segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Aqui estão os Reis à porta...

Os Reis, já seremos tão poucos a lembrarmo-nos, cantavam-se de porta em porta. Na rua por nossa conta. Em Fafe de antigamente, como nos antigamentes de outras terras. Fazia um frio de rachar e éramos crianças lamentavelmente enfiadas em roupa regrada mas limpa e calçado malpropício, desagasalhadas da vida mas livres e felizes ao menos uma noite em cada ano. As palavras saíam-nos tremidas, vaporosas, condensadas, pedras de gelo às vezes, num bater de dentes que, regra geral, passava muito bem por acompanhamento a trancanholas ou reco-reco (ou requerreque, em fafês), até parecia habilidoso arranjo musical feito de encomenda por um artista das nossas bandas filarmónicas. Éramos portanto crianças, pobres, de porta em porta, na rua gelada, a abençoar a noite dos adultos, se possível burgueses e talvezes. Estão a ver o Halloween? Os nossos Reis eram isso mais ou menos, mas a generosidade morava no lado de fora. E o papel higiénico era um luxo e só limpava o cu dos ricos. O nosso, limpávamo-lo ao jornal...

Cantávamos:
"Do dia cinco prò seis,
nós vimos cantar os Reis..."

Cantávamos:
"Correi, ó pastores,
que a noite está bela,
vinde ver Jesus
na formosa estrela."

Cantávamos:
"Aqui estão os Reis à porta..."

Cantávamos:
"Olhei para o céu,
estava estrelado,
vi o Deus Menino
nas palhas deitado.
Nas palhas deitado,
nas palhas esquecido,
filho duma rosa,
dum cravo nascido."

Cantávamos:
"Pastorinhos, pumpum,
do deserto, pumpum,
vinde todos a Belém.
Pumpum.
Vinde ver, pumpum,
o Menino, pumpum,
que Nossa Senhora tem.
Pumpum."

Cantávamos:
"Quem diremos nós que viva
nas folhinhas do codesso,
viva o dono desta casa
que eu por nome não conheço."

E também cantávamos:
"Vinho na pipa,
couves na horta,
se não nos der nada,
cagamos na porta."

É. Era. Não me canso de o dizer. Estão a ver o Halloween? O "típico" Halloween português, essa "tradição" tão fafense do Halloween? Os nossos Reis eram isso mais ou menos, mas em verdadeiro, em realmente nosso. E com música.

Sem comentários:

Enviar um comentário

A munha e o munho

Os colchões eram cheios com palha ou folhelho. E as almofadas enchiam-se com munha. Isso mesmo, munha, restos de palha moída depois de malha...