quarta-feira, 18 de junho de 2025

Quando os Tonys eram de Matos

Foto Hernâni Von Doellinger

Sou de Fafe e sou dum tempo. Frequentei os campos de milho do Santo, de Cavadas e do Sabugal, vindimei e pisei uvas, fui a desfolhadas e malhadas, andei em carros de bois e na carroça do Moniz Azeiteiro, fui à merda para selar o forno de cozer broa, ajudei a matar porco, arranquei batatas, depenei frangos, montei jericos, andei aos ninhos e aos pardais, guardei cabras no monte, tínhamos quintal, galinheiro e coelheira, meia dúzia de olhos de couves no tempo delas e um céu com estrelas. Tive feira todas as quartas. Comi gafanhotos, vivos. Fui uma vez ao mar, à pesca da faneca, e trouxe também cavalas e respeito. Eu e a natureza sabemo-nos. Quero campo, montes e rio, se possível com o Atlântico debaixo de olho. Sou um rústico e disto não saio. A cidade é-me modo de vida, mais nada.

Mas nem todos têm a minha sorte. Os lisboetas, por exemplo. Os lisboetas são uns infelizes, uns desgraçados, não sabem da vida, não sabem da terra, não sabem sequer de que terra são. Aqui atrasado, o Continente, esse, o dos supermercados, fazia de velho mestre-escola e, uma vez por ano, tomava conta dos lisboetas, assim ditos, e levava-os em gaiteira excursão de volta às suas raízes mais profundas. Às berças. Aos campos do Minho, de Trás-os-Montes, das Beiras, do Alentejo ou dos Algarves de onde eles partiram há duas ou três gerações, com a saca da merenda enfiada no cajado ao ombro, os pés descalços e as chancas nas mãos. Quer-se dizer: embora o ignorem, os lisboetas são tão parolos como os outros parolos todos à volta. Lisboa já não diferencia. Faz cada vez mais parte do resto que é paisagem neste país que não existe.

Naquele dia, os lisboetas, que são parolos mas não se lembram, aprendiam ou reaprendiam, por exemplo, que o leite não nasce em pacotes, que as galinhas estão vivas antes de estarem mortas (a senhora dona Lili Caneças saberá ainda explicar o fenómeno), que os ovos só podem ser produzidos com aquele feitio ou que o bife não é um animal, pelo menos um animal completo. E, com um bocadinho de sorte, até talvez pudessem descobrir o mais extraordinário segredo da vida, que é: a vaca não dá leite. Isso, a vaca não dá leite, ao contrário do que consta. A vaca não dá leite, não dá carne que serve para a nossa alimentação, não dá pele que serve para fazer sapatos nem dá chifres que servem para fazer pentes, como nos exigiam nas redacções da escola primária.  A vaca não dá nada, porque a vida não é de graça. É preciso ir lá, à vaca, e dar-se ao trabalho e tirar e tratar e transformar e fazer - é assim que o Lopes ensina os netos.
Mas então, o Continente oferecia aos lisboetas uma espécie de circo rural onde não faltavam as vacas e os cavalos, os patos e os gansos, as ovelhas e os porcos, as avestruzes e os burros. E enfartava-os com um megapiquenique a que o analfabetismo vigente não se cansava de chamar "Mega Pic Nic". Um arraial dos antigos para recriar, em plena Avenida da Liberdade e no Parque Eduardo VII, o "espírito do campo", o "ambiente de uma grande quinta", com o patriótico desiderato - acrescentava a propaganda do Continente - de "chamar a atenção dos portugueses para a importância do apoio à produção nacional". Pois se calhar.
E os lisboetas juntavam-se aos milhares, aos milhares de milhares, de boca aberta, entusiasmados até mais não com a novidade, fresquinha e ao vivo, das cores, dos sabores e dos aromas do campo, como se o campo fosse aquilo. Mas, sobretudo, os lisboetas do país inteiro, do país que não existe, iam ao cheiro do concerto do Tony Carreira. À borla. Tony Carreira apresentado aos lisboetas como "o melhor da música portuguesa".
Ora bem. Honra lhe seja, Tony Carreira, isto é, António Manuel Mateus Antunes, 61 anos, natural de Pampilhosa da Serra, é um profissionalão, provavelmente o melhor do seu ofício, mas não é "o melhor da música portuguesa". Entendamo-nos: por mais multidões que congregue, por mais corações que despedace, por mais sutiãs ou cuecas de senhora que lhe atirem ao palco, Tony Carreira é apenas um cantor romântico com imeeeeeenso sucesso e acaba de fazer constar que o próximo disco pode ser o último, Deus o ouça. Mas a música portuguesa, desculpem-me a expressão, é outra coisa. E felizmente.

Depois o Continente trouxe o arraial para o Porto, para os lisboetas do Norte. O estardalhaço chama-se cá em cima Festival da Comida e continua a atafulhar o martirizado Parque da Cidade, aproveitando parte da parafernália montada para o já de si devastador Primavera Sound. E com Tony Carreira sempre!
Este ano é a sétima edição do hecatómbico evento, dias 12 e 13 de Julho, e eu, ferrinho, mais uma vez não ponho lá os pés. Já disse. Sou de Fafe e doutro tempo. Do tempo em que os Tonys eram de Matos.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Piquenique. E Dia Internacional do Sushi. E Dia da Gastronomia Sustentável. E, evidentemente, dia de ouvir Tony de Matos.

domingo, 15 de junho de 2025

As pancadas de Jean-Baptiste Poquelin

Quando elas morriam de pé
"Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores", dizia a Senhora Dona Palmira Bastos, batendo altaneira com a bengala no tablado, na beleza insubstituível do preto e branco da televisão antiga. A queridíssima Senhora Dona Palmira Bastos tinha quase noventa anos e ainda não sabia das motosserras, do urbanismo autárquico em Portugal e da Amazónia no Brasil.

O francês Jean-Baptiste Poquelin inventou as famosas pancadas de Jean-Baptiste Poquelin, as quais, secas e consecutivas, batidas no piso do palco, anunciavam ao público o início de um espectáculo teatral. Alguém alvitrou, no entanto, que chamar pancadas de Jean-Baptiste Poquelin às pancadas de Jean-Baptiste Poquelin não tinha jeito nenhum, até soava mal ao ouvido, e que chamar-lhes, por exemplo, pancadas de Molière seria muito mais engraçado. Tinha razão. As pancadas mudaram então o nome para Molière e Jean-Baptiste Poquelin também. Assim se passaram as coisas.
A primeira vez que eu as ouvi, às pancadas, foi em Fafe, no nosso Teatro-Cinema, há bem mais de meio século. Teatro amador, mas pancadas profissionais, competentes. Era a récita de "Selo de Chumbo", um dramalhão em três actos de Armando Tavares, levado à cena pela prata da casa, com, entre outros e outras que infelizmente me fugiram da memória, Nélson Fafe e o Sr. Moreira, enormes actores e ensaiadores, o Tónio da Legião, estou em crer, e até o meu padrinho Américo terá tido um pequeno papel, coisa de uma deixa, duas palavras, mais não, entrada por saída, numa interpretação que ficou para a posteridade. O final da peça, se bem me lembro, era de fazer chorar as pedras da calçada...
As pancadas de Molière foram entretanto substituídas por apitos ou campainhas e por uma voz de altifalante que manda desligar os telemóveis.

P.S. - Versão revista e acrescentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe.

sábado, 14 de junho de 2025

Fafe já tem época balnear

Foto Hernâni Von Doellinger

Leio no Facebook do Município de Fafe que a "época balnear abriu oficialmente hoje e a Albufeira da Queimadela está pronta para receber a visita de todos", e dou por mim a sorrir. Fafe tem a sua própria época balnear sem precisar de ir para a Póvoa, quem havia de dizer, que coisa tão estranha para um tipo antigo como eu! Sobral de Monte Agraço teve, à altura, o seu parque infantil, que saiu no Tide, e Fafe agora também tem época balnear, como os outros brasis e algarves. Que extraordinário!
O meu irmão Nelo bem dizia, em pequeno, que, quando fosse grande, ia mandar construir uma praia em Fafe, com mar e tudo. Não foi ele, por acaso, mas alguém a construiu, e em boa hora, ela aí está, a nossa praia, ele aí está, o nosso mar, o sexto oceano, como já aqui expliquei, e já aberta ao expediente, a praia, afinadíssima "para receber a visita de todos", tal e qual como, por exemplo, a congénere ali do retrato supra, a Praia de Matosinhos, mesmo debaixo do meu nariz e eu nem lá ponho os pés, tenho medo de me afogar no areal. Quem dera que "todos", na nossa Barragem, nunca sejam assim tantos...
Para mim, no meu tempo, antes da construção do nosso mar, Fafe tinha três esplêndidas estâncias balneares: o Poço da Moçarada, o Comporte e Calvelos. Eu sou, aliás, especialista em balneários. Conheci muito bem os balneários do Campo da Granja e ainda cheguei a entrar nos balneários do Campo de São Jorge, então já oficialmente desactivado, mas funcional para jogos escolares ou de solteiros contra casados. Eu seria miúdo de escola primária, se tanto, e era a minha época balnear. Quando o Estádio começou a ser construído, os balneários da AD Fafe foram atamancados na cave do quartel dos Bombeiros e passei a ser freguês diário das instalações, numa amizade sem fim com o Senhor Zé Manquinho. Nas férias do seminário, não tinha água quente em casa, e era ali que eu tomava banho duas ou três vezes por semana, antes dos jogadores chegarem para os treinos e sem estorvar o despacho. Mas isto já são histórias para contar um destes dias no meu blogue Mistérios de Fafe...

A guerra em tempo de paz

A murro
Batata a murro apresentou queixa por violência doméstica.

Podeis não acreditar, mas eu também fui de comboio para a guerra, e já a guerra tinha acabado. O comboio é que ainda não. Isto é, naquele tempo até nem era nada de extraordinário ir-se de comboio para a guerra, porque Fafe tinha comboio, mas aqui fica o registo, a nota pessoal. Deram-me, portanto, uma guia de marcha. Embarquei em Fafe num domingo à noite, quase ainda fim de tarde, bem bebido, e cheguei à Amadora na segunda-feira de manhã, sóbrio, a bater à porta da guerra mesmo à hora de abertura do expediente. Era um comboio sobrelotado e verde, quer-se dizer, a esbordar de magalas fardados e sonolentos. Fafe-Amadora, ligação "rápida" e praticamente "directa", com os necessários sobressaltos na Trindade, São Bento e Campanhã, no Porto, e em Santa Apolónia e Rossio, em Lisboa. E de borla. A Pátria tratava-nos bem. Levava-se merendeiro de casa, evidentemente.

Eu fui à guerra e comi 21 gafanhotos de uma vez, uns atrás dos outros. Isso. Quando fiz 21 anos, num infeliz dia de Outubro, comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me estou a queixar, embora tenha sido uma canseira andar a persegui-los e a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltinhos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, os insultos do tenente, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos no dia exacto e triste em que fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Mas os gafanhotos. Os gafanhotos eram absolutamente essenciais, alimentavam heróis em construção, forjavam homens de aço, oleavam máquinas de guerra que haveríamos de ser. Eram, repito, absolutamente essenciais, naturalmente curriculares. Os gafanhotos e a pancada.
O meu encontro gastronómico com os gafanhotos teve como cenário os bélicos campos e montes de Santa Margarida durante a chamada "semana maluca" dos Comandos, em que o dia é noite e a noite é dia, com horários e afazeres trocados, incluindo as refeições e a instrução, manobras ainda por cima abrilhantadas pelas famosas prova da sede, prova de choque ou prova de sobrevivência. Famosas e às vezes fatais. Quer-se dizer: pancada, pancada e mais pancada.

Assim eram os Comandos, tropa dita de elite para onde não fui voluntário. "Mais logo afocinharemos!", ameaçava o tenente por tudo e por nada, só porque lhe apetecia. E afocinhávamos. Passávamos a vida a afocinhar. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, quase cinquenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que, uma vez por outra, "as coisas correm mal". Há mortes, mesmo no intervalo da guerra. O treino não podia ser mais completo.
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou explodindo em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor desajeitado. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana e no seguinte, e eu cheio de saudades de Fafe e da namorada no Porto.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche decerto marchariam melhor. Pelo menos parece ser esse o entendimento da nossa Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, que anunciou em Junho de 2021 a autorização para a produção, comercialização e utilização na alimentação em Portugal de sete espécies de insectos - duas de gafanhotos, duas de grilos, duas de larvas e um besouro.

Por aquela altura, no meu breve tempo de Comandos, eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com o trágico David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro Juca Chaves (1938-2023) e que, se bem me lembro, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando!...

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. O Centro de Instrução de Zemba, em Angola, foi criado no dia 14 de Junho de 1962, para formar as primeiras unidades portuguesas de Comandos.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Brincando com o trabalho infantil

O trabalho infantil é uma tragédia, uma vergonha, sobretudo se a criança ajudar no campo os pais pobres e lerdos para haver alguma comida à mesa. Pão, por exemplo. E era assim em Fafe antigamente.
O trabalho infantil é muito bem, um orgulho, principalmente se a criança entrar numa telenovela ou se for modelo de moda ou se for imitador de cantores adultos e der na televisão (esta parte da televisão é importantíssima!), enriquecendo os pais remediados e vaidosos.
Depois há ainda as crianças, estas são do piorio, que, órfãs de tudo e até de tecto, fazem sapatilhas de marca para os pés das entrevistadoras e dos entrevistadores da televisão que entrevistam as crianças que entram nas telenovelas e nas passarelas e nas cantigas e para os babados pais, que no fim pedem recibo de viagem e presença para descontar no IRS.
Parece que a diferença está nisto, segundo percebi uma vez no programa Sociedade Recreativa da RTP: os miúdos das telenovelas e da moda e do cançonetismo têm "agente". Os moncosos do campo, das fábricas, da rua, não.

E sabeis que mais? Portugal aprovou o primeiro regulamento do trabalho de menores em estabelecimentos fabris no dia 14 de Abril de 1891. Sim, do trabalho de crianças nas fábricas. E acredito que tenha sido um grande avanço civilizacional.

P.S. - Hoje é Dia Mundial de Luta Contra o Trabalho Infantil.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Chester, para todo o serviço

Lembrais-vos do futebol de salão? O que é que me vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo salão nobre do Teatro-Cinema como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas com pontuações. Para evitar ambiguidades, o futebol de salão passou a chamar-se futsal, joga-se em polidesportivos, como, por exemplo, no pavilhão do Grupo Nun'Álvares, e é o sucesso que se sabe...

Matt Dillon era o xerife de Dodge City, e Chester o seu leal escudeiro. Naquele tempo todos queriam ser Tarzan ou Mandrake, Buck Jones ou Fantasma, Mascarilha ou Cisco Kid. Os "artistas". Mas o Álvaro escolheu modestamente ser Chester, actor secundário, e assim se rebaptizou num involuntário equívoco cheio de ironia: na verdade, Álvaro Moreira Mendes nasceu para ser primeira figura, protagonista. E foi. No seu ofício de indústria, no movimento associativo, na intervenção cívica, na amizade fraterna e íntegra, foi sempre dos melhores, um fafense excelentíssimo, um homem maior do que o próprio nome, maior do que a alcunha sacada dos livrinhos de cobóis, maior do que o lugar que lhe queiram dar os menestréis da história recente de Fafe, tão desperdiçada em umbiguismos, capelinhas e bagatelas, maior do que melhor ou pior pensem dele. Acerca da opinião dos outros a seu respeito, creio, aliás, que o Chester, ajudante do xerife, não se coibiria de dizer, alto e bom som: caguei!!! E diria alto e bom som e assim com três pontos de exclamação porque ele não sabia falar de outra maneira.
Onde o Álvaro chegasse, constava. Ele encarregava-se de avisar logo à entrada, por entre raios e coriscos, avançando como um tornado de grau cinco, a enorme mão calejada e aberta desbravando caminho, oferecendo-se para um abraço, para uma palmada nas costas à moda antiga. Ser imperfeito como todos nós, mas menos imperfeito do que a maioria de nós, e muito menos imperfeito do que eu, por exemplo, o Chester tinha um coração enorme, desmesurado, e uma boca do tamanho do coração. Tinha o raio de um feitio, o homem, fazia inimigos com o dobro da facilidade com que fazia amigos. E também deu alguns pontapés na vida.
O Chester era generoso, impulsivo, excessivo e puro. E amiúde foi a primeira e principal vítima da sua generosidade sem peso nem medida. Era um bom selvagem, uma força da natureza, pau para toda a obra.
Era meu amigo. Forjámos a nossa cumplicidade no tasco, evidentemente. Nas tardadas de Inverno passadas à volta da braseira na cozinha da Dona Isabel, no Toninho Nacor, onde eu, com os bolsos cheios de cotão, ia levado pelo tio Américo. Em 1976, Barcelos acolheu o Campeonato da Europa de Hóquei Patins Sub-21 (juniores, chamavam-se então). O Chester falou do assunto. Comprámos duas assinaturas para o torneiro inteiro, e todas as noites lá íamos de Vauxhall até Barcelos por estrada nacional, que era o que havia, víamos os dois ou três jogos do programa, regressávamos a Fafe e eu chegava a casa já de madrugada. Fomos campeões.
Mais ou menos por essa altura, o Grupo Nun'Álvares estava instalado no edifício que fora posto da GNR, em frente à Igreja Matriz, e que hoje é, creio não estar enganado, casa paroquial. Ali foi construído um rinque em cimento e organizado, em 1977, o primeiro torneiro de futebol de salão em Fafe. Salão ao ar livre, é preciso que se note. Nunca falhei um jogo. Um dia vou à bilheteira comprar o bilhete do costume, está lá o Chester (o Chester tinha o seu quê de Deus, também estava em toda a parte) e entregou-me um livre-trânsito passado em meu nome e que dizia "Convidado da Organização - Prémio Assiduidade". Coisa inventada por ele, que era a alma daquilo tudo. Resultado: deixei de pagar para entrar e guardo religiosamente aquele cartão, como se fosse um santinho, uma relíquia da Terra Santa.
Quando terminei a minha felizmente efémera passagem pela tropa, o Álvaro foi a primeira pessoa a oferecer-me um emprego a sério e até já tinha tratado de tudo para eu tirar a carta de condução. Apareceu-me melhor, o Álvaro incentivou-me a aceitar a outra proposta, e ainda hoje não tenho carta nem sei conduzir.
O Chester alegrava-se quando me via em Fafe. Fazia questão que se soubesse que gostava muito de mim. E a verdade é que eu também gostava muito dele. E no entanto falhei-lhe miseravelmente na altura da vida em que por certo ele mais precisou dos amigos...
O Álvaro era, regra geral, do contra. Era um inquieto espírito de contradição. Tanto que, só para chatear, resolveu deixar-me a falar sozinho, quando tínhamos ainda tanto para conversar.

Felizes os ignorantes: quem não conheceu o Chester, não sabe o que perdeu. Trabalhador incansável, empreendedor contumaz, homem dos sete instrumentos e de mil causas, o Chester é uma história extraordinária e isto aqui é apenas um humilde lembrete, um quase nada. Grande, grande era ele. Álvaro Moreira Mendes. Chester, para todos os efeitos e para todo o serviço. Uma vida que dava um livro, um nome que merece rua. Em Dodge City já teria.

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe.

terça-feira, 10 de junho de 2025

E Portugal era em Fafe

- Volta a Portugal! Volta a Portugal em bicicleta! - pediu-lhe insistentemente a mulher, num derradeiro telefonema de aflição. E ele voltou. Mas veio de carro.

Portugal era em Fafe e eu, fafense de rebimba o malho, tinha muito orgulho nisso. Portugal era um larguinho e situava-se na Rua José Ribeiro Vieira de Castro, como quem desce, à esquerda, entre a esquina do Toninho Nacor, o tasco antigo, e o Lombo, por assim dizer e com vossa licença. Morava ali gente de categoria, como, por exemplo, a Senhora Felicidade, que costurava ao domicílio nas melhores casas da vila e era uma cerzideira tão perfeita que até passava despercebida. Portugal era um terreiro e tinha uma "cabine". A "cabine", segundo me explicaram, guardava e distribuída electricidade. Era uma espécie de almazém. A importância de Portugal, o país inteiro, ser em Fafe meteu-se-me em mim, em pequeno, e eu tinha a compenetrada mania de que era mais do que os outros, os que não eram de Fafe. Esta minha inclinação notou-se particularmente no meu tempo de seminário, onde eu sempre achei que era mais fino do que os outros. Os meninos das outras terras, e tantas eram, de Melgaço até bem abaixo de Braga, incluindo Vizela, detestavam estas minhas peneiras e, para mal dos seus pecados, só muito tarde da vida é que compreenderam que realmente eu era mais fino do que eles. Mas eles não tinham culpa, coitados, era apenas azar. Ninguém escolhe onde nasce, e a verdade é só uma: eles não nasceram em Fafe e portanto não tinham Portugal.
Pois Portugal ainda lá está, em Fafe, que é o seu sítio. O Largo de Portugal. Volvidos tantos anos, não sei se mantém os seus poderes intocados, os poderes que eu sei que Portugal tinha. A envolvência - isto é, Picotalho, Cavadas e tudo - foi escangalhada pelo progresso, que passa ali ao lado armado em auto-estrada a mais de mil à hora. Questão de urbanismo. Os portugalenses serão também certamente outros, gentes de maiores posses e novos saberes. Mas a "cabine" continua, firme e hirta, como castelo altaneiro, quero crer que ainda e sempre ligada ao negócio do retalho energético, alta tensão, perigo de morte. Viva Portugal! Viva Fafe! Abençoada terra que tem um país inteiro num largo dentro de si.

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia de Portugal.

Quando os Tonys eram de Matos

Foto Hernâni Von Doellinger Sou de Fafe e sou dum tempo. Frequentei os campos de milho do Santo, de Cavadas e do Sabugal, vindimei e pisei u...