quarta-feira, 26 de julho de 2023

O esperanto em português suave

O turista estrangeiro aproximou-se do vendedor de óculos de sol de beira de praia. Era obviamente um turista estrangeiro, só eu e os turistas estrangeiros é que sabemos malvestir tão bem, nunca me engano a esse respeito. O vendedor de óculos de sol de beira de praia é português dos quatro costados, conheço-o de ginjeira, Verão atrás de Verão, monta banca todos os dias ali em baixo e quando chove é vendedor de guarda-chuvas de beira de praia. É, além disso, ambulante, mas apenas para fugir à polícia municipal. Ele também percebeu logo que o freguês que tinha pela frente era estrangeiro. Mas pensam que se atrapalhou?, era o que faltava! Nós os portugueses temos connosco esta habilidade extraordinária de nos desenrascarmos sempre, seja em que situação for, cá em casa ou lá fora, mesmo debaixo de água ou na estratosfera, aprendemos línguas, copiamos hábitos, camaleonizamo-nos, universalizamo-nos, se calhar nós é que inventámos o esperanto, não foi nada o Zamenhof, possuímos este poder de desembaraço, improvisação e adaptação, que tomaram muitos, até os americanos, e que fez dos portugueses assim ditos um povo das sete partidas do mundo por excelência. E nem é preciso ir mais longe: olhemos por nós abaixo, os fafenses, nesta acalorada época do ano, as esplanadas cheias e a língua oficial é o francês, toda a gente fala francês, mesmo quem não sabe, e até parece que estamos na Póvoa. E... bem, com estas tretas todas, esqueci-me do que queria contar...

Ah!, já sei: o turista estrangeiro. Portanto, o turista estrangeiro abeirou-se do vendedor de óculos português e perguntou: - The glasses, how much?... (Estão a ver como eu tinha razão? Era ou não era um turista estrangeiro?).

Foi um clique, um cagagésimo de segundo bastou para que o rapidíssimo cérebro do nosso vendedor português formatasse "é inglês, pois então vamos a isso" e mudasse imediatamente de registo, fazendo um entre parênteses na língua do Camões e virando-se para Shakespeare. Cheio de segurança e enorme poliglotismo, respondeu ao camone, marcando ostensivamente as sílabas no mais escorreito acento cockney: - Quali? Quali qui tu quieres?...

P.S. - Hoje é Dia do Esperanto.

3 comentários:

  1. Pois aqui, por terras de Sua Magestade, El Carlitos, onde o idioma que menos se escuta é o inglês, tem português, sobretudo madeirense, que insistem em dizer, "não sou português, sou madeirense ", como que a roubar um antigo dito fafense, mas como dizia, tem português que se reconhece no falar, tipo, "no Michael, aqui no run...Michael, anda slow caralho!". E eu que achava que era defeito do português emigrado na França...

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    1. Nunca tinha pensado nessa versão, confesso. Mas é o que eu digo: semos um exemplo ímpar e imparável de adaptação e cosmopolitismo. Semos ou não semos?...

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