terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Quem não sabe é como quem não lê

Fui tratar da renovação do cartão do cidadão e, é preciso ter azar, correu tudo muito bem. Despacharam-me em menos de um quarto de hora. Eu contava passar a tarde inteira refastelado numa das cadeiras partidas das instalações de Alferes Malheiro, embora tivesse marcado para as catorze um encontro com o Lopes e com as bifanas da Conga, mas ainda não era meio-dia e já me despejava no meio da rua sem saber o que fazer com os seguintes cento e vinte e tal minutos da minha vida. É isto, desabituei-me de ir à Baixa do Porto...
Ameaçava ameaçar chover. Vi uma daquelas livrarias de campanha montada mesmo à frente do meu nariz, no largo da estação de metro da Trindade, e entrei. A mania dos livros apanhei-a em Fafe, mal aprendi a ler, na biblioteca que na altura se chamava da Gulbenkian e lembro-me muito bem da carrinha cinzenta em chapa canelada, a biblioteca itinerante, que frequentei uma ou duas vezes, mas o meu sítio já era edifício, creio que um primeiro-andar entre a loja do Damião Monteiro e a esquina que dava para a Polícia e em cima ou por baixo da Legião Portuguesa, o que certamente justificaria que fosse ali mesmo em frente a meta de partida e de chegada da corrida de jericos dos 16 de Maio. Entrei, dizia, tornando ao Porto e à livraria bimby. Lá dentro, o refugo do costume ao habitual preço da uva mijona, nada de razoavelmente interessante, mas às vezes nunca se sabe...
Uma simpática funcionária, diria entre os trinta e muitos e os quarenta e poucos, abeirou-se-me e perguntou, de sorriso engatilhado:

- Posso ajudá-lo?
- Ando só a ver, muito obrigado. Mas, já agora, diga-me, por favor: tem alguma coisa do Montalbán?
- De quem?
- Do Vázquez Montalbán, histórias do Pepe Carvalho...
- Quem?
- Pepe Carvalho.
- Saiu este ano?
- Não. No geral, são livros já com uns anitos...
- E o género?
- Policial, talvez. Mas dizer policial é dizer muito pouco. Policial literário e gastronómico, se for possível, e de repente não sei dizer melhor...
- Pepe Carvalho? Esse autor acho que não temos.
- Desculpe. O autor é Manuel Vázquez Montalbán. O herói dos livros é que se chama Pepe Carvalho, detective privado de origem galega e estabelecido em Barcelona, uma espécie de Sherlock Holmes espanhol, mas mais verosímil e versão séculos vinte-vinte e um.
- Então é conhecido em Espanha...
- Quem? Eu?
- Não. Esse tal Pepe....
- Acredito que sim, e em Portugal também. E no resto do mundo, se calhar. Não é que seja abonatório por aí além, mas até já fizeram filmes de um ou dois livros do Montalbán, quer ver?

Resolvi ser eu a ajudar a solícita porém desinformada funcionária. Ando exactamente a reler a Série Pepe Carvalho que as Edições ASA em boa hora começaram e em má hora interromperam, após a eucaliptal intervenção da Leya. Fui à mochila e saquei o "Assassinato no Comité Central", que por acaso acabei ainda na espera desse princípio de tarde. Expliquei à senhora:

- Vê?
- Ah! Montalbán é que é o autor. Eu estava a perceber que Pepe Carvalho é que...
- Esta era uma belíssima colecção da ASA que infelizmente...
- Ah! Livros da ASA não tenho.
- Mas Montalbán já foi publicado em português por outras editoras, pelo menos pela falecida Regra do Jogo e pela Caminho, se não me engano, há até uns livrinhos de bolso, tenho um, "As Termas"...
- "Assassinato no Comité Central", esse aí...
- Olhe, foi um dos que deram filme. Neste, quem faz de Pepe Carvalho no cinema é, veja lá, o Patxi Andión...
- Quem?
- O Patxi Andión, o famoso cantor espanhol, o cantautor, o poeta, o escritor...
- Não estou a ver...
- Então, o Patxi Andión, ainda outro dia esteve aqui na Casa da Música...
- Não, não conheço. E até gosto de música espanhola, mas não da música pimba...
- Minha senhora, o Patxi Andión...

Ia gastar mais um pouco do meu atamancado latim para explicar à gentil funcionária quem é Patxi Andión, que vem a Portugal desde o tempo do Zip Zip, contar-lhe da amizade antiga com Ary dos Santos e com Zeca Afonso, mas desisti. Preferi ser agradável e mentir com quantos dentes tenho, e são todos menos os sisos inferiores. Disse:
- ... Pois, evidentemente a menina é nova demais para conhecer o Patxi, o Pepe e o Montalbán. A menina é de uma geração tipo mais... tipo.
- Ai não se deixe enganar pela aparência. Estou é muito bem conservada... - devolveu-me a amável funcionária, enfim sorrindo, e corando de satisfação e vaidade.

Ficou cientificamente provado: a ignorância é óptima para a pele, muito melhor do que baba de caracol. A ignorância é o verdadeiro elixir da juventude e quem não sabe é como quem não lê. Por outro lado, as bifanas estavam di-vi-nais, como, em apenas três palavras, diria o meu irmão Nelo. E o Lopes, que me dá livros e parece que é bruxo, trouxe-me "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista"! Só tenho quem me goze...

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Abril de 2015 no Tarrenego!, o meu blogue generalista. Entretanto Patxi Andión morreu no dia 18 de Dezembro de 2019.

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