neve e que gele. Ou então nada disso, que ao ponto a que chegámos também não interessa, mas Santiago, sempre Santiago, mesmo sem bobsleigh e ainda que faça sol. Um dia destes lá iremos, eu e a mulher, dar uma vista de olhos ao futuro que estava para ser. É viver a vida pelo lado de fora, mas antes isso que nada...

No tempo dos sonhos nevava em Fafe. Não era preciso ir mais longe. Em Fafe, mesmo no centro da vila. Não era preciso alongar vistas para os cumes da Lameira ou da Lagoa e sonhar modestas aventuras impossíveis. O nosso Santo Velho pintava-se de branco, contavam-se os centímetros de altura do "nevão", faziam-se bonecos, pelo menos boneco, com nariz de cenoura e tudo, declaravam-se guerras de bolas de neve, ensaiavam-se trambolhões de criar bicho, chorar era proibido. 
Os campos nas traseiras da nossa casa, onde hoje está o Pavilhão Municipal, enchiam-se de moçarada brincalhona e apressada, porque a neve era efémera e sabia-se lá quantos anos depois estaríamos outra vez à espera. Lembro-me de uma ocasião, um acontecimento: o Foto Victor com os filhos a fazerem uma festa tremenda, e o Foto Victor a tirar retratos atrás de retratos, fotografias sorrateiramente alpinas que depois expôs, algumas, nas montras da loja em frente aos Correios.
Fafe também tinha disto, nomes assim, esdrúxulos. O Sr. Victor era fotógrafo com porta aberta e o estabelecimento chamava-se Foto Victor. Portanto o Sr. Victor passou a chamar-se Foto Victor. Aliás, como o Foto Jóia, mas este no Largo, à beira do Talho. Foto Jóia era simultaneamente o nome do "estúdio" e do seu proprietário. "Vem aí o Foto Jóia!", dizia-se, e era a coisa mais natural do mundo.

Entretanto comprei um carrinho de mão praticamente novo e temos dado as nossas voltas por aí, a mulher e eu. Compostela pode esperar. Às tantas vamos a Fafe ver a neve. Ou pelo menos os sonhos...

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