segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Porque é que eles chamam cumbre à nossa cimeira?

Foto Hernâni Von Doellinger
Em 1986, a Pousada de Santa Marinha, na Costa, em Guimarães, recebeu a terceira edição de uma coisa chamada Cimeira Luso-Espanhola. Aníbal Cavaco Silva era o primeiro-ministro de Portugal, Felipe González era o presidente do Governo espanhol e eu era jornalista de O Primeiro de Janeiro. Estivemos lá os três, evidentemente.
Tarde e a más horas, o meu jornal lembrou-se de me mandar para o local do crime. Tarde e a más horas, quero dizer, no caso em apreço, já depois de a coisa ter começado. E eu fui todo contente, de braço de fora na Catrel com letras, pendurado no Adélio Santos, que era o homem do volante, das fotografias e de outras habilidades e excessos. Eu tinha muita vaidade na minha profissão.
Com alguns empenhos e uma sorte do caraças, conseguir credenciar-me numa esquina do Toural, que, tenho ideia, era posto de turismo mas tratava do assunto. Cheguei lá acima engatilhadíssimo para colocar umas certas e determinadas questões tanto ao Silva como ao González, que os havia de foder, porém mandaram-me para uma sacristia que era a "sala de imprensa" ibérica. Ficámos lá todos de quarentena a contar anedotas uns aos outros, anedotas de espanhóis e portugueses, "Vale, vale...", diziam eles, "Já me tinhas dito...", dizíamos nós. Os jornalistas somos uns gajos com piada. Somos piadéticos sem fronteiras.
A cimeira eram dois dias. Escrevi um primeiro texto, de lançamento da coisa, na véspera da coisa, ainda na redacção, e assinei, com grande lata e imensa ignorância, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". Creio que na altura era "enviado-especial" que se usava, com hífen, o que dada uma maior cagança à função. Não fui corrigido por quem devia ter tarimba e mais juízo do que eu - portanto estava certo. É preciso que se note: estava a começar e era a minha primeira saída para o "estrangeiro". Para além disso, como decerto estão recordados, eu tinha muita vaidade na profissão. Vai daí, fiz as malas e parti da portuense Rua de Santa Catarina rumo ao fim do mundo, onde cheguei passado um bocado.
Naqueles bons velhos tempos, os jornais pagavam extramente as pernoitas aos seus jornalistas e eu fui dormir a Fafe. Dormi em casa da minha mãe e jantei no Académico. O Pimenta foi buscar-me e levar-me a Guimarães. O importante era que eu estava para fora, eu era enviado-especial, estão a perceber? O Adélio infelizmente não concordava comigo, e veio dormir a casa, ao Porto, que lhe dava muito mais jeito.
Da cimeira, enquanto lá estive, só soube os recados que os chegamissos do Cavaco nos traziam de vez em quando, que a coisa estava atrasada e que "Eles" estavam a discutir isto e aquilo, tudo a correr muito bem para o nosso lado, Portugal 5-Espanha 3. Não me custa admitir que os llegamessos do González contavam aos jornalistas espanhóis o mesmo resultado mas ao contrário, e acho justo. A "Eles" só os vi na conferência de imprensa final. E na verdade nem os vi, estava muita gente à minha frente, mesmo sendo "Eles" maiúsculos. E também não os ouvi, mas isso a camaradagem resolveu, dando-me as notas detalhadas do que fora dito. E eu voltei a assinar, com grande gabarito e por mais três ou quatro vezes, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". E voltou a sair assim no jornal.
Resumindo e concluindo: como combinado, a Cimeira Luso-Espanhola de Guimarães de 1986 foi um sucesso e a cobertura do enviado-especial de O Primeiro de Janeiro também. O Adélio Santos morreu já há dez anos, parece impossível, e, caro amigo, realmente já se comia qualquer coisinha...

Entretanto. A 33.ª cimeira ibérica foi há dois dias em Viana do Castelo. As cimeiras ibéricas são uma espécie de romaria a que só comparecem os membros da comissão de festas. E os jornalistas. E os membros da comissão de festas só comparecem para comer e para beber. E os jornalistas também, por maioria de razão. António Costa e Pedro Sánchez e respectivos chegamissos e llegamessos, assim respectivamente chamados consoante o respectivo lado do rio, almoçaram e jantaram, fizeram talvez também umas merendinhas, dormiram uma soneca ou a siesta, e no fim eles e os jornalistas contaram-nos as novidades. Isto é, nada. Ainda não foi desta que portugueses e espanhóis chegaram a acordo sobre o essencial: nós continuamos a chamar-lhe cimeira, como deve ser, e eles insistem em chamar-lhe cumbre, sabe-se lá porquê. Mas foi um sucesso. Nas cimeiras luso-espanholas nunca se passa nada, mas são sempre um sucesso. E era a continha, se faz favor...

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