Missais terra-ar
Portugal enviou missais para a Ucrânia. Pequenos missais de rito bracarense praticamente novos. As ordens eram para mandar mísseis, mas alguém da intendência fez confusão ao aviar a encomenda.
Armando Zegolina, isto é, o Zegolina, sobrenome conquistado na rua pelo cidadão Armando Sousa, era um fafense excelentíssimo e campeão mundial da maledicência. Campeão invicto e ininterrupto pelo menos enquanto foi vivo, e não sei se também depois, é preciso que se note. O Zegla dizia mal de tudo e de todos. Pelas costas, pela frente e pelos lados. Com razão, sem razão e antes pelo contrário, apenas por uma questão de princípio. Nasceu para aquilo. Dizia mal do futebol. De quem ia ao futebol e de quem não ia ao futebol. Dizia mal da religião. De quem ia à missa e de quem não ia à missa. Dizia mal da política. De quem era dos partidos e de quem não era dos partidos. Dizia mal da televisão. De quem via e de quem não via. "E tu também te podes ir foder!", dizia-me regularmente. Era. Com o Zegolina, ninguém estava livre.
E como é que lhe veio o nome fantástico? Assim. Em pequeno, ali para os lados de Portugal e do Lombo, de onde ele era, o Armando gostava muito de brincar esvaziando os pneus de todos os automóveis que lhe calhassem à mão de semear e longe da vista dos donos. Ele explicava que lhes estava a tirar a... zegolina. E daí o nome e a lenda.
O nosso Zegolina jogou futebol até aos juniores na AD Fafe e, entre 1968 e 1971, foi soldado pára-quedista e tratador-treinador de cães de guerra. Voluntário. Cumpriu oito meses de Guiné, durante os quais realizou 21 saltos, quase sempre em situações de combate. Foi operário têxtil evidentemente na Fábrica do Ferro, emigrante em França no ramo dos elevadores, e quando tornou a casa, em 1979, fez-se electricista por correspondência e montou negócio. Frequentávamos ambos o inevitável Peludo e acompanhámos depois a módica deslocalização do Peixoto, que foi só virar a esquina. Éramos amigos, eu e o Zegolina - mais o estimado Manel Zebras, velha glória da Desportiva, os três à mesa pária em que mais ninguém queria entrar. Éramos amigos. O Zegolina ansiava pelas minhas férias e pelos meus bissextos retornos a Fafe, para pormos a conversa em dia, e tínhamos uma certa pressa nisso. Éramos amigos conversantes, confidentes, cúmplices e leais, como o aço. E o Zegla até nem era nada disso de amizades derivado à língua, embora por detrás da língua desgovernada estivesse um homem generoso, bom rapaz, talvez tímido, mas ele não queria que se soubesse. Ele era ruim só da boca para fora, e essa era a sua magnífica fraqueza.
O Zegolina morreu há anos e praticamente novo, muito antes do prazo, muito antes do que seria decente ou razoável, morreu devagar, quero dizer, foi morrendo a olhos vistos, com o corpo de atleta e militar de elite cobardemente escangalhado pela sorrateira doença dos pezinhos ou paramiloidose, que só não lhe atacou a língua. E isso, estou em crer, foi o seu derradeiro consolo.
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